Hospital Casaredo 69
Inquietudes coletivas
Um caderno foi encontrado na escada que dava à Capela Rosália. Atônito, o enfermeiro Gaspare tentou refazer o trajeto de Madame, que em geral esperava alguém para a trazer àquele espaço. Sim, era possível para ela descer a rampa de acesso à porta, sozinha. Subir, carecia esforço dobrado e ela demonstrava, por aqueles dias, fraqueza, falta de equilíbrio. De alguma maneira o movimento se deu e o rapaz tremeu, a huli jing poderia ter agido novamente. Sabia que o colega Alev estava sempre atento, mas era humano, tinha direito ao descanso. Gaspare logo se tranquilizou, o caderno permanecera aberto, o parágrafo redigido pela senhora contou a história.
A companhia desses homens é agradável, um reza, outra dança. Uma lembrança mais funda que o Tejo me vem com a presença deles e não a compreendo. Um homem belo, casaca púrpura. Ele me estende primeiro uma lata de biscoitos de areia. O senhor da Nossa Senhora traz outra visão. Alguém amadurecido, de casaca verde oliva. Quereria ter amado como eles se amavam um ao outro. Difícil saber o teor do amor das pessoas entre si, também o que é o amor. Difícil entender como se dá a afeição mais primitiva de um rebento. Ele se identifica, quer ser como aquele que o amamenta, tomar o lugar do outro, que pega o seio que o amamenta. Difícil equação. Para chegar ao momento de envergar uma casaca, muita coisa já aconteceu, um homem pode ter enlouquecido. Ainda é cedo, mas o senhor Omar me transporta, como pluma, rampa acima.
Duas camas do dormitório feminino um foram enviadas ao ambulatório novo. Com mais espaço entre um leito e outro, um cortinado salmão para os separar, janelas sempre abertas, comungava-se sutil privacidade no leito de Madame. Foram acrescentadas poltronas ao ambiente, para eventuais visitantes. Gaspare devolveu-lhe o caderno, que a senhora abraçou, olhos fechados. Enquanto os atendentes empurravam, encostavam, espanavam, refrescavam, Madame chorava em silêncio. Escreveu.
Um verde perolado, cheio de chuva e musgo. A Princesa de Aioca acena ao oferecimento das rosas. Energia do mar, ela conta as lágrimas que do rio chegam, plenas de sal. Com elas, a Princesa de Aioca trama um colar. Olha a nudez imperfeita da moça, à beira da praia, pelo reflexo de seu espelho. Uma mexa de cabelo negro atravessa o olhar e a moça se move, já não tão moça. O que faz ela em roto camisolão? Erra, perdida em contradições. A Princesa tem dó. O espelho anuncia uma fragata, retida em fuso de calmaria. A Princesa de Aioca admira o homem que vê diante do leme, face expressiva, corsário de muitas marés. Observa o elo entre o homem da barca e a mulher da praia. A Princesa de Aioca lava o colar de lágrimas que agora corusca, coberto de sal. Murmura doce nena a Princesa de Aioca, quase distraída. Vê também o menino que não mareou, incrustrado em uma concha. O homem se volta àquele mavioso silvo. Um maremoto. O motim ocorrera há quatro dias.
O soldado da cruz olhava de soslaio, uma estampa pregada à parede da cabine. José Gaetano despertou cara a cara com ele, ainda a escutar o silvo. Afofou a manta que usava como travesseiro. Representação antiga, descorada por tanta maresia, firme visão, ao lado do catre. A cara de D. Henrique, o de Sagres. José Gaetano conhecia o grande marujo das cartas náuticas. Seguia-lhe as rotas, comungava de sua intuição e exemplo. A cultura do diálogo entre diferentes gentes, a possibilidade de dar a conhecer a um povo a vida de outros. Quisera fosse este também o ideal de José, identificava-se. Quanto tempo no mar? Já se tornara parte d’ele. O comandante, de pé, bateu continência a D. Henrique. Olhou pela escotilha e notou aquele barquinho azul e branco, cheio de rosas, espelhos, águas perfumadas, bilhetes. Solitário barco em alto mar. José Gaetano pensou em tudo, em nada. Foi ver o leme, sem o ver.
Os carregamentos transportados pela Sor, que antes eram distribuídos em pequenos domínios, passaram a circular através de longas viagens. Tema apaixonante para José, viajar, conhecer colônias portuguesas, espanholas, inglesas, francesas. Chegar à Índia. Perder-se em costas brasileiras. Ao visualizar a face de D. Henrique, o corsário sonhou o dia de ser realmente útil às estradas aquosas. Abismos insondáveis transformavam-se em acesso a terras prometidas, casamentos para acolher órfãos, sabores e especiarias exóticas, palma, coco, cacau, vinho, amores tórridos, aventuras intrincadas, conflitos, florins. Nada se ganha na vida, nada se perde. Tudo se faz pelo trabalho honrado.
Há vinte e um dias, José Gaetano se encontrava envolto em calmaria. Tempo suficiente para que os delírios excedessem a normalidade. O barco, muitas vezes, amanhecia emborcado dos pesadelos. Morrer de sede, das sombras no horizonte, enlouquecido pelos zumbidos, vozes. Nada além de água salgada, cardumes raros, o sol inclemente. Sentiu saudade dos mares de Oman. As estrelas, conjunto de histórias por concluir, historias que eram feitas de meio, sem introdução. José as mirava e tinha vontade de ser uma entre elas. O corsário tocou a aba de seu chapéu e sorriu para a memória de D. Henrique. Tinha saudade de conversar profundezas. Ai, o amigo Donis. A espera já não valia quase nada. Dias sem vento, sol perene, gosto de sal. Haveria de surgir um farol.
“Entre monstros feitos a tinta de escrever,
a bailarina feita de borracha e pássaro. Da diária e lenta borracha que mastigo. Do inseto ou pássaro que não sei caçar”. João Cabral de Melo Neto
Enquanto todos se ocupavam em pôr móveis daqui para ali, corpos da câmara refrigerada ao fogo crepitante, velhos em seus catres, bebês em incubadoras, olhar a sutura das mães, o enfermeiro Javier dava conta de seu céu e inferno, das bullerias da alma. Depois de as crianças dormirem, descalço na sala, criou novos e intrincados solos, para bailar nas folgas que viriam. Não sabia que seu filho Júlio descera da pequena cama para espiar o pai. O menino sentou-se no canto da escada, fascinado.
No sobrado contíguo, os esforços de Gaspare com os estudos eram como certos carregamentos de pesca que se demoram demais ao sol. Diante de tantas anotações pueris, sem método, o enfermeiro enterrou a cabeça nas mãos. Gaspare não sabia o que fazer. Sentia-se menino que, diante da leitura, tenta adivinhar as palavras sem as compreender. Tinha dezesseis anos de profissão, todos passados ao lado de idosos. Agora essa novidade com as mães. Seu violão era uma ponte entre o ofício e a natureza da dor.
Na cozinha, diante de uma xícara de café com gotas de vodka, Catarina seguia seus sinais de encanto, a trançar os cabelos da afeição. No andar superior, sala de contenção – só ela lavava aquele espaço - Matilde, exaltada por desejos confusos, espargia o aguadouro, a umedecer seus fios de cabelo e pensava, por razões só dela, na megera domada. A senhora Esperança fingia dormir.
Na lavanderia, a cheirar sabão em pó, Manoel saltitava, a ver se seus cordames partiam. Alev, invisível, presente em todo lugar, acompanhava aquela dança toda, na espera dos constantes chamamentos. Buscava em seu coração uma maneira de esquecer aquela cigana das mil e uma noites.
Joana, com seu gingado somaliano, tinha olhos compridos para Blackwood, ela sentada ao pé da Julieta, ele em um banco, a tocar teorba. Era o local favorito dos dois. Gilmar desenhava no ateliê, cerca de trinta e cinco novos personagens, uma saga vultuosa, chefiada por Te Dan, o vetusto detentor do poder, pelo som do pipa.
Se havia alguém que Gaspare amava e por quem doaria rim, córnea, até o coração, era Madame. Tão graciosa velhinha. O amor por ela e por todos na casa deveria diminuir suas ansiedades. Entretanto, o sentimento mais o empurrava à sua ilhota íntima. Gaspare estava descontente. Se ao menos conseguisse organizar um diário de bordo, anotar com precisão o que observava, coletar os dados de maneira coerente. Misturava às anotações excessos de afeto, delírios, digressões, sono, medo, pesadelos, desejo reprimido. O trabalho acadêmico perdia a consistência. Havia a esposa do outro, Amparo, o período em que ela residiu na Assistência, depois no Casaredo. Gaspare cuidou de sufocar o afeto que sentia por Javier, como se abafa um pequeno incêndio na cozinha. Pôs uma coberta sobre o assunto e ponto. Não seria ele, que não a tivera, a desmontar uma família. Tantas vezes ficavam juntos sem se tocar, o colega e ele. Eram irmãos de ideal, de objetivo. Gaspare sentia, sim, vontade de companhia conjugal e nem se dava conta da forma como domava seus impulsos biológicos. O mar, o Lian Gong, a capoeira, a meditação, a música, a disciplina férrea, as emergências com os pacientes e as mães. E Madame. O enfermeiro se dava bem com as mulheres idosas, também com as enfermeiras. Para ele, elas eram festa. Os médicos, admirava-os. Os demais colegas, respeitava-lhes as fronteiras. O que o andava roendo era não encontrar um problema real que justificasse sua dor. A velhice solitária era um enigma que Gaspare temia. Talvez o enfermeiro buscasse um elixir de longa vida, um componente no cérebro que mantivesse as pessoas capazes de gerir suas histórias até o ultimo pulsar, como certos cefalópodes. A enfermeira Maria já o advertira. Gaspare ia muito bem, não quisesse abraçar o mundo, precisava de algo seu, um cão, um bebê, um amante, uma atividade que desse sentido amplo ao seu talento natural para cuidar. A narcótica Adele, certa manhã, deu a Gaspare uma pintura, um casal de chocos. O enfermeiro o dispôs na parede nua da sala do sobrado. E teve piedade daquela artista em ruínas. Tão moça, tão derruída pelo vício. Parecia que o Casaredo, apesar de oásis para muitos, para Adele não representava solução.
Gaspare viu-se, por aqueles dias quase alegres, a socorrer Matilde, que dera para chorar pelos cantos, ela também com as tais dores injustificadas. Se fosse possível, atestariam uma epidemia desse mal insondável, que uivava como certos ventos pelas frestas e não explicitava sintomas. Estendeu à colega um lenço molhado com essência de capim cidreira, poderoso calmante natural. A colega sorveu o olor, aparvalhada. Ela precisava de atendimento especializado e tinha receio de pedir, orgulho, vergonha, pudor, algo desse teor. No último encontro de turno, ela cochichara um sonho estranho, que pôs Gaspare em estado de atenção. A ruiva aparecia desgrenhada, vestida em um pijama de listras cinza, branco, o rosto ferido, deitada em um leito. Pouco antes, asfixiara Madame com um travesseiro. Depois, deitou-se com a senhora e morreram, as duas, lado a lado. Terminada a descrição, Matilde deu as costas a Gaspare e caminhou, com o lenço a tampar-lhe o nariz. Catarina olhava a cena, de um dos dormitórios. Tudo era simples. Por que tanta perturbação?
Gaspare aproveitou-se de um intervalo e levou Madame até a sala em que estava o retrato dos chocos. Era a tarde da partida da senhora Rasguito. Sentia que, se apartasse a senhora da aura de morte e loucura, ela estaria a salvo de sufocações. Esqueceu-se de que ele andava tão desequilibrado quanto os demais. Em verdade, era ele quem precisava do apoio de Madame. A cachorrinha, Filó, que adotara o enfermeiro como cuidador, dormia no capacho da entrada do sobrado. O jardineiro Jair tocava sua harmônica em um banco próximo. Madame olhou para o cão, retirou o lápis do bolso e iniciou seu habitual gesto de o girar para direita e esquerda. O que contar não vinha. O sono também não, dormir sentada era possível. Tampouco sossego veio. Não demorou muito e Gaspare tornou a sair com ela, como quem foge. Foram dar no pátio da Capela Rosália. Poderiam culpar a morte pelos transtornos, porém, o portal se apresentava como o sossego esperado. Como andavam enganados, todos, sobre tudo.
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