Hospital Casaredo 67




Harmônica


O velho Jair chegara há dois meses ao Casaredo. Como alguns pacientes ali hospedados, trilhara o caminho das ruas após copioso uso de álcool. O vício o fez emborcar inúmeras sarjetas, pontas de punhal, grades, borracha sobre o lombo, latas de lixo, caixas de papelão, até uma arma apontada para sua testa. E solidão. Limpou alguns jardins na vida o homem, até de princesas. Até se encantou de uma. Havia recebido borduna de um policial e se apresentou ao portão dois do hospital, onde caiu de joelhos. Jeff o recolheu, como era orientado a fazer e chamou o enfermeiro Manoel, que se afeiçoou do homem assim que lhe botou os olhos. Um bom banho, uma muda de roupa, um prato de sopa e uma cama limpa contentariam de pronto aquela criatura expatriada. O estado de alienação em que Jair se encontrava era crítico, não tinha noção de onde estava. Não sabia se era mar ou lago o que se apresentava além do portão, se era Portugal ou Cabo Verde, norte, sul, inverno, verão. Nem que aquele lugar seria a sua redenção. Alguns meses transcorreriam e Jair obteria, por mérito, um lugar no quadro dos serviços gerais da casa. Com sua harmônica, o novo morador enfeitava as breves pausas que se permitia, entre catar folhas e capinar ervas daninhas, em especial no campo santo. Pode observar Ozório, mais um inquilino, a se mover curvado, a segurar o abdômen, e teve pena. Acenou ao cachorrinho que vinha ao lado, rabo entre as pernas, tímido e servil. Vencido pela fome, após um olhar de aprovação do dono, o cão achegou-se a Jair. Quem sabe, daquele gesto amigo, viria algum osso ou petisco. 

Na cozinha, portas abertas, apenas um gradil na base, o enfermeiro Gaspare e Madame se preparavam para criar um prato novo quando Jair colocou sua face risonha vão adentro, sem avançar o corpo no ambiente asséptico. Perguntou se não haveria algo com que alimentar o cão, era de um paciente novo, estava faminto. Gaspare dispôs água em uma vasilha e imediatamente recebeu a gratidão do animal. Dali a instantes foi Madame quem trouxe um cozido de carne e legumes, misturado a um pouco da ração de Santur. Curiosamente, o cão não apresentava pulgas ou qualquer ferida externa. O que tinha eram tetas dependuradas, cansadas de amamentar. O dia seguinte traria Adriano Santoangelo, o veterinário, para os exames de rotina, ofertados a todos os animais do nosocômio. Aproveitariam para apresentar-lhe a Filó. 


Lembranças do Tejo


Gaspare gastou um tempo a observar a cadela, lembrava-lhe uma companheirinha que ele teve, quando ainda cursava a escola de enfermagem.  Ao voltar à cozinha, para retomar seus afazeres, o rapaz percebeu que Madame havia concluído a salada de bacalhau com esmero. Naquele momento, quem cruzou o corredor e mostrou a face cismarenta foi Alev, o homem invisível. A senhora sabia que podia contar, sempre, com todos naquele ambiente. Ela os tinha em grande consideração. Suspirou. Em um relance, Madame se lembrou de um belo homem vestido de vermelho, a bailar o flamenco na festa da roda girante. Nunca vira nada tão maravilhoso. Não sabia como descrever o que sentiu e continuou a sentir desde então. Não queria mal às raposas, lamentava que se comportassem mal. Mais uma vez, pedimos paciência ao leitor, que algumas peças da história vão-se perdendo às páginas anteriores, seria aconselhável retomar algumas delas, pelo bem do memorial. Ainda demoraria, para que Madame pudesse criar associações inteligentes, tendo como ingredientes um estilete, a cor vermelha e o símbolo das nove caudas de uma huli jing.

A enfermeira Josefine veio preparar a refeição dos pacientes, como era costume e Madame pediu-lhe, com o olhar, que continuasse de onde parara, faltava a arrumação da salada nas travessas. Era a primeira vez que ela dividia a tarefa com a moça. Deixou todos os utensílios utilizados, resíduos de corte, em perfeita ordem. Olhou para Gaspare, como a tranquilizá-lo, que seguisse a admirar seu bichinho. Madame afastou-se a distância de duas mesas, tomou seu caderno e primeiro anotou a receita que compusera, então seguiu a contar histórias. 


 

“Todos os gestos do fogo que então possui dir-se-ia: gestos das folhas do fogo, de seu cabelo, sua língua”; João Cabral de Melo Neto

 

 

J.G., o desenhista da lousa, funcionava como repórter diagnóstico no hospital colônia. Pelo menos era assim que pensava o doutor Wong Lam, sempre atento às sua expressões. A mais nova paisagem, uma ponte do Douro, requeria reflexões. Naquele dia de Ozório e Filó, J.G. desenhou três situações importantes. Primeiro, não esquecessem da senhora Esperança, ela estava em cárcere. Foi assim que a representou, amarrada com cordas, ao canto de um cubículo, o espectro da senhora Marscha a envolver-lhe, em abraço cor-de-rosa. Segundo, uma porta de armário de medicamentos, destrancada. Terceiro, e essa não poderia ser atendida no mundo dos vivos, Marscha a chorar muito, na porta da Capela Rosália. A figura tinha água até o ventre. J.G. havia noticiado, antecipadamente, a viagem da mulher do enfermeiro Javier em uma charrete. Também avisou sobre coisas miúdas, como um apaixonamento entre cães e uma ninhada de nove filhotes. O surgimento de vários gatos no campo santo. O crescimento de muitos lírios roxos. A figura imponente de Javier, vestido de toureiro, pintado a giz quente, presente de Alev. Marscha apareceu mais uma vez no desenho de J.G., a sorver duas toranjas do abdômen de um homem e vomita-las em um balde. 


A narcótica Adele, ao olhar esses desenhos sobre a mesa da doutora Dung Hanh, no ateliê, compreendeu que precisava emendar-se. A moça, munida de leve perversidade, guardou impressões para si e retratou algo delas nas próprias pinturas. O tema escolhido – raposas. As peças inauguravam uma fase autoral. Não demorou muito e a doutora Dung Hanh decodificou as imagens. Quão frágeis eram as pessoas, quão criativas suas maneiras de se expressar, entregar faltas e sucessos. 


O armário destrancado da farmácia. Uma prática usual, não pareciam necessárias cópias de chave para cada atendente, ou obrigação ou zelo para uma só pessoa. A partir do desenho de J.G., Gaspare assumiu a responsabilidade pelo setor, ao menos até que viesse um armário com código eletrônico. Se isso impediria novas intoxicações? Só o tempo. A senhora Esperança. Mais alguns dias e a camisa-de-força foi retirada. A senhora, ainda feroz, precisou permanecer na cela sob sedação. O tratamento durou quinze longos dias, muito dele retratado por J.G. O empenho da enfermeira Matilde com o caso era o de um paladino. Só ela podia abordar Esperança, sem ser por ela atacada. As visitas invisíveis que a paciente recebia, J.G. as representava por imagens escuras, a senhora Marscha entre elas, a servir de escudo cor-de-rosa. 


O doutor Wong Lam convidou à equipe maior vigilância, sem causar alarde. Todos deveriam atuar como parte genuína da paisagem, como um vento ameno do outono, a chuva elétrica, os vários climas que se apresentavam em um só dia. Pediu, enfaticamente, que parassem de atribuir ao enfermeiro Javier tanta beleza. Fazia mal para todos direcionar carga afetiva dessa natureza sobre uma só pessoa. Era como materializar a inveja, o ciúme e a vaidade. Além do sentimento de humilhação, os vibriões psíquicos criavam feridas invisíveis, intratáveis. A huli jing sentia o cheiro de desordens inconscientes e atacava sem pudores. Wong Lam fez ver que todos eram Javier e todos eram huli jing.


Lírios roxos


Foi nesse tempo, o de rever procedimentos e cuidado, que uma explosão de flores sobejou o jardim da Capela Rosália. Era um prazer indescritível tomar água em qualquer parte do Casaredo. A administração de medicamentos aos pacientes foi reduzida e mesmo substituída por versões fitoterápicas. O capim limão e a lavanda prosperaram. Os alimentos tiveram seu sabor ressaltado por cominho e alho poró colhidos na horta comunitária. Uma alegria serena povoou a casa. A sensação era de limpeza. Agora, valeria ter os pés no chão, atenção máxima e produzir higiene mental. Era natural que a senilidade trouxesse problemas todos os dias. Com a infância, não era diferente. A esperança se concentrava nos adultos, mediadores dos extremos, auxiliares da vida intrauterina, do nascimento até a morte natural.


Os médicos ficaram satisfeitos com o anexo concluído e aparelhado, ao lado do ambulatório. Um ótimo espaço para socorrer e atender casos graves, ou que exigissem intervenção cirúrgica urgente. Os pacientes que necessitavam monitoração contínua foram transferidos para a nova enfermaria, ao lado da UTI. Entre eles estavam Ozório, paciente de radioterapia e Kyle, o ator, que oscilava entre sutis períodos de consciência e não necessitava mais do tratamento de casulo. Mais uma carta chegou para ele, no dia em que Gaspare o instalou no novo leito.


Kyle,

Dentro da lata decorada 

deparei-me com ternura e arte

Render graças deveria ser natural, gesto simples

Algo como curvar-se, elevar os olhos

Confesso, foi necessário conter o êxtase

Antes eu te ofertasse o voo de uma andorinha de asa negra

Em tarde tão fria de primavera

No coração, as correntezas barrentas dos temporais

Ainda carregam libretos, todos os sabores

 

 

 

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