Hospital Casaredo 66
Aldeia do Xisto, Serra de Lousã, Distrito de Coimbra, Portugal
Flamenco ou fado e abandono
Correm os trens sobre o Douro. Enfrentam as águas de tantas histórias, de tantos poetas, de tantos vinhedos, de tantas jornadas anônimas. Não param as cantigas de lagar, a não ser na Ermida. Para que tanto memorial. Lampejos de caminhar pelos trilhos voltavam a Madame, encharcada a Moscatel. Não que ela os pudesse oficiar, porém, como se os passos imaginários, dentro de botinas mais largas que seus pés, laceadas a maresia, fossem seus. Vinha-lhe o toque do tecido de certa casaca, a sensação de olivas em lugar de botões. Vinha junto um aroma de sabão francês, poucas vezes aspirado, o rosto quase nunca mergulhado naquele peito. O que fazer, se não havia sensatez no ato de chorar. E aquela voz magoada entristece quem lá passa[1], o coração da senhora cantava em segredo, algum remorso, algum arrependimento.
Há muito, Madame não folheava antigos cadernos seus, abandonava-os em diferentes espaços, dependendo do apresso com que o enfermeiro Gaspare tratava tais relíquias. Quando andavam juntos até o Loto, que todos recordem, se tratava de um espaço lúdico, de farta produção artística, Gaspare fazia questão de levar, antes, a senhora ao cofre, no escritório do sábio Wong Bohai. Virava com ela a combinação e mostrava onde dormiam os escritos originais que ela acumulava, isentos de traça, mofo e adulteração. Para que tantos papéis. Aquele ato de abrir o cofre permitia escutar o apito agudíssimo do trem, a zarpar da Ermida, deixando para trás histórias infantis.
Naquela manhã de primavera, o Casaredo cheirava a sabão francês, presente da Luariz. Aluada, Madame se julgou fora do mar, fora do som, fora do sol, fora da terra portuguesa, fora do passo. Pura insensatez. Olhou seu amigo, que digitava sem cansar, um sorriso na face inteira, satisfeito de algo que lhe escapava. De vez em quando se ouvia, dos lábios do enfermeiro, coração mais sem cuidado[2], murmúrio que assenta a um trovador. Quem sabe o rapaz soubesse onde andavam as folhas soltas, as duas palavras quase mágicas que Madame quereria reler, como estás. Foi um momento breve, insensato, de dor fina como apito de trem. Madame sossegou, já possuía este dom. A história vinha contida em um botão de certa casaca púrpura, não era sua, não lhe cabia chorar. Que se registre, a sua história era diferente, era digna, Madame não se lembrava e era isso. Que chorasse o Carlos Ramos[3] a descer as vielas de Alfama, o fado da sua guitarra, era mais bonito e real. A vitrola daquela manhã, no Loto, insistia no fado antigo, a acalmar o coração de J.G. Se havia algo para contar, que se falasse então da família do enfermeiro Javier, de vermelho, rosas e vento. Madame esboçou um parágrafo.
Pierce, cunhado de Javier, não esperava topar com ventanias. Veio ao Casaredo à procura de Amparo, a pedidos de sua esposa. As irmãs enfrentavam um atrito mal resolvido que já durava meses, era necessário esclarecer, pacificar, por elas, pelas crianças, pelas famílias. Agrado sabia que o entendimento só ocorreria no contato pessoal, queria ela encontrar a irmã, porém, com os filhos pequeninos, a empreitada se tornava difícil. Pierce fora encarregado de acompanhar Amparo e Júlio, se ela aceitasse, para que passassem uns tempos na Cidade do Porto. Amparo, em silêncio rancoroso, não contara à irmã sobre a gravidez, tampouco dos desentendimentos com o marido. A causa da ruptura entre elas passava por este assunto.
Entre Javier e Pierce o relacionamento era superficial, não havia concordância em sequer um ponto de vista até aquele momento. Pierce classificava o cunhado como um aluado emocional, afeito demais ao trabalho, na certa para esconder-se de um casamento mal sucedido. Sentado na varanda do sobrado, o enfermeiro dava de mamar a Esmeralda quando avistou o visitante. Um Javier sereno, quase contente o recebeu, as faces coradas, os olhos vivos. Júlio e e o cão Santur brincavam com um esguicho no jardim, fazia muito calor. Rever o tio foi bom para o menino, que logo perguntou dos primos e convidou o tio para o brinquedo. Por instinto, Pierce explicou ter vindo falar primeiro com o papai, depois agradeceu por isso. O cão tratou de envolver Júlio no aguaceiro e seguir brincando.
As mulheres da limpeza concluíam a faxina naquele momento, a senhora Chang Chang logo chegaria, para tomar conta das crianças. Javier convidou o cunhado para irem juntos ao refeitório, assegurando que havia de bom comer. Pierce não se surpreendeu ao saber do casamento desfeito, só se confirmava a impressão turva que ele guardara. Havia pouca gente na sala, a brisa do mar convidava à salada que os dois tinham sob os olhos. Javier, com uma humildade que até ele desconhecia, dispôs dos fatos e das opções que teve nos últimos meses. Fora um erro casar-se? Talvez. Júlio e Esmeralda eram luzeiros deste erro. O que o bailaor poderia acrescentar à argumentação? Pensara em ir embora quando a esposa partiu pela primeira vez, quis deixar tudo para trás, o que o tornaria num covarde. Perderia de vez o crédito perante si mesmo. Agora que se consumara a separação, Javier sentiu-se honrado em assumir seus filhos, manter os vínculos familiares parcialmente intactos. Contou que fora a senhora Chang Chang, no momento mais agudo da angústia, quem aclarou seu coração. A senhora ponderou que, caso o enfermeiro permanecesse com suas funções no hospital haveria teto, calor para as crianças e apoio de colegas leais. Haveria futuros para todos, notícias da esposa, que optara por um novo caminho. As coisas entraram nos eixos em poucos dias. Dava para sentir o ambiente leve. Os meninos eram dóceis. Júlio quase não fazia perguntas sobre a mãe. Pierce, entre intrigado e encantado, acompanhou todo o turno do cunhado, auxiliou em alguns procedimentos, foi angariando respeito. Javier, sincero, conquistou Pierce. Mais tarde, ante as fotos de Amparo distribuídas pela residência, bem como um quadro dela na sala, compreendeu que o rapaz era digno de crédito. Ao pernoitar com a família, pode presenciar Javier a fortalecer as memórias do filho, com histórias que envolviam a mãe. Antes de dizer boa noite a Júlio, enquanto embalava Esmeralda, o enfermeiro reafirmou, nostálgico, que Amparo saíra em caravana com uma trupe de ciganos, para saber da vida em terras sem mar. O amor se revela também no deixar ir.
Júlio não tinha perdido o ar desconfiado em relação à irmã. Não demostrava ciúmes, tampouco era indiferente. A distância entre os irmãos era até elegante, foi o que o tio percebeu. Javier, em tratamento médico, tomava ciência de suas responsabilidades, facilitava a adaptação dos filhos, transparecia segurança, fluidez. A prática do flamenco não foi mencionada ao cunhado, não era oportuno falar desse assunto, ao menos por enquanto. Também não contou que o sobrado onde morava estava registrado no nome dos filhos, ele em usufruto até que ambos chegassem à maioridade. Na próxima folga, dali a alguns meses, as coisas estariam melhores, e então a família faria uma visita à Rotunda da Boa Vista. Talvez fossem, todos, passear por Lisboa.
Pierce se despediu de Javier no portão três. No mesmo instante, chegavam um velhinho samango e um cão, mistura de bassê e todas as raças. O homem, muito sujo, barba e cabelos brancos longos, trazia o cão em uma caixa de frutas, o paletó que vestia em farrapos e nada mais. Outra instituição não lhe daria guarida. Ozório, se chamava. Contou a Javier que ficava sentado na caixa quando precisava mendigar, o que era a todo momento. Que o cão era seu único amigo. Cansado do frio, da chuva, da fome, do largado em que se tornara, viera pedir um prato de comida e, quem sabe, um leito. Andava com dores fortes do lado esquerdo do corpo. Pierce pode entender, finalmente, a força de seu cunhado, alimentada pela necessidade de cuidar. Compadeceu-se. Quereria ele possuir ideal dessa natureza. Vira mostras desse apaixonamento no dia da travessia, talvez com inveja. Sossegou seu espirito, aceitou o homem de luz e imperfeições que o cunhado era. Seguiu tranquilo para casa. As crianças ficariam bem, tinham um bom pai. Com Amparo, a aproximação deveria ocorrer de outro modo, havia conversado com o enfermeiro Alev sobre o assunto. Sobretudo, após conhecer certos detalhes da partida da cunhada, Pierce não sabia que reação viria da esposa, ainda não decidira o que e como contar.
Novos pacientes
Ozório foi conduzido ao ambulatório por Javier. O doutor Luiz Pedreira não demorou muito para diagnosticar um câncer de baço em estado adiantado. O tumor tinha a dimensão e forma de duas toranjas. Todos os médicos foram chamados e, embora não fosse sua especialidade, o doutor Itaú propôs que o homem ficasse com eles, o estado era alarmante. Um oncologista foi chamado para uma avaliação. o Casaredo se ajustaria à realidade deste paciente, para ajuda-lo a morrer com dignidade. O helicóptero logo trouxe Alejandro Coscal, médico de renome na Europa, especialista em doenças degenerativas.
A enfermeira Josefine e Alev foram acionados. Ele para banhar, ela para aparar os cabelos de Ozório. Alev pediu ajuda ao enfermeiro Manoel, precisariam tratar piolhos, bichos de pé, micoses, uma escara na nádega. Sem indícios de DST[4], os exames de sangue afastaram esta suspeita, houve liberação também para AIDS. Os pulmões estavam muito avariados pelo fumo, não hospedavam o bacilo de Koch.
A solidão em que Ozório se encontrava pareceu agravada por tanta atenção. Ele só fazia chorar. Quando a enfermeira foi cuidar de sua barba e cabelo, o homem chorou ainda mais. Perdera o contato com a filha, com quem tivera grande discussão e troca de ofensas. Alev era habilidoso com estes quadros de melancolia, logo estimulou Manoel a brincar, saltitar. O velhinho foi-se acalmando e Josefine pode melhorar-lhe a estima, cuidou também das unhas das mãos e pés.
Javier veio render Alev, fez uma inspeção nas arcadas dentárias do idoso. Não havia dente que olhar. As gengivas, um pouco irritadas. Ozório não pode deixar de comentar sobre a beleza daquele homem. Pediu desculpas aos outros e reafirmou, que inspiração possuía o enfermeiro. Era de se espantar que estive ali, a cuidar de gente como ele e não a brilhar em um palco ou arena. Sentia-se virtuoso por isso. Que os outros não se entristecessem, a beleza era dádiva e também penitência. Arrematou seu discurso com o pensamento de quão agraciados eram todos ali, por compartilhar dela, beleza verdadeiramente humilde.
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