Hospital Casaredo 61

 



Um artista

 

J.G., o paciente que desenhava na lousa, antecipou em pelo menos cinco horas a notícia do falecimento da senhora Marscha, tombada na areia. Uma representação, mais ao canto direito do desenho, ilustrava a pira funerária. A doutora Dung Hanh sempre visitava este paciente. Tomava-lhe a mão, conversava em vietnamita com ele. J.G. sorria de orelha a orelha, como se ouvisse sinos. Ela lhe pedia vênia e fotografava a lousa, que sempre vinha assinada. O desenhista esperava com ternura a atenção da jovem, mostrava-lhe seu trabalho e saudava a máquina de fotografar com as mãos postas. Só depois de documentado, o desenho era apagado, e novo registro aparecia, em momento oportuno. A câmera, de alta resolução, fora gentilmente presenteada à doutora por Alev, o homem invisível. As fotos dos trabalhos de J.G., escolhidas com critério, ficavam em exposição, no corredor que levava ao refeitório do hospital. Esses documentos, sobre o episódio que envolvia a senhora Marscha, destacaram um detalhe singular. Que o amigo leitor tenha paciência, já se o vai contar.

 

Embora todos os enfermeiros experimentassem move-lo, J.G. paralisava, não podia desenhar fora de seu espaço familiar. Tampouco em qualquer área externa do hospital. Onde melhor se expressava era em seu leito. J.G. possuía quatro quadros de giz iguais, porém utilizava apenas um para seus trabalhos, bem como o giz, sempre branco. Suas mãos eram um tanto ásperas. Gilmar, todas as noites, antes do desenhista pegar no sono, por poucas horas, lhe passava um creme de camomila. Massageava por cinco minutos cada mão e então, agradecido, o senhor descansava. 

 

A terceira hora da madrugada era o momento em que Alev iniciava seu turno. Invariavelmente, o enfermeiro acendia para J.G. uma lâmpada direcionada, puxava as cortinas da direita e esquerda, para não amolar o senhor Sancho e o senhor Goles. Dava o quadro ao ancião, que trabalhava até a chegada da enfermeira chefe Maria. Ela então o levava ao sanitário em companhia de Gilmar, cantava, ninava, dava o café da manhã. Somente Gilmar era tolerado para auxiliar nas abluções. O velhinho chorava muito quando algum acidente nesse sentido acontecia, mesmo que o enfermeiro Manoel o consolasse com seus saracoteios, enquanto Gilmar procedia a limpeza. Depois do ritual de higiene, nem sempre prazeroso, o desenhista dormia mais hora e meia, aceitava o banho que Gaspare lhe dava, às vezes de chuveiro – J.G. ainda ficava em pé e caminhava -, fazia os exercícios que o enfermeiro propunha e voltava ao leito. Antes do almoço, J.G. desenhava mais uma vez. 


A noticia de tabloide

 

O doutor Wong Lam não se opôs a que Jerônimo Alcântara contasse a história do falecimento da senhora Marscha em seu informativo, editado em Vila Nova de Gaia. Não se enganassem, o tabloide tinha alcance ilimitado. Por conta das crônicas de saúde que o repórter divulgava, vez ou outra cientistas e espiritualistas, que se esforçavam para obter respeito na academia, pelas ideias que defendiam, vinham ao hospital, a fim de coletar dados para artigos, ensaios, relatos de experiências. Saiam embevecidos das visitas, e mesmo que tivessem dificuldade em submeter suas teses, passar o dia no Casaredo era compensador.  Os profissionais visitantes, na maioria, apoiavam as ações fraternas ali desenvolvidas, em prol da vida. 

 

Os dias davam vez às noites, com as surpresas dos nascimentos, as despedidas, as estripulias individuais, também as do coletivo. Havia períodos longos de chuva, frio e, quando o sol voltava a brilhar, parece que o relógio acelerava. Alternava-se a atenção a um ou outro dormitório, os atendentes quase sumiam no cotidiano, constantemente atarefados. Quando o cansaço se impunha, pediam um vale e escapavam até o vilarejo mais próximo, uns de bicicleta, por algumas horas. Até Maria usava dessa prerrogativa. A senhora ia, em geral, tomar chá de jasmim. Os enfermeiros floresciam, lá e cá, um beijo, uma pintura, uma canção, um instrumento musical novo. Dançavam às vezes, nos bailes ou cafés dos distritos. Caminhos alternativos, feitos à pé, ampliavam as possibilidades de refazimento das rotinas densas. Havia as rodovias secundárias, para se percorrer na furgoneta, havia a estação ferroviária. Para se chegar à Cidade do Porto, podia-se tomar condução há dois quilometro da praia. Com boa vontade, ia-se também à pé a Vila Nova de Gaia. Javier aproveitava-se de todos os intervalos possíveis, os da escala, os de barganhas.


Flamenco

 

Eis o singular registo há pouco mencionado, mais uma antecipação dos fatos, desenhada por J.G. Alev, o homem invisível, descobriu Javier e a razão de seus sumiços, em uma noite de lua cheia. A senhora Chang Chang, conhecedora da situação, cuidava de Júlio enquanto o pai estava fora. Alev reparou em o quanto o colega andava disposto, remoçado, menos nuvioso, mais próximo de todos. Seria uma nova saia? Gravata? Pois, uma roda de flamenco ao ar livre, há três quilômetros do hospital. O enfermeiro, em seu disfarce peculiar, seguiu Javier. Ficou hipnotizado, pelo bailaor, pela fogueira, pelo perfume forte das damas. Javier, vestido de vermelho, inclusive os sapatos. Alev não conseguia fechar a boca, desviar a atenção da dança, do corpo esguio do rapaz. Quando despertou afinal, pode chegar-se a um tocador de carrón. Havia um dumbeque ao lado do percussionista e Alev, elegante, pediu para tocar. Um tanto desconfiado, o músico Calao iria agradecer depois. Uma química eletrizante ocorreu naquela madrugada, pôs a todos em êxtase. Ao retornarem ao hospital, o dia a amanhecer,  Alev vinha abraçado ao dumbeque, satisfeito como nunca o tinham visto. Murmurava vez ou outra si quieres agua fresca niña, ven a mi pozo niña, ven a mi pozo[1]. Fez acordo, com Javier e a companhia. Voltaria, para tocar em outras ocasiões, quando os turnos no hospital permitissem. Inebriado, pela música, pela dança, pelo olor sensual e por sangria, no dia seguinte Alev, ora aceso, ora invisível, precisou funcionar movido a aspirinas. A satisfação, entretanto, não se apagou mais de seu rosto.


J.G, na noite do flamenco, desenhou no escuro. Na lousa, que refletia o brilho da lua, surgiu Kyle, travestido em Vera, dentro de um dumbeque ricamente decorado. O ator foi representado do tórax para cima, com se saísse de dentro do instrumento. Lembrava uma formosa sereia. O rosto era representado à perfeição, não deixava dúvidas. 



[1] Agua Fresca – Luis de Cordoba e Vicente Amigo

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