Hospital Casaredo 60



Sparrows e grous

 

Como se fora escrito nos joelhos, havia uma folha amassada sob o casulo de Kyle. O enfermeiro Manoel nada disse, apenas a esticou com cuidado, era papel de seda.

 

el viaje pasa, Barceloneta

el ajuste

el lucero

la mañana

simplemente

no pasa

el efecto del candor

eso es la riqueza

en este mundo


 

Madame, diante de uma roseira, assim que percebeu a presença dos pequeninos, a correr em disparada pelo calçamento, seu forte alarido, teve ímpetos de partir. Várias mães, tagarelas, faziam tricô sentadas sobre o gramado em bonitas toalhas xadrez. 

 

Passava um quarto das dez horas da manhã e a senhora deslizava sozinha a cadeira, pretendia o trajeto até a lavanderia, na esperança de encontrar o enfermeiro Manoel. Alev, o homem invisível, surgiu ao lado dela e permaneceu em silêncio, a aguardar alguma manifestação. E o pedido veio. O rapaz, sem surpresa, curvou-se, tomou-lhe a face entre as mãos e disse, em turco, estou aqui, te amo, sofrerei se partires. Bastou a melodia naquele momento, Madame reconsiderou toda sua vida, sorveu o ar com mais vagar, sentiu a mão do rapaz, agora em seu ombro. Em retribuição àquele olhar gris, pacientemente a senhora indicou o corredor, para que retornassem ao dormitório. Alev contou-lhe os batimentos pela carótida, estava arrítmica, a pele enregelada. Apressou o passo e dirigiu-se à enfermaria. No caminho, ambos puderam testemunhar a chegada de uma parturiente. Logo, mais uma criança viria ao mundo. Madame cedeu, a vida merecia mais uma voz. Apagou mais uma vez.

 

O hospital tornou-se benefício precioso para nascituros e suas mães. A senhora Chang Chang organizou a ala de tal forma que as nutrizes podiam permanecer hospedadas por até seis meses. As que tinham condições, recebiam alta após o puerpério. Todas contavam com assistência social e jurídica, além dos cuidados de saúde, para elas e seus bebês. Três mulheres ocupavam leito no dormitório maternidade. Era início de noite, lua cheia. Um casal, gêmeos univitelinos, acabara de nascer. Miss O’Brien, a mãe, possuía um halo estelar, Madame a representou assim em seu caderno, o mesmo ocorrendo com o senhor J.G, o que desenhava na lousa. 

 

Miss O’Brein acreditava que a vida dava o que ela merecia, de melhor. Tal confiança abria portas, indicava caminhos promissores, evitava desastres. Na maternidade, ela era a  única mulher a portar documentos. Sua história era intrépida, fugira de um marido alcoolista e violento que, por pouco, não lhe chutou o ventre enorme. O apoio dos parentes lhe foi retirado, acusaram-na de abandonar o lar. Apesar das dificuldades da viagem, vinha de Sligo, Irlanda, Miss O’Brien resistia, com certa alegria. 

 

O  trabalho de parto a pôs em alerta na praia. O casarão, ela soubera dele ao ler um folhetim, esquecido no banco do trem. Serena, como se pode estar em uma hora dessas, a futura mãe administrou as primeiras contrações, pediu ajuda a pescadores, com as poucas palavras em português que conhecia. A estrela permitira a ela chegar a uma pousada, onde havia uma edícula para alugar. Miss O’Brien foi recebida com gentileza pela dona do espaço, sem carta de recomendação ou fiador.  Sparrow, seu primeiro nome, era tão luminosa que, ao atravessar o portão do hospital, amparada pela nova amiga, atraiu de súbito a afeição do músico Te Dan, que se dirigia ao jardim, para tocar seu pipa e amainar o ruído infantil. Antes de nascerem, os filhos de Miss O’Brein ganharam um padrinho, a quem muito se afeiçoariam. 

 

Os dias de convivência pós parto permitiram a Sparrow fazer novas amizades. As enfermeiras Bernice, Josefine e Clarice chegaram logo ao seu coração.  As colegas de quarto, atraídas pela mesma estrela, granjearam voz e voto pela primeira vez. No Casaredo, iriam refazer-se dignamente, oferecer algum conforto aos seus bebês. Ao sairem dali, teriam um ofício. A senhora Chang Chang encantou-se de Miss O’Brien, assim que a viu. A nova mãe receberia, de fato, o melhor da vida.

 

A Pousada dos Marinheiros, distante cerca de oitocentos metros do hospital, era administrada por uma açoriana conhecida como Sinhá Comadre. Há duas semanas, a senhora internara seu companheiro de vida, o senhor René Dacar. Otimista, de bem com tudo e todos, a estalajadeira entregara seu homem sem doer, sem esmorecer. O senhor René, após cuidadosa avaliação do doutor Itaú, foi encaminhado ao casulo, aos cuidados de Manuel. Sinhá Comadre vinha visitar o marido todos os dias, conversava carinhosamente com todos os velhinhos, trazia aos enfermeiros compotas, vinho e pães. Aos médicos, mudas de árvores e plantas. Estabeleceu vínculo imediato com a enfermeira chefe Maria e com Manoel. Foi Sinhá Comadre quem trouxe Miss O’Brien à maternidade, em sua furgoneta, a primeira criança já coroada. Sparrow, inundada pelo arroubo que a fez fugir da Irlanda, pretendia dar conta do parto sozinha. Tudo mudou ao primeiro contato com Sinhá Comadre, que a soube chamar à razão.

 

 

Nascer e ceder

 

O ambiente hospitalar respirava bem, não havia dúvidas. No entanto, apesar de irrepreensível, o lugar conservava o distanciamento comum a uma casa de socorro. Os atendentes e os médicos eram corretos, porém reservados. Havia ternura comedida, no tempo dos cinco minutos[1], como treinava a todos a enfermeira chefe Maria. Ou seja, nada substituía um lar, o convívio de uma família. 

 

O dever de responsabilizar-se pela vida vinha estampado em cada detalhe, cada ala, cada corredor da casa de saúde. Preservar os seres era programa de reparação para as nutrizes, a encargo da doutora Dung Hanh. Ela ensinava beleza com seus bordados e porcelanas de mão. Instruía também sobre respeito, pelas diferentes fases do viver. Juventude e velhice retomavam seu ponto de equilíbrio naquele espaço compartilhado. Difícil explicar que o hospital colônia, apesar de tantos exemplos positivos, não era um conto de fadas.

 

Um helicóptero transportava pacientes de um hospital a outro, bem como aos profissionais, para convenções, cursos, pesquisas. As emergências, como a do menino Júlio – e aqui pode-se acrescentar um dente definitivo quebrado, um corte expressivo no joelho, um galo enorme na testa, picada de zangão, conjuntivite, otite, amidalite, varicela, pneumonia, sarampo, vermes, fugas reiteradas, indícios de TDAH[2], além das tais frutinhas, o helicóptero também as atendia. 

 

Por graça dos protetores dos animais, o cão Santur não achou bom o cheiro das bolinhas vermelhas das quais se serviu Júlio, em profusão. O animal escapou ileso. Ele não pode, entretanto, demover o amigo do perigo, embora lhe tivesse rasgado a camisinha, em tentativa desesperada de afasta-lo da folhagem. Após ser livrado do choque anafilático, Júlio fora levado a Lisboa por seu pai, Javier, para exames detalhados. Amparo, a mãe, alheia e grávida, não tomou conhecimento da ocorrência, não deu pela falta do menino e foram dez dias de tratamento. Então ela foi embora sem dizer adeus. 

 

Na volta de Lisboa, Júlio ainda passou algum tempo no novo ambulatório. Fez-lhe companhia Dona Clementina, mãe do doutor Itaú, que estava em observação, por conta da viagem que fizera do Brasil a Portugal. Logo ela foi transferida a seu novo lar, junto do filho. Júlio ficou sozinho, tendo como companhia a fiel enfermeira Matilde. A cabelo de fogo dobrou vários turnos, para cuidar do menino. 

 

Sem que a criança desse pela situação, conviveu também com o corpo da senhora Marscha, quando do seu falecimento. A maca esteve ao lado da sua por quinze minutos, separada apenas pelo cortinado. Ninguém testemunhou o delírio vivido por ele, a não ser Madame, dias depois. Júlio contou à velhinha que falou com a morta, que sabia que ela estava na outra margem do Aqueronte. Madame entendeu o garoto muito bem, era capaz de ver coisas que os outros não viam. O pequeno descreveu Marscha em pé ao seu lado, ali na enfermaria. Estava diferente, envolta em tecido muito fino, brilhante e rosa. O fantasma acarinhou seu cabelo e disse uns versinhos dos quais ele se esqueceu. Lembrava-se apenas da palavra Barceloneta. Madame soube tranquilizar o menino com um toque e aproveitou para aquecer o coração dele com relação à viagem de sua mãe. Contou de Guertrud, a cabrita preferida do Casaredo, que logo viria um cabritinho, que eles poderiam ver nascer.

 

Ceder, servir, perder

 

Todas as providências para o descanso definitivo da senhora Marscha foram tomadas pela administração do hospital. Às dezessete horas, no dia do falecimento, o doutor Pedreira oficializou o óbito. Setenta e duas mais haveriam de passar e então o corpo seria cremado. Era o primeiro paciente do Casaredo a ter em sua urna um nome, também a primeira cremação. Ainda corria, a boca pequena, um medo do procedimento, de se pelar, entre todos os atendentes. No final da reunião decisória sobre um forno crematório no hospital, a moção passou, após explicações detalhada sobre as tecnologias utilizadas, sobre a idoneidade do controle legal daquela ação. Alev, o invisível, auxiliou na montagem da equipe que faria o trabalho doravante. O advogado Giulionni e o sábio Wong Bohai também se acercaram de assessores, para que a situação fosse translúcida, sempre. Mesmo assim, os corações seguiam pesados, não parecia natural queimar um corpo. Desde a instalação do forno, pedidos sigilosos, de se manter o sepultamento tradicional acumulavam no escaninho de Wong Bohai. O movimento pedia uma campanha sutil, para desmistificar o morrer. Há ferimentos sem cura? Quem detém o poder de vida e morte? Conversa longa, sem data de conclusão.

 

Perder e viver 

 

O espaço do porão, sob o Ambulatório, local perfeito para a instalação do crematório. O enfermeiro Manoel teve um sonho. Uma parede de vidro no porão, de onde se podia ver todas as estrelas do céu. As basculantes abertas, deixavam voar as tais bailarinas de que falava sua Madame. Elas riam, daquele risinho que arrepia os cabelos da nuca. A beira baixa tocava as rosas do jardim. Ao divisar a Ursa Maior no céu,  o enfermeiro, perdido em devaneios, compreendeu coisas as quais não poderia expor a qualquer colega. Quando despertou, foi olhar Madame. Com ela não era preciso falar, ela via também, e mais do que ele. O sol entrava caloroso pela janela do dormitório. O rapaz  pediu permissão e desenhou, no caderno da senhora, a planta da Capela Rosália. Mais tarde, foi mostrar o esboço ao doutor Wong Lam. Eles eram vizinhos de sobrado. Manoel estava de folga naquele dia. A senhora Chang Chang o convidou a fazer, com a família, a primeira refeição. 

 

Dias depois, o porão começou a ser ampliado, impermeabilizado, recebeu luz através da parede sul, toda envidraçada. Em frente às portas, decoradas com vitrais, a leste, abria-se o jardim e, há alguns metros, foi construída uma escada de pedras, onde se podia sentar, estender cobertas, lanchar. Uma rampa de ângulo suave e corrimão também passaram a fazer parte da paisagem, além de bancos, guarda-sóis, uma fonte, um lago com peixes coloridos que viravam, vez ou outra, jantar dos gatos. No interior da sala, lajotas em tons branco e azul. O dois primeiros ataúdes que chegaram estavam sobre a esteira. Foram confeccionados pelos voluntários que atuaram com as fogueiras, no dia da travessia. Os carpinteiros se emocionaram com o convite para este serviço e doaram a mão de obra ao hospital. Os móveis, destinados ao fogo, eram simples, claros, envernizados. Foram forrados pessoalmente por Chang Chang. Um edredom fino ao fundo. Sobre ele dormiam, dobrados em papel de seda, dezenas de grous, feitos por várias mãos, no ateliê LOTO. Um tecido leve e transparente, azulado ou rosa, ou branco, cobria os origami. O corpo era disposto sobre os grous e vestido com uma mortalha de linho. Apenas um botão de flor, entrelaçado nas mãos do morto. A esteira, rolante, deslizava o ataúde até o forno crematório, a abertura disposta ao fundo da sala. Um retrato, que evocava a Senhora do Desterro, fora pintado pela narcótica Adele e tomava a parede norte do ambiente. Um Francisco de Assis e um Antônio, em argila e betume, do tamanho de uma criança, criação do senhor Genival, erguiam-se sobre duas colunas, lado a lado com a esteira. O escultor, paciente da casa que recém revelara seus dons, recebeu o nome por inspiração do enfermeiro Gilmar. 

 

Uma revoada de grous, emoldurada em pequenos quadros individuais por Manoel, bordados por várias mãos, foi organizada para contornar a entrada do forno. Vasos, moldados no ateliê, circundavam o espaço interno, com flores naturais e elegantes origamis. Os vitrais foram produzidos, também, no espaço de arte da doutora Dung Hanh. Um Buda em pedra sabão, esculpido por Alev, o  homem invisível, meditava sobre o lago e podia ser admirado através da parede envidraçada. Sobre a Capela se chamar Rosália, provocara alguma polêmica e enfim, o nome foi proclamado. Ainda vale falar dos tapetes bordados com mandalas, as almofadas turcas, os bancos artesanais e um par de sandálias à porta, à maneira das usadas no Oriente Médio, como se tivessem sido descalçadas dos pés ao entrar no recinto. A iluminação era indireta, azul, verde e rosa, acesa automaticamente na parte da tarde. Volta e meia, Te Dan ia tocar naquele espaço.

 



[1] Técnica de acolhimento hospitalar, em enfermarias de nascituros órfãos, tempos de guerra, orquestrado pela pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto.

[2] Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade

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