Hospital Casaredo 59




Terapêuticas


Mira-me, Miguel,

Cumo stou de bonitica! 

Saia de burel, 

Camisica de stopica!

 

Quase dois meses se passaram até o enfermeiro Gaspare voltar à cozinha do hospital, Madame faria novamente uma bacalhoada. Para um idoso, tal demora correspondia a vários anos menos. As mãos da senhora estavam rígidas. Antes de tocarem utensílios e ingredientes, Gaspare propôs uma série de exercícios de alongamento. Descuidara um pouco deles, por conta de tantas urgências, tantos acontecimentos. Postou-se atrás da cadeira da senhora e uniu seus dedos aos dela, primeiro a mão direita. As mãos de ambos, unidas, assumiram a aparência de anêmona do mar, movendo-se ao sabor da corrente. Vinte e cinco movimentos com cada mão. Depois, de frente para a senhora, Gaspare uniu-lhe os dedos e esperou que ela executasse o movimento sozinha. Auxiliou algumas vezes, até que Madame conseguiu vinte voltas. O moço estendeu a mão dela sobre a sua e lhe moveu cada dedo em separado, puxando levemente, empurrado e girando, com um cuidado de ourives. Para concluir, postou as mãos da senhora com se ela fosse orar e apontou os dedos para o peito dele, empurrou-lhe gentilmente os braços em direção ao próprio corpo. Ainda separou-lhe os dedos, como se compusessem uma estrela do mar. Depois, apertou os dedos de cada uma das mãos contra o balcão e estendeu os dedos novamente. Experimentou a pegada de Madame para colher, faca, potes pequenos, pratos, copos, tábua de picar, ovos crus, batatas e outros legumes. Madame segurou a tudo com leve tremor, porém sem riscos para si.  Quando veio a posta de bacalhau, um sorriso claro se estampou no rosto da senhora. Na receita, simples, iscas do peixe guarnecidas com cebolas, alho poró, azeitonas pretas e cebolinhas, tudo regado com azeite, sal e cominho. À parte, cogumelos paris salteados. Salsão e cenoura cortados em palitos, crus, para acompanhar. 

 

O doutor Itaú, que ainda não tinha presenciado aquela terapêutica culinária, entrou no refeitório em silêncio. Muniu-se de avental e ajudou em tudo que era de corte, com maestria. Também foi ele a colocar as travessas no forno. Murmurou, durante a tarefa, um canto melancólico, Papai Curumiassu[1], voz gravíssima. Madame olhava para o doutor e, em alguns momentos, tocou-lhe o pulso, até acarinhou seu antebraço. Gaspare, que se emocionava sempre, chorou. 

 

No fim da tarde, Itaú e Gaspare andaram pela praia. O doutor contou fatos do antigo Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, Brasil. Lá, as autoridades varriam as ruas e colhiam os pedintes, em especial homens e mulheres africanos. Estes recebiam a alcunha de alienados. Quando surpreendidos ao relento, à toa, alcoolizados, os pretos e também pardos e brancos pobres que perambulavam, viam-se automaticamente interditados, ou seja, perdiam o direito de ir e vir. Por falta de estrutura hospitalar e desdém por estes humanos apreendidos, havia mortes à mingua, de fome e sede. O doutor estava aliviado, por ter encontrado um lugar onde gente era tratada como gente. Onde os conceitos de cuidar eram reavaliados a cada protocolo. Chorou de saudades da mãe. Os dois homens se ampararam um ao outro e tal gesto recompôs Gaspare. Os dois ainda falaram sobre a variante que se abria no Casaredo, o cuidado com os começos da vida e com quem a gesta. Gaspare não possuía treinamento para estes casos, nem se considerava jeitoso com mães e bebês. Auxiliara quatro partos até então. No primeiro, desmaiou. A doutora Cusa lhe deu toda assistência necessária e o aconselhou a repetir o exercício mais vezes, até certificar-se de suas aptidões e limites. Já no segundo procedimento, o enfermeiro foi pontual, cortou o cordão umbilical e a criança chorou em seus braços. Enamorou-se do serviço.

 

O pager de Itaú chamou. Enquanto retornavam ao hospital, o médico pousou a mão no ombro do enfermeiro. Era importante, ele alertou, se preparar também para os passamentos. 

 

Como não sabia como agir, Gaspare entregou ao doutor um novo bilhete, endereçado a Kyle. Contou-lhe do número de cartas que havia, em uma vasilha na UTI.

 

Amor,

 

Masoquista é um pedaço de mim, eu o considero abjeto. O pedaço oral, com primazia em meu caráter, deixa-me estarrecida. Que bichos sabem fazer do silêncio um tiro preciso? Não, não quero aniquilar irmão algum, aquieta teu coração. Quero todos a botar o próprio bloco na rua, liberação para o outro, em qualquer sentido. Libertação para mim, há muito em cárcere domiciliar.

 

Ainda não tenho condições para soerguer-me. No interior da mata eu me oculto, como a huli jing. Quero aprender a caçar, de modo limpo, honrado, pegar meu fado e ir comer quieta em um canto. Ser raposinha de uma só cauda, que não roube comida da boca de corvo algum. É isso, sem exagero, sem ardil, sem pedir nada a ninguém. Não há orgulho neste desejo, um resto de dignidade, talvez. Não quero mais ser soterrada pela lava que eu mesma produzo. Não quero derreter meu digestório com meus ácidos. Creio que te perdi. Se eu não te achei...

 

Sempre contigo.

 

Música e missão

 

O ensaio musical do Casaredo soou um tanto triste na noite chuvosa. Há desses gravames para quem faz Arte. A técnica não controla as emoções. Gaspare levara Madame consigo, depois de comunicar o procedimento a Maria. Os colegas não fizeram caso, ela era benvinda.  A senhora cochilou boa parte do tempo, sentada em uma poltrona. Javier estava presente pela primeira vez, inspirado pela doutora Dung Hanh, ainda silencioso e distante. Gaspare apresentou um novo tema para o repertório, falava sobre deixar para trás os erros. 

 

Deixei atrás os erros do que fui
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho
No episódio que fui e na paragem
No desvio que foi cada vizinho

No episódio que fui e na paragem
No desvio que foi cada vizinho

Deixei tudo isso como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua[2]

 

O que iniciou tenso, de difícil consecução, revelou-se na primeira peça apta para ir a público. O grupo suspirou em uníssono e riu, finalmente o Casaredo nascera, envolvia-os em bons augúrios. Cogitaram, por algum tempo, no que poderiam tocar no dia em que viesse a Roda Girante. Cinco temas, mais o que fora concluído naquela noite pouco sedutora e fria, poderiam servir para breve entretenimento. Conversariam mais tarde com a senhora Chang Chang, para decidirem juntos. 

 

Os dias a se contarem, molhados, musicais, cheirosos de oliva e castanhas. Depois de muita burocracia, Dona Clementina Ramos finalmente pode ser transferida para o Hospital Casaredo. Um helicóptero oficial trouxe a ela e Clarice Antunes, sua cuidadora, até a Praia do Homem do Leme. Itaú conduziu a mãe em sua cadeira, diante do mar, um encontro caricioso para a senhora. A Clarice foi dado tempo de respiro, de chegar, e ela o dividiu em dois. Caminhava um pouco atrás de mãe e filho, para dar conta das emoções. Tanto medo de embarcar no avião em São Paulo, ainda em solo brasileiro; não sabia o que encontraria, que país era aquele para onde a mandavam, que gente haveria nele, ela que ouvira tantas coisas ruins sobre colônias e colonizadores. Pois deu com aquela costa, aquele mar, o farol, as ondas a quebrar tranquilas, o brilho do sol, o sotaque do povo. Ao chegaram ao hospital, Clarice voltou-se para o casarão, as grandes janelas, o azul, creme e branco das paredes contra o verde cromo da vegetação, as ipomeias à entrada, a areia clara, um cão em posição de descanso, o olhar amigo do homem mais lindo em que já pusera os olhos, aquele ser potente, Itaú se chamava e que ela poderia ver quando quisesse. Duas moças sorridentes, encantadas, receberam Clarice, uma delas carregada de mantimentos de feira; as duas soavam feito cabritinhos. Este foi o segundo e definitivo respiro.

 

A pele de Clarice era uma obra de arte. Parecia um mapa de muitas ilhas. Os desenhos, claros, começavam do lado esquerdo do rosto e desciam pelo pescoço e pelas costas, de forma assimétrica. Chamavam muito a atenção e a moça convivia bem com os olhares que paravam, curiosos, a entender se eram tatuagens o que a pele anunciava. Ao contrário de outros desenhos de vitiligo, que muitas vezes afastavam, os de Clarice inspiravam o toque. Logo, ela percebeu dois pares de radares, a procura-la onde quer que fosse. Foi aquele detalhe, o olhar, que inspirou um relacionamento ímpar, durável e genuíno. A jovem havia sido recomendada ao doutor Wong Lam por colega do Brasil, Carlos Even. Clarice cuidava de Clementina há três anos. Mesmo cheia de medo, uma oportunidade imperdível para ela se confirmava na nova casa. O mais importante é que se afeiçoara à mãe de Itaú, sintonizava com a paciente. Foi um alívio, para Clarice, deixar a clínica e São Paulo para trás. Um espanto, conhecer aquele pedaço bonito de Portugal.

 

Chegadas e partidas

 

Na manhã em que chegou Clementina, faleceu Marscha. Antes de tombar, a senhora sentou-se na areia, rente às ondas. Havia dado a sua escapadela habitual, sem ser captada pelas imagens do portão quatro. O porteiro André habituara-se a perceber o ir e ver daquela paciente. Naquele dia, Marscha lhe acenou e o seu olhar era de adeus, ele garantiu. Por esse olhar, por intuição, o porteiro acionou o pager de Bernice, que logo veio socorrer.  A enfermeira ainda concedeu um momento de flerte ao rapaz, não passou de cinco minutos. 

 

Bernice encontrou a senhora Marscha caída de lado, as mãos cruzadas sobre o  peito, um sorriso no rosto. À direita do corpo, uma forma esculpida na areia lembrava rosto masculino, um par de asas às costas. Como a atendente não tinha forças para erguer a senhora morta, chamou Gaspare com código vermelho. Ele e Gilmar vieram logo, trazendo a maca. Gaspare anotou a hora do socorro, já não havia como reanimar a paciente. A falta de Marscha foi sentida no dormitório um. As senhoras mais lúcidas sinalizaram o leito vazio. Um choro contagiante acionou o alarme. Dessa vez, o socorro demorou alguns instantes para chegar. 

 

Júlio aniversariou por aqueles dias. Sentia-se melhor, após o envenenamento com as bolinhas da praia,  ainda exigia cuidados no ambulatório. Javier acabara de lhe dar banho. Brincou um pouco com o filho, deu-lhe alimento e o deixou a dormir. De que maneira o menino saiu, sem se ferir com o soro, ninguém pode explicar. As grades do leito estavam erguidas. O fato é que Júlio ganhou o chão, ainda um pouco tonto, e foi direto procurar Madame. Encontrou no corredor um carrinho de medicamentos, agarrou-se a ele e chegou ao dormitório um sentado sobre o móvel, a tatear as paredes, até que pode tocar as grades de cada leito. Moveu-se à altura das senhoras, consolou uma a uma as que choravam, até todas silenciarem. Quando passou pelo leito desfeito de Marscha, o menino tocou o lençol e estendeu ali a palma da mão direita. Os pirilampos dançavam, alegres. Havia pontos pretos que logo se afastaram, voaram janela afora. Ficaram no espaço apenas luzeiros azuis, índigo, verdes, amarelos, rosa. Esta visão, Madame a transformaria em quadra. Júlio, sua missão cumprida, subiu à cama da senhora e ficaram os dois, abraçados. A velhinha ainda chorou por um tempo, sem ruído.

 

A concha iridescente se abriu na espuma

E Marcha adernou, já tornada em bruma

Não era adeus ou sofrimento

Era apenas aquele momento, o da partida

 

Joana tinha o berçário sob sua responsabilidade naquele turno. Mesmo indisposta, algo não lhe caíra bem ao estômago, seguiu a atender duas mães e suas crias. Certificara-se de que Júlio repousava no ambulatório, havia três minutos. Quando deu pela falta do paciente, precisou se escorar à porta e chorar um pouco. Uma auxiliar de limpeza a avisou sobre o estado das senhoras no dormitório um, e que o menino estava com elas. Catarina apascentou a ala, amparou Joana e ministrou-lhe um tranquilizante leve. Certificou-se, antes, se o mal estar derivava de gravidez. Com sotaque carregado, disse à colega que tudo estava no lugar certo. Matilde, em sintonia perfeita com a companheira, fez a tradicional mediação de danos, verificou mais uma vez cada paciente do dormitório um. 


O luto era tangível, valsava no ambiente. Antes de concluir o turno, Matilde tomou Júlio nos braços e Madame entendeu. Ele estava bem, apenas exausto, dormia sossegado, não tinha febre. Matilde ninou uma criança pela primeira vez, visivelmente emocionada. Tal comportamento interferiu, de forma pungente, no modo de sentir da enfermeira dali para diante. Com os cabelos revoltos, a trança desfeita, Matilde beijou os lábios de Madame sem malícia. Levou o garotinho ao ambulatório, ainda a dormir.

 

Borboletas

 

Clarice, atenta aos acontecimentos, aos estados de ânimo da nova casa, escrutinou seu interior, desbravou os três pavimentos. Visitou primeiro os dois mirantes, de onde se via o mar. Em um deles, ficava a sala de conversa com Wong Lam. Luiz Pedreira compartilhava parte deste espaço. Trabalhava ali no momento em que a moça entrou; o médico não se conteve, pediu permissão para olhar aquela pele extraordinária. Antes disso, estudou-lhe a íris, olhos muito verdes; descobriu um mundo a parte, que guardou para si. 

 

Chamou a atenção de Clarice um pequeno nicho de leitura no mesmo mirante, refúgio para as folgas dos atendentes. Tomou emprestado um, de título Portugal[1]. Agradeceu a acolhida quase carinhosa do doutor e foi olhar o outro reduto, zona franca, lugar de meditar e escutar música. Escolheu um disco e o colocou na vitrola, um noturno de Chopin. Olhou o mar enquanto a peça durou. Tanta beleza, tanta paz. Antes de visitar os dormitórios, a moça foi ao térreo. O local sofrera algumas alterações, sem comprometimento da estrutura e fachada da construção. As reformas haviam sido planeadas pelo enfermeiro Manoel. Havia uma singela recepção, onde os atendentes se revezavam com o público. Ao lado do guichê, dois lavabos. O consultório de Blackwood ficava à direita e o de Itaú à esquerda do corredor, ambos com banheiro privativo. O refeitório e uma sala de atividades lúdicas ocupavam quase todo andar. Quatro sanitários foram estrategicamente distribuídos neste espaço. Clarice adentrou uma sala ampla, onde ocorriam as reuniões de equipe com o doutor Wong Lam. O espaço servia também a apresentações artísticas e cursos de capacitação. O ambulatório, a emergência, a sala de obstetrícia, a sala de exames e mais quatro sanitários receberiam novas modificações em breve, teriam entrada independente. Havia um projeto para ampliação da ala materna, incluindo-se atendimento diagnóstico e creche. O desenvolvimento das obras corria sem transtornos para os pacientes. 

 

Josefine desincumbira-se do almoço e juntou-se a Clarice, supostamente para tagarelar. Contou que outro jogador de futebol, este da Argentina, entraria para o grupo de apoiadores do Casaredo. Também falou de um corredor de Fórmula 1, uma cantora pop, uma marca de medicamentos geriátricos famosa. Tomaram juntas um dos elevadores revestidos em acrílico, onde havia espaço para uma maca e dois atendentes. Os profissionais utilizavam-se das escadas, para se exercitar, brincou a jovem, hipnotizada com o rosto de Clarice. Apontou-lhe paredes, consoles, poltronas, prateleiras, onde estava exposta parte da produção artística do LOTO. Em dado momento, Josefine não se conteve e desceu a mão envolvente pelas costas de Clarice. Era como mergulhar em uma correnteza.

 

À maneira de guia, Josefine foi conduzindo a nova colega, contando que o hospital colônia contava dez dormitórios. Vários leitos ainda estavam vazios. Nove camas em cada espaço, como se sabe. Três dormitórios femininos, dois masculinos. Outro, destinado a abrigar mães com recém nascidos, foi compartimentado com biombos em tapeçaria, que forneciam um pouco de privacidade e aconchego. Tanto os idosos quanto as nutrizes eram órfãos de parentes ou amigos, foi contando Josefine, cada vez mais sussurrante. Clarice não reclamou nem esquivou-se da mão que deslisava sem pudores, já intima, a mão, daqueles desenhos exóticos às suas costas. Curiosamente, as duas andaram sem ser abordadas por qualquer vivente, durante a maior parte do trajeto. Houve necessidade de conterem os ruídos respiratórios em dado momento. Ambas foram tomadas por forte excitação e utilizaram-se apenas das clavículas para sorver o ar. Em dado momento, cruzaram com Dona Comadre, que lhes sorriu sem constranger. Apertaram-se as mãos. A senhora se tornara amiga dos pacientes, a única que os vinha visitar, por puro afeto. Josefine falaria mais dela para Clarice, em outra ocasião. Agora, era conter o mar revolto. 

 

Encontraram Bernice no primeiro piso. O que era mar, tornou-se incêndio. Dali a pouco, duas mulheres entrelaçavam as mãos pelas costas da nova musa do Casaredo. As três, para justificarem quefazer, entraram na sala de reuniões, nos vários sanitários, todos imaculados. Todo processo de sedução se deu em movimento. Para evitarem qualquer descalabro, olharam o pequeno escritório, contíguo à sala de reuniões, que fora organizado por Chang Chang com divisórias em papel de arroz, pintadas por ela. Ali, naquele cenário idílico, era o gabinete do sábio Wong Bohai, que viajava a negócios por aqueles dias. Ao contrário do enfermeiro Alev, o invisível, a pequenina senhora Chang Chang era vista em todos os lugares. No começo, ela provocou pânico, especialmente entre as enfermeiras. Tempos depois, passou a ser festejada onde surgia, do nada. Quando as três moças ousaram ir além nos carinhos entrou Chang Chang, munida de pequenos címbalos, que percutiu com harmonia. A senhora dispersou aquele grupo alegre de moças, com uma algaravia em cantonês que queria dizer tomem juízo, deu-lhes tarefas e orientou-as, a sorrir, a evitarem excessos. 

 

Clarice, acalmou-se, satisfeita, embora afogueada, pressão arterial alta.  Seguiu sozinha ao segundo piso, onde ficavam os dormitórios masculinos, com seus respectivos sanitários. Havia também um dormitório misto, mais espaçoso, separado por divisórias de tecido, bordadas por Dung Hanh e Blackwood. Ali se hospedavam os estados graves, qualificados como vegetativos. Havia seis pessoas na locação, à maneira de casulos. Manoel lhes dava tutela no momento e preparava um sétimo leito. O enfermeiro olhou Clarice com doçura, no minuto em que ela perdia os sentidos. Prontamente, Manoel usou seu leitor de pressão, que atestava alarmantes  240/180 mmHg. Deixou a jovem repousar por vinte minutos em uma maca e, ao repetir a medição, uma leve baixa se confirmou, não seria o caso de requisitar consulta e medicação. Clarice confiou imediatamente naquele homem, contou-lhe a impertinência cometida. Ele sorriu e também lhe pediu cuidado a respeito de exposições públicas, de sensações e sentimentos. Para distrair a tensão, Manoel mostrou o seu mais novo projeto, a sala para os banhos de luz e outras terapias alternativas. Ambos se dirigiram a um espaço de descanso para os enfermeiros. Manoel sugeriu que a cuidadora ficasse ali um pouco, para se refazer por completo. Ofereceu-lhe chá de camomila e não deixou de recomendar uma consulta com o doutor Luiz. Antes de sair, o enfermeiro aquietou o coração da moça, achava bonito um encontro afetivo e físico, quando era verdadeiro. Pediu para cuidarem bem daquela gestação. Clarice sentiu a correnteza tormentosa, que ia dentro, dar lugar à paz do rio Paraíba do Sul. Nossa Senhora Aparecida recebeu sua gratidão. A cuidadora encontrara um lar real, amigos leais. 

 

A sala de contenção abrigava uma paciente no momento. Acolchoado com tecido impermeável, o lugar acomodava uma maca desnuda, munida de fivelas. A janela, no alto, acompanhava toda a parede e estava protegida, almofadada. Por ali entrava sol e ar, suavizados por invisível tela protetora, à prova de puxões. Clarice espiou dentro da sala por uma janela miúda à porta, logo tratou de sair dali. Todos os ambientes eram beneficiados, nas entradas, por linda azulejaria. Aquele, o da sala de contenção, não era diferente. Antes de voltar a ter com Clementina, o pouco que Clarice ficou a olhar a paciente pela abertura da porta a fez decidir-se por ampliar seus estudos, entender o que acontecia naquele ambiente hospitalar. Matilde passou por ela e sentiu a vibração da vocação nascente. Emocionou-se mais uma vez naquele dia.

 

No início da estadia no novo prédio, Manoel requereu para si a limpeza dos sanitários. Dois dias após a travessia, a empreitada se mostrou inviável para uma só pessoa. Wong Bohai, prevendo a situação, contratou seis mulheres e três homens para serviços gerais. Mais tarde, foi necessário dobrar o contingente. Manoel não abriu mão de, ao menos, supervisionar os serviços de lavanderia, otimizados por potente maquinário, também pela presença de dez chineses, que entendiam muito do ofício. As roupas saiam da lavagem como novas. Tal regalia, assim Manoel nomeava sua nova perspectiva, deu ao enfermeiro a chance de especializar-se. Em pouco tempo, o rapaz descobriu seus dons como engenheiro, focou-os para o bem estar da comunidade. Em conversa com Matilde e Clarice durante a ceia, teve a chance de expor suas sensações e expectativas, o caminho novo que se abrira em sua vida. Desejou a mesma sublimação para as colegas. 



[1] Papai Curumiassu, mamãe Curumidari/Papai Curumiassu, mamãe Curumidaridari/O galo canta da serra, meu galo canta daí/O galo canta da serra, meu galo canta daí

[2] Camané melodiou o poema de Fernando Pessoa


[1] Portugal, Miguel Torga

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