Hospital Casaredo 58
Tudo seguia, em seu devido lugar. O tempo, o espaço, o mar, a concha, Portugal, a Cidade do Porto e a praia. Madame esqueceu, qual o nome daquela praia. Esqueceu-se, o que era mais intimidante, de como formular a pergunta que praia era aquela onde habitavam. A senhora passou o dia com suas quatro orelhas tensas, a ver se alguém, naquele perigoso asilo dizia, de seu esquecimento, algum alento. Secretamente foi, de porta em porta, a anotar logradouros: sanitário, piso um, dormitório cinco, jardim, ateliê, o coração de Dung Hanh. Sorriu e tranquilizou-se. Somente a pergunta e o nome da praia lhe fugiram, por ora. Era procedente a preocupação. Se Madame saísse do pátio e não pudesse voltar, por alguma razão, não saberia informar de onde viera, de qual praia. Esqueceu-se, também, de que usava uma pulseira de identificação. Se apertasse o botão de seu colar anti pânico, alarmes seriam acionados aqui, lá e acolá. Gaspare, o filho querido, a havia instruído neste particular. Madame também esqueceu, como se apertava o botão. Concordou consigo, há algum tempo deixara de atravessar os portões sem a companhia de um atendente ou médico. Arriscou a ação de apertar, desistiu, não viu mosquito ou o que precisasse espantar. Apertar, espantar, tudo virou um nó. O que não lhe contaram, para não a impressionar, sua cadeira possuía GPS, sua localização era monitorada por satélites.
Já que o caderno e o lápis se encontravam no bolso da camisola, Madame os pegou, apoiou as folhas no batente da janela do dormitório onde se encontrava. Interrompeu a pergunta que formulava, em qual dormitório. Havia homens a dormir ali, com os quais ela não costumava conviver. Um tanto de desconforto viria da posição assumida, talvez lhe doesse o corpo, resolveu usar o carrinho das refeições como mesa. Dali a pouco viria a cabelo de fogo, disso a senhora sabia, ela seria repreendida pela filha bruta. Insistiu mesmo assim, teve algum pavor maior, que não contou ao caderno. Ao invés disso escreveu: O comandante José Gaetano sonhava casar-se? O homem ria, tanta vez perguntou-se a mesma coisa. De fraque, cartola, insígnias, um vestido vaporoso? Sim, o idílio era recorrente e era ilusão. Se ele concebia o dia subsequente à união conjugal? Quem quer saber? O casarão à beira mar, Praia, praia, a memória não mais ajudava... dava mostras de que não fora indiferente ao ideário, o pedido a ser feito em Cotê d'Azur. Onde estaria a Rosa naquele instante? José estava no Mar das Antilhas. O vestido vaporoso adornaria a quem, além da Rosa? A música, os saraus, amparariam a sina daquele navegador por quanto tempo? A voz, viveria enquanto ele vivesse? O bucaneiro, desenxabido, recorreu ao espírito mais puro, que viajava próximo à Terra, e pediu-lhe humildemente atenção. Nossa Senhora dos Navegantes veio, não tardou.
Trataram de negócios em um salão da casa real, Alois Donis e o conde Gameleira. José já não tinha certeza da ordem dos fatos, a memória a lhe pregar peças. Propunham-se, capitão-mor e conde, uma disputa entre grupos musicais. Necessário se fizera apresentar portfolio, com fundada argumentação. Donis organizou os papéis enviados por José e pelo músico Olivairas, as ilustrações, um material deveras elegante. O petitório era simples e, se vingasse, daria aos fadistas a chance de viajarem por um mês em um mesmo galeão. O Olivairas embarcaria com eles. Vários colegas músicos, melhores e piores, concorriam ao mesmo benefício. O prêmio estava longe de ser a mão da princesa, terras, joias. Era um jeito de estarem próximos, Alois e José, embora tal proximidade não fizesse muito sentido. Era pela música que peleavam, o corsário queria crer. Até o momento iam bem, seria bom tocarem mais vezes juntos. Havia, para a consecução do propósito, o imperativo dos ensaios, que aconteciam apenas esporadicamente. Por mais afinados, criativos, competentes, há que se buscar sintonia e um não sei quê, certa fluidificação do repertório, que não ocorre por mágica, tampouco em palco, mas com trabalho um tanto exaustivo. Urgente amadurecer o toque, equalizar as vozes, a técnica, a interpretação, as sonoridades, fortalecer as formas a serem executadas. Não haveria tempo ou lugar para o exercício. Do compromisso pretendido, todos já devem supor o veredito. Algo, no gesto de arte, quando se o punha à venda, esvaziava. Havia as companhias, a vender espetáculos, é certo. A deles, pois, não saíra do plano onírico.
O que José oferecera até o momento às comunidades com as quais conviveu? Onde o levariam seus versos, contos, crônicas? A voz seguia, a carregar o sonhador pela mão. Logo ele zarparia com sua barca arrendada, para entregar um carregamento de vinhos, era o que havia de concreto para o momento.
Mais esquecimentos
Madame, ciente de que avançava e recuava no tempo de modo errático, de que se movia como sonâmbula, cantarolou o próprio nome até adormecer, sentada diante de um cama de enfermaria. Quem a surpreendeu a dormir foi o menino Júlio. A mãozinha, perfurada por cateteres, lhe tocou o braço. No mesmo instante, o caderno caiu. Madame admirou-se mas sossegou, lembrava-se agora: Júlio comera as bolinhas vermelhas e convalescia, fora de perigo, no Ambulatório. Como Madame viera dar àquele sítio? Manoel a trouxe até ali, tinham ido à gruta da praia... da praia... seria a Praia do Carneiro?
A doula Bernice juntou o caderno, teve curiosidade de o ler, ao menos o trecho recém escrito, mesmo sem consentimento. Aproveitou-se do namoro entre criança e avó; nada compreendeu, contudo, do confuso parágrafo. Parecia que um homem era apaixonado por outro e que eram músicos. E alguém era pirata. E alguém queria se casar. E havia uma mulher. E outro homem. E um homem usaria vestido. E músicos procuravam um lugar para executar sua música. A enfermeira refletiu, se tal história tinha algo a ver com o trabalho diletante de Gaspare. Ela havia caído no engodo de se apaixonar pelo colega italiano e não pelo outro, o brasileiro Gilmar, uma pena. Sem que ninguém lhe acautelasse resolveu, por bem, manter a coisa no nível platônico. A moça não precisava de estatuto para saber que interessar-se por alguém no Casaredo era arrojado. Como carecia muito de um amigo com quem conversar, Bernice até tentou aproximar-se do violonista. Não vingou sequer simpatia entre eles. Conformada, olhou o entorno e passou a admirar de longe a sororidade entre Matilde e Catarina. Procurava alguém assim, com quem trocar ideias, sentimentos. Maria, a mãe de todos, era carinhosa e impessoal. A senhora Chang tinha seu mundo, mais afeito ao da doutora Dung Hanh, flor de pântano. Joana era uma deusa. Aquela Oxum encontrara em Blackwood o ouvido acolhedor. Manoel e Alev eram Manoel e Alev. E Javier, bem, ele estava preso a um labirinto. O doutor Itaú era forte demais. Havia Josefine e entre as duas, alguma eletricidade de impedimento.
Todos eram muito atarefados no hospital para dar atenção a uma novata, era o que Bernice pensava. Não tardou, tomou coragem e pediu para falar com o doutor Wong Lam. Sabia que o assunto a abordar era periférico, porém conhecia o potencial do médico em conduzir o simples e o complexo. A moça lhe falou de solidão. Saiu da consulta como que encontrada em si. Era dia de sol em seu coração. Parou de pensar em Gaspare assim que entrou no refeitório. Deu com Josefine ao lado da máquina de café. Dividiu com ela uma xícara fumegante e sem açúcar.
Mais uma carta foi entregue a Gaspare, pelo porteiro André. A caligrafia era nova.
Kyle,
Temos falado de muitas coisas nos últimos meses. Quero crer que o relacionamento cresceu, exponencialmente (gosto desta expressão, mais que minimamente). Procuro consolo, mesmo onde não há nada. Deste-me companhia no último encontro, agradeço por isso.
Coisas que não entendemos bem, sentimos melhor, temos falado disso. Sabemos, de alguma forma – a força dos arquivos íntimos que detemos-, o que é lidar com feras humanas. Topamos com algumas nesta jornada, de pequeno porte. Formas basilisco, cujo poder de injetar veneno não é instantaneamente letal – por isso ainda estamos sitiados na Terra, mesmo na condição de deportados, mesmo esvaziados de conteúdo, paralisados.
Eu não sei se as teorias de Darwin já foram refutadas, se há algum teórico a nortear os pensamentos da comunidade acadêmica com mais vigor. Creio que não... de lá, das viagens darwinianas, vem este fio linear, que posiciona a raça humana como o final da cadeia, como se fora o supra sumo da cadeia. Sinto muito informar, um conjunto de liames põe a raça com características de ameba, reporta a ela. Tu descreves bem o caminho, na tua Canção do Sapo.
Há notícias de uma experiência feita com amebas in vitro. Está em algum compêndio, agora não vou me lembrar, acho que em Otto Fenichel. Os ‘caprichosos’ ficam a espetar uma, espetam, espetam... até que ela para de reagir... está viva, porém inerte... no bilhete que te escrevo de hoje, chamo a atenção para este detalhe. Alerto-te, para vigiarmos nossas fronteiras. Somos nós a espetar a nós mesmos... como somos circundados por espelhos humanos, achamos que alguém nos espeta.
O que tememos, amigo, é topar com a fera íntima que guardamos. Irracional, saída das profundezas do magma, com atributos do fogo. Da água, do ar, da terra, também poderia ser. É nossa força criadora/destruidora. Temos um caminho bom, uma lide boa, temos recursos para corrigir a rota a todo momento. Temos a nosso favor a inteligência, que nos deixa ver outros instrumentos além da agulha. Outras técnicas que espetar, ou incendiar. Há quem insista, gostamos da agulha... esperamos pelo momento de queimar na pira, à traição.
Ah, sobre o dom de escutar. É tão íntimo o que sabemos desse dom; temos inteligências, para ficar completamente surdos ou ampliar a escuta a uma quantidade de Hertz, próxima à que capta um cão. Hum mil e seiscentas frequências por segundo (creio ser este o número) ou uma frequência, nós escolhemos, com critério requintado. A tua segunda escuta, gravada há algum tempo, tal qual trilha espinhosa, cheia de cobras e outras feras, delicadas, se comparada às feras humanas, é algo para se estudar, desdobrar a cadência harmônica que as mãos nortearam, a ação mecânica que impuseram ao teclado. Temos lá as emoções, quentes, dura, fortes, construtivas/destrutivas. Uma catarse. Uma proposta, uma resposta ao tempo, ao espaço. Ao tédio, à melancolia, à raiva. Um desenho da fera dissimulada, que nos enoja, apavora e... ao mesmo tempo... quereríamos livre, para fazer as coisas dela, do jeito dela. Acho que já houve este tempo na Terra, antes dos dinossauros. Há apócrifos, sobre a Atlântida e a Lemúria a respeito do assunto.
Sobre os sermões maravilhosos dos quais tu comentaste, deixemos madurar. Chegará a nossa vez de os proferir.
Hoje, este teu amigo excêntrico, travestido em corpo de mulher velha e deformada, não tem interesse algum em concluir nada, tampouco organizar palestra sobre liberdade. Seria até bom não pensar em nada, mergulhar na água congelante do Carneiro e afundar, afundar... este teu amigo tateia levemente a margem da Foz do Doiro onde se sentou, a ver pirilampos – ou efemerópteros, por ser manhã branca, gelada. Este teu amigo está a cismar, qual criança de cinco anos, estudante de escola comum, sala enfileirada, sei que ainda não encontrou o companheiro de folguedo. Estou à margem, a olhar para nada, a dizer baixinho vem fera, vem cá que eu vou te transformar num ninho de vespas, bem organizado e ordeiro.
Sempre contigo.
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