Hospital Casaredo 53

 



Huli Jing e a luz


Tenho fases, como a lua, fases de andar escondida (...) Cecilia Meireles


Meu caderno se cansa, quando preciso falar de algo de que não entendo. O que aprendi nesta existência não me deu compreender o que seja a huli jing. Eu vejo os seres invisíveis, isso é certo, mas nada como o espirito místico de uma raposa. Se não me chamarem de presumida das presumidas, como Miguel chamou à sua Guiomar[1], direi que se trata desses homens e mulheres tangíveis, convivendo lado a lado conosco, e que são hipócritas. O caderno quase desfolha, pois eu não saberia dizer com correção o que é hipocrisia, ou cinismo, ou uma sirigaita, termo que escutei uma vez em Faro. A narcótica Adele, assim chamamos nossa huli jing aqui no hospital, pinta a guache, óleo, acrílica. No momento, seu exercício se limita a copiar, foi o meio que encontrou para silenciar o íntimo, sempre turbulento e artificioso. Com um exemplar em pequena escala ao lado direito da tela, a colega age com os pincéis, sem traços preliminares a lápis, bonito observar, quando não nos enfaramos dela e tomamos distância segura. Ela é intensa, não poupa tintas, suspira, geme, é como assistir às primeiras contrações de um parto. Nos últimos dias, quando ela está no atelier, os demais frequentadores, temerosos, vão saindo de fininho para o jardim e continuam ali com seus trabalhos manuais. O enfermeiro Gilmar, aquele rapaz tão bonito da sanfona, é o único que permanece em seu nicho de desenhar heróis japoneses, no afã de proteger a doutora Loto de possíveis atentados. Quando a narcótica Adele esperneia, só ele e Alev, juntos, para fazer a contenção. A moça esperta denuncia a própria fragilidade nas mãos trêmulas, seus centros nervosos andam cada vez mais minados pelos fármacos entorpecentes. Ela acredita que não sabemos de tudo. Os remédios anulam aparentemente sua dor, quase nunca de natureza física. Sim, não sou uma velha tão acusadora, Adele sente muita dor. Enfim, os quadros que a colega pinta são bons, expressivos. O último, a Salomé com a cabeça do João Batista na bandeja de prata, nem sei o que dizer, onde o vão pendurar, talvez no mirante de meditação. Não é possível sorrir nesta afirmação.


Não estou a julgar, acreditem. Contrabando de medicamentos tóxicos para dentro do hospital passou a requisitar interferência policial constante e isso deixa a todos nós apreensivos. A situação lembra, de algum modo, uma caça à raposa, a que possui várias faces, nos confunde, causa horror às crianças. Quem somos nós, velhos dementes, para recorrer a alguém e pedir ajuda? Temos a graça dos enfermeiros, tenazes guardiões que velam por nós. As gentes das artes, retratadas em tela pela narcótica Adele, cujo estado de alma lembra o seu, em geral oferecem pistas de como ela agirá após concluir o quadro. Confesso não ter muita afeição a tramas de suspense, inda mais quando se trata de gente intratável, como esta mocinha. O doutor Itaú desvendou o padrão, e todos somos gratos a ele. Os surtos que acometem Adele, alternados por períodos em que a inteligência se inclina para ardis, apresentam-na irritadiça, ríspida e mórbida. A moça se afasta do convívio, o que gera alívio geral, e recusa tratamento, dificulta a vida dos enfermeiros à exaustão. Seu refúgio é o atelier, local do qual todos nos afeiçoamos. A doutora Dung Hanh a recebe com compreensão, deixa-a trabalhar sem interferir, mesmo quando a moça chora, blasfema, é rude conosco, quebra coisas e cai na gargalhada. Compadeço-me, a moça realmente pensa que não sabemos. Há mérito na permanência dela na casa, suponho eu. A condição financeira da qual dispõe permite que ela possa equipar não só o atelier com materiais para artesanato, mas também a outros setores, com os mais diversos e apropriados aparelhos às terapêuticas, o que melhora a vida de muitos colegas e ajuda aos profissionais a fazerem seu trabalho. Ela não sabe que as suas doações não se destinam ao conforto próprio, acredita que paga caro pela própria estadia, que pode fazer exigências, ter atendidos os seus caprichos. Quando não, vinga-se. Isso penso eu.


Para o hospital colônia, a presença da narcótica Adele sugere alerta constante, portanto. É como o bater insistente de sinos rachados. O ambiente é perfeito, para manter  vícios, manias, o jardim de uma huli jing. Com algum encanto, a colega se faz passar por dócil e abandonada, especialmente quando arma seus planos picarescos, e esta não é a palavra que eu gostaria de escrever, esqueci da que procuro. Um dos enfermeiros é seu alvo predileto. Estão dando certo suas últimas investidas, assim é. Se eu falar a respeito, chamar-me-ão insana, mentirosa. Assim é. Javier e Gaspare contavam um ao outro suas impressões sobre uma novela chinesa[2] ontem, na praia. Eu não fiquei muito alarmada, posto que os antagonistas não tem vida longa. Assim é. Digo isso porque não sei contar os séculos.


Alev levantou os antecedentes da colega, para que o grupo defina a melhor maneira de agir com ela. O enfermeiro invisível soube que a moça vem de família abastada, o pai lhe financia os mínimos movimentos. O homem, nas aparências, não sabe que a filha está internada por vontade própria em casa de saúde, permanece indiferente – isso é conveniente, as huli jing tem ninho. Mesmo assim, envia à sua cria pensão substancial, o que a põe bem longe do convívio familiar. Se os administradores do Hospital Casaredo agem de má fé? O senhor Giulionni diz que é preciso munir-se de boa leis, por as questões no papel, artigos e emendas a apoiar as decisões. Alguns poderão dizer que escuto atrás das portas. Das portas não. Eles vão conversar no refeitório muita vez, enquanto eu uso as mãos. Creio que os pelos da huli jing caíram em minha sopa. Não posso sorrir desta situação, é execrável. 


Wong Bohai, o sábio, chamou a narcótica Adele para conversar e ela achou bonita a função de apadrinhamento, tem como arcar financeiramente com a obrigação, não precisa ser lembrada ou cobrada por isso. Eis a proposta legal que lhe fizeram. A moça aceitou, assinou, estava lúcida, a Desembargadora e um homem do setor público serviram como testemunhas. Então o sábio salva algumas vidas e restringe o orçamento da raposa de nove caudas ao essencial, além de cuidar dela no que é possível. Faz sentido, se pensarmos que armar vinganças gratuitas custa algum dinheiro. Com menos recursos, as vinganças deveriam ter menos impacto. Com um ser de poderes místicos não se pode descuidar. Assim é. É preciso atenção às recaídas, que sempre  surpreendem ao grupo, como se a casa fosse imersa em emboscadas. Nos últimos dias, Dung Hanh passou a tutorar o caso, até pelo conhecimento que possui de mitologia oriental. Normalmente, Loto encaminha a outro profissional que não mora na casa os quadros de dependência química e transtorno social. Adele é talentosa. A esperança é catalisar seus dons para algo útil, se é que a palavra utilidade se encaixa em ambiente sutil. A doutora aposta na prática artística. O retrato que Adele reproduz neste momento é o de Chopin. Uma estampa impactante, que revela o compositor ainda capaz, ainda não aniquilado pela enfermidade. Enquanto pinta, Adele faz girar a velha vitrola que há na sala, uma interpretação da Barcarolle opus 60. A sonoridade, suave e um pouco chiada, pode ser escutada por quem passa sob a parreira, onde me encontro. 


Madame, em busca de sombra, peleava com um cacho de uvas, fora do seu alcance. Ainda recitava seu nome alguma vez, sorria. Dava a entender que não tinha noção dos parágrafos que anotara. Logo chegou o menino Júlio, a festejar com seu cão. Itaú parou à porta do Loto. Observou por algum tempo a tensão muscular de Adele. Percebeu as energias dela equivocadamente transferidas dos braços para as escápulas e não para as mãos. O cérebro reptiliano sofria com essas inversões de humor. O doutor entrou no atelier, feito lince ibérico. Desceu as enormes patas sobre os ombros da moça, assim que ela afastou o pincel da tela. Adele foi como que abatida, caiu sem forças da banqueta. Itaú a tomou nos braços e a carregou em direção ao portão, o que conduzia direto à praia. Júlio acompanhou cada gesto do doutor, interessado. Seguiu-o consciente, o cão atrás. Javier descia as escadas afogueado, a tempo de conter o filho. Itaú ainda se virou e fez um aceno com as sobrancelhas, que viessem quietos. Dung Hanh os acompanhou. O doutor foi direto para o mar com seu fado. Caminhou até que ficasse com as ondas pelas coxas. Então jogou a moça dentro d’água. Ela afundou e dali a instantes retornou à superfície, se debatendo. Itaú a pegou pelos ombros e a sacudiu com vigor, feito boneco de pano, a sustentar seu pescoço para que não quebrasse. Deu uma espécie de grito selvagem e estalou a coluna da moça. Amolecida, ao ser deitada sobre a água, já fora da arrebentação, pode boiar por algum tempo. Mais um pouco, Itaú pediu que ela nadasse até determinado ponto. Seriam cerca de dois quilômetros, ida e volta. Como que dominada por imãs, a moça imprimiu um ritmo forte e fez a travessia completa em sete minutos, nado peito. Ao terminar o percurso estava viva, as energias reconectadas, a cabeça sem ideações perniciosas. Adele se jogou ao pescoço do doutor e o beijou castamente, um sinal de que não se descuidassem. Da praia, pai e filho assistiram ao trabalho, Júlio contou ao pai depois, do jeito dele, que os cabelinhos de sua nuca se arrepiaram. A doutora esperava, paciente, o perigo somente fora atenuado. O pai ergueu seu filho nos ombros e aguardou também, Santur ao lado, em posição de descanso.


Quando Adele retomou sua pintura mais tarde, escutou a balada com quatro ouvidos. Carregou nas tintas, pôs brilho aos olhos aflitos de Chopin. Itaú deixara pai, filho, cão e doutora, sem olhar para eles. A sessão desses quatro aconteceria em outro momento.


A família do rio Pripiat 


Madame, aparentemente em um mundo onde só havia espaço para gaivotas e velames, observava tudo. Não se poderia dizer que amava, no sentido coerente do termo. Cismava. Catarina passou por ela, o que provocou em Madame o desejo de contar outra história ao caderno, não a do banho de mar da raposa huli jing.  

 

Nascidos de dois pares de sapatos, largados naquela manhã, no alpendre da casa simples. O recurso utilizado para preservar os rebentos, se revisto em suas bases, superava as expectativas de proteção. Um par de sapatos vinho, salto agulha, outro marrom cacau, bico quadrado. Depois de nove meses, a opereta soava os primeiros acordes. Conto de gozo sem morte. Os nenos, frutos da videira e blend suíço, descartados, vestiam azul. 

 

Madame deixou de anotar por um instante, olhou as correções que deveria fazer. Riscou o necessário. Suspirou. Neste momento, uma presença provocou-lhe reação antipática. Era Antária, colega de dormitório, que passava pelo corredor. Santur, que dormia ao lado da cadeira, ergueu as orelhas. A mulher, com aura sonambúlica, cruzou-lhe a visão feito borrão. O cão rosnou sem latir. Madame manteve a atenção no que escrevia, entretanto sentiu dor. Aquela senhora, a que chegara com a mala, era também frequentadora assídua do Loto. Quando ela entrava, Madame saia. Antária concluíra um risco para bordar, que retratava uma mulher arcada, a moer café. Tinha guardado os materiais na sua caixa de costura e dirigia-se ao refeitório. Quem olhava, a julgava morta. Madame, por curiosidade, decidiu-se por ir atrás dela, sem se fazer notar. Santur ficou onde estava. Antária entrou na cozinha, parou diante da máquina de café, na qual todos brindavam, amiúde. Parecia que faltava, para ela, algo importante demais. Catarina cumpria seu plantão de almoço. Solícita, postou-se ao lado da mulher, ambas concentradas, por razões diferentes. Passados alguns minutos, a enfermeira abriu uma porta de armário e retirou de dentro uma caixa de madeira com tampa de manivela. Artefato rústico, munido de pequena gaveta, onde se podia colocar duas colheres de grãos de café. Tirou do armário um pote de vidro, pegou também uma colher. Antária tomou a caixinha que lhe foi estendida, mexeu nela com cuidado. Foi sentar-se. Procurou acomodar a caixa entre os joelhos. Depois, consolou-se e a apoiou sobre  a mesa. Moeu o café por algum tempo, abriu e fechou a gavetinha vária vez, até ficar satisfeita com o resultado. A enfermeira chegou-se novamente, agora com a bandeja onde havia uma cafeteira e coador, uma chaleira, água fervente e três xícaras. Os olhos de Antária eram o mar à noite. A companhia, o silêncio, o cheiro da bebida recém coada. Catarina juntou à sua porção umas gotas de vodca, cuja garrafa dormia no fundo do bolso do macacão. 

 

As duas mulheres procederam a um conjunto de ações que apaziguava e permitia contato sincero naquele instante. Ali, diante das xícaras fumegantes, Catarina quis dividir sua história de sapatos com aquela mulher que se parecia tanto com sua mãe. Madame, da porta, sorvia a bebida e escutava o conto mais uma vez. Catarina e o irmão gêmeo, Ivan, foram abandonados em uma soleira, acomodados em caixa de papelão, pouco agasalhados para o frio ucraniano que fazia. Precisaram bradar muito para que a velha do casebre viesse atender. Varienka completara setenta anos dois dias antes. Muita idade para um inverno tão rigoroso. A velha acabara de enterrar o marido ao lado de um cipreste, não muito longe do terreno onde vivia. Esperava ficar ali, mais uns meses sobre a terra, até não ter mais víveres, ou lenha, ou forças para puxar água do poço. Fecharia então os olhos, sentada em sua cadeira de balanço. A filha não mandava notícias desde o casamento, não havia esperanças de que voltasse. Se tinha netos não sabia, não conhecia o genro. Varienka enfim escutou. Pensou tratar-se de miados. Ao abrir a porta, pode suspender a caixa com os bebês e coloca-la perto da lareira. Avivou as brasas, acendeu o candeeiro e pode olhar um pouco os leitõezinhos azuis, mirrados, roucos de tanto chorar. Eles logo dormiram, exaustos. Entenderam que estavam a salvo, puderam abandonar-se. Antes de toca-los, Varienka pensou em como poderia cuidar deles, ela para morrer, eles com toda vida pela frente. A velha foi olhar mais uma vez o dispensário. Os bebês eram pequenos demais para uma papa de aveia. Afagou com amor sua cabrita Elze, que já lhe dera a cota de leite do dia. O animal, cujo olhar estampava neve e doçura, deu a entender que uma porção para as crianças ela tinha ainda a oferecer. Catarina veio primeiro ao colo. Com o auxilio de um trapo imaculado, a menina recebeu o alimento com os olhinhos fechados, sugando com sofreguidão. O fardinho resmungou um pouco ao voltar para a caixa. Quando veio Ivan, Varienka percebeu um fio de sangue a lhe escapar do ouvido direito. Mesmo sangrando, o menino aceitou o leite, embora fosse necessário espremer as gotas em sua boquinha entreaberta. Como nem tudo são desgraças, naquele momento bateu à porta um lenhador, Leopold, que  trazia à viúva o que podia vez ou outra, depois da morte do colega Ivan. O homem mirou as crianças mal saídas de um ventre que, acreditava, já vira na floresta, na tarde da primeira nevasca. A velha, a aplicar um unguento de folhas e algum pó junto à orelha do menino, o enterneceu. Sem pensar muito, ele pediu para ficar. Era sozinho, estava velho e quem sabe funcionasse entre eles dois. Varienka, tomada de não sei que sentimento, dos grandes para o número de seus anos, achou a oferta como que triplo presente celeste. Uma família completa em um só dia, ela que vira a deusa obscura em seus sonhos. Quase remoçou diante do homem um tanto alquebrado, mas essencialmente bom. Coraram-se-lhe as faces, um brilho lunar pousou nos olhos embaciados. A velhice, enfim, lhe dava uma trégua. O lenhador avisou que voltava pela tarde. Ele ia desmontar seu casebre que ficava perto, às margens do Pripiat. Traria o madeirame e alguns utensílios, mais uma cabra, um bode, algumas galinhas e as suas coisinhas. O arranjo envolvia agressividade sadia, algo de tristeza, pedaços de medo e um respeito pela vida, francamente harmonizados às leis naturais. Antes de montar o jumento, Yaroslav, Leopold perguntou se poderia trazer junto seu gato, Petersburg. Voltou-se ainda mais uma vez, para perguntar o nome dos pequenos. Catarina foi contando a Antária mais minudências, do divertimento com o gato a brigar com um novelo da babusya, de como o animal o rolava pertinho, onde o pudesse vigiar, para então saltar em cima. Da caixinha de moer café, que a menina compartilhava com Leopold, seu gigante amado. Do primeiro espelho que ganhou dele. A enfermeira recitou uns versos que compôs à época.

 

O novelo tem as mãos vazias. Que esperam, gato e fio? O doce movimento da laçada sobre a agulha, ora à frente, ora atrás, o ponto bitola a criar ferrovias. Um calor antigo, íntimo. Atenção. Calados nas artes, fio e lauda. Uma cena verde, o verão vestia os ciprestes de laranja. O gesto tosco consente usar mais um tubo de tinta gris.  Alguém sequestra a psique de alguém. Os humanos insanos. Na meada, os nós se confundem. Quantas almas perdidas, que só o amor acha, no leite das cabras, nas botas do lenhador. Azuis, amarelos, um caramelo sujo. A pata direita se move como pétala, navega pelo rio. O gato se levanta e vai tomar sol.

 

Antária olhava para Catarina e crescia. A moça não era Rosa, nem Deolinda nem o menino, menos Silvério. Era uma mulher alta, linda, vestida em seu macacão, de cabelos cor de milho, presos no alto da cabeça, um abajur dourado e discreto. Um sotaque carregado, lembrava os irmãos que às vezes se hospedavam na Roseira, bebiam vodca e apreciavam seu café, moído à mesa. Em dado momento, com um pouco de dificuldade para articular os sons, Antária perguntou se Catarina se lembrava de Lisboa, se já morara lá. Catarina descreveu a Alfama e um lugar simpático onde trabalhavam três irmãs. Foi ali que ela morou pelos quatro anos de estudos de enfermagem. Foi ali que Ivan faleceu. O pager de Catarina a convocou. Antária acariciou a mexa solta de cabelo da enfermeira e a deixou ir. Josefine entrava neste momento. Como se recebesse instruções, a chef francesa foi buscar mais água quente. 

 

Madame rodou insegura, parou diante da portaria do hospital mais uma vez e apagou. Olhar vítreo, gestos enregelados. Novo prenúncio de catatonia. Socorrida de pronto por Alev, recebeu vários banhos de mar, massagens vigorosas do doutor Itaú. Blackwood usou seus bowls e luzes. A ressonância magnética revelou um pontinho escuro no lobo frontal, lado direito, cicatriz de antigo AVC. Fora leve, quem sabe se causador de episódios sonambúlicos. Havia potencial para outro AVC reapresentar-se, talvez mais forte, talvez um último desequilíbrio. Madame foi medicada com alopatia pela primeira vez, desde sua internação, um benzodiazepínico. Ela mergulhou no silêncio por necessidade. A recuperação, ao menos parcial, era aguardada. A senhora possuía razão para viver. Era o que todos vibravam. O organismo reagiria.  Gaspare levou Madame à praia todas as manhãs durante a convalescência, não sem antes parar com ela diante do belo roseiral amarelo. Aos poucos, a senhora voltou ao comando das horas. Mais um dia. O rapaz, melancólico além do normal, sem motivo aparente, aguardava. Deixou a senhora de mãos dadas com as marolas e correu para as ondas, quase até passar a arrebentação. O desejo era sumir. O amor o fez voltar logo. Gaspare amava Madame. Gaspare estava apaixonado. Crianças não impedem separações, o enfermeiro ruminava. Ao contrário, separações até podem beneficiá-las; elas não precisam conviver em ambiente tóxico. Bem conduzido, um divórcio pode ser saudável para toda família. O que é preciso para ordenar o caos? Por que tantos gostam do caos? Não se tratava de caos, era um veneno fininho, esverdeado, inoculado de forma indelével e persistente. Isso não é da minha conta, por que estou eu a perder-me? Gaspare apertou os olhos, respirou. Certificou-se. Sumir ou voltar. Voltou. Javier chegou um pouco depois, o filho pela mão, manhoso. Lindo dia para fazer castelos, Madame gostaria do brinco. Júlio se comportava como que com alto grau de transtorno de atenção. Criança tão cheia de alegria, estava entre amigos, entre médicos atentos. O que atormentava tanto a sua mãe, seu pai, a Gaspare? E Madame, ainda doente, o que pensava de tudo aquilo? Naquela sexta-feira, sentados os quatro à beira mar, a jornada lhes inspirou remanso, exigiu cautela e atenção. Madame tomou de seu caderno pelo menos quatro vezes, antes de escrever. Estava de volta.



[1] Personagem do livro Vindima, de Miguel Torga.

[2] Trata-se de A investidura dos deuses - Fengshen Yanyi

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