Hospital Casaredo 52




A murada sul



 

Um bicho. Um bicho de planície, de olhar longínquo. De grandes clãs. De reinar gramíneas, savanas. Desertos. E então lhe deram o mar. E lhe deram um nome. Pequeno nome. E ele o abraçou, resignado, triste. E amou o mar.  

 

Dia importante, mais um dos dias de Casaredo, bom para o desfrute material, para sair de furgoneta, almoçar em lugar agradável, comer o aprazível, beber o anestésico ou afrodisíaco, colocar um braço sobre outro braço, trocar o fogo dos olhos, da pele, escutar a voz a sussurrar no pescoço. Ser esta matéria móvel que não move. Por outro lado, bom dia para colocar o pensamento em transe, no afã de voar, alimentar-se em Júpiter, beber a música dos espaços, a que não encarcera, induz. Com os braços, envolver um grupo grande de nascituros, acalmar sua chegada. Dia de colocar as mãos sobre os ventres de muitas mães, acabadas de parir, sobre a mente dos pais, esses fantasmas. Quem é aquele que dorme, há dias, imóvel no laboratório, fios de máquinas a respirar e fazer bater-lhe o coração? Imagino se já o vi em outras circunstâncias, travestido de bambu. Dia de refletir sobre a trilha dos vermes das macieiras. A cadeira de rodas vai parar a qualquer momento. Precisa da comida das tomadas. Entre o inalar e o exalar, a pausa. Desejo aproveitar a pausa, é o que se me dá, para construir um poema de acordo, sem poeta? Enquanto existir o poeta, o poema não acontece. E é isso, apesar dos vivaldinos, arlequinos e outros fantasistas, o poema se expressa per se, não carece poeta. Se eu, Madame, pensava encontrar minha função nesta Terra, meu propósito, mais uma vez ando equivocada. E, bem, aqui tenho o meu caderno de espiral verde. 


A cadeira de rodas estacionou no corredor, diante da portaria do hospital. Dali se podia ver o jardim de rosas e também o mar. Madame saboreava um suco de frutas em seu copo com canudo, novidade da qual ela muito se afeiçoou. De quando em quando, perdia-se a olhar o horizonte e balbuciava, baixinho, Madame, Madame. Sorria. Quando o barulhinho do canudo contra o fundo do copo anunciou o fim do alimento, ela o colocou na sacola trazida junto do peito, retirou de lá o tal caderno e passou a redigir, tranquila, mais alguns parágrafos. Ah, José, eu nem sei dizer se te amei. Afeiçoamo-nos, as noites de cantoria eram doces, os hóspedes ficavam contentes. Quando a sineta encerrava o turno da noite,  era a vez  do nosso encontro. O pretexto que me levou ao teu aposento pela primeira vez, esfregar-te as costas. Eu era ingênua. E então, feito um irmão tímido, tu segredaste tormentas, peixes, sereias, sonetos. Aquele sentimento proibido que te assustava. Eu a te ouvir falar do outro. Não sei por que não fui eu a te bater a porta às fuças, sem escândalo. Era só não ir mais ter contigo. Aí tu terias sabido se eu era, ao menos, útil. O que eu pensava, esperava? O que todas esperam. José Gaetano, estavas a fazer o mesmo de sempre, ruminavas. A repetição de situações, de estações, de células rítmicas, do marulhar, a maneira como eras impelido a seguir, humano tão ignorante, a transpirar ante o método educativo da vida. Ah, José, a jornada da acupressão. Lembra um bedel amoroso. O marujo que tu eras te tomava a mão, com tuas coisas, te estudava. A Rafaele, aquela sirigaita, te fazia companhia. Às vezes tu fumavas, às vezes sorvia as baforadas, sem razão de ser. Pensavas nos iguais como uma espécie tosca, rasa, sem pátria, sem língua, sem lei, com o livre-arbítrio cheio de nós. Seguiam em vasos os gêneros a teu lado, geração após geração. Repetiam, repetiam, repetiam comportamentos tacanhos. Um corsário em conluio tu eras, mesmo sem querer. Havia algo maior que a justiça dos homens, isso tu percebias. Nada de escravos a serviço de um deus feroz, não. Os bestiais caminham entre todos, convivem, partilham da mesma travessa. Embora tu soubesses que, lá no fundo, o amor seria o único sentimento sólido a virar a Humanidade de cabeça para baixo, ainda não tinhas versos para traduzir o que ia por dentro de ti a esse respeito, teu mundo de pernas para o ar, onde eu não tinha lugar. Ah, José. Ah, José, o candidato a herói,  que pede à vida lhe conceda milagres, sem os fazer tu mesmo. Analisavas as coisas como se alguém, que tu não ousavas nominar, trabalhasse no Universo por tentativa e erro. Um laboratório em ação ininterrupta, cujos segredos seguiam preservados, em detrimento da curiosidade geral. Muitos dos viajores, cobiçosos, querem o Altar-mor. Cabe a uma força, maior que o mar, transferir estes vasos daqui para ali, para enfim darem flor. Ah, José Gaetano, nem te perguntavas se havia vida naqueles bilhões de estrelas que te impressionavam a retina nas noites claras. Teus olhos, ultimamente, deram de embaçar. Tu, comandante, procuravas piscar mais, mover o globo ocular devagar, em várias direções, fixar um ponto, deixar as imagens se acomodarem à retina. Descansavas a vista a meio pau, como vira fazer um monge na Índia. Fechavas os olhos e cantava. O Donis tinha isso em comum contigo, visão igualmente nublada, necessitada de um par de óculos, e também ele fechava os olhos para cantar. E a Rosa? Onde olorava a Rosa? Será que te comportaste como mulher de cais, ah, Rosa? Gostavas também de faluas, ó José Gaetano. Quando estavas em terra, arrumavas uma folga e lá ias tu, atrás de alguém que te emprestasse dessas embarcações onde só cabe um. O rema, rema, rema, o acariciar a água, o poder recordar algo doce ao remar, era assim que mais te aproximavas de querer-te bem. De onde veio tanta tristeza? Sabias que era inútil recordar, que perdias o hoje nas divagações sobre milagres. Foi em conflito que tu, José Gaetano, escreveste a bordo de uma caranguejola. Ah, Alois.


Que a tua flauta mágica, silvano deus, nos permita chegar ao coração dos homens.


O nome Itaú constava em sua documentação. Era sua insígnia, brasão. A cor caramelo de sua pele avisava das possíveis pontes ancestrais. A xenofobia o visitara vária vez, em especial nos tempos de interno no Instituto Americo Bairral de Psiquiatria[1]. Homem tranquilo, podia-se dizer feliz, exceto por saber da mãe ainda sem condições de vir a Portugal. Está feito, dizia reiteradamente. Aqui e agora. Abro minha valise, apresento meus conteúdos e sigo, um passo de cada vez. Refaço a tarefa quando não estiver de acordo. Paro, observo, pondero. Sigo adiante. Estendo as mãos a todos os que quiserem seguir, cada um a realizar bem a sua parte. Todos o sabiam brasileiro, decente, mas era só. Enquanto Wong Lam lançava raios, Itaú flutuava no ar. 


Sentaram-se na murada sul, Javier e o doutor Itaú. Javier chegou um pouco depois e pediu permissão para ficar, no que foi agradavelmente acolhido. Final daquela tarde calorenta, fungos branqueando a vegetação de capão. Lá embaixo, Manoel lidava com as pragas como achava seguro, lavando as folhas com água, sabão e um regador grande. Santur seguia o enfermeiro, tornaram-se inseparáveis. Júlio brincava com uma menininha um pouco adiante, era dia das crianças no Casaredo, vinham visitar às terças-feiras.  Deitados lado a lado, os pouco mais que bebês olhavam as folhas a cair do arvoredo, logo chegaria o outono. Santur, excelente guarda-costas, estava particularmente atento ao menino. Discreto, trocava carinhos com Manoel para não dar mostras de sua tensão. Manoel compreendia a situação e ajudava. O protegido do cão já contabilizara nove tentativas de fuga da casa. Os portões eram sempre guardados, porém o pequenino achava brechas para sair, com suas calçolinhas e uma lancheira, que conseguia com Bernice, inocente das intensões da criança toda vez. Puro engenho, puro pedido de socorro. O cão denunciou todas as fugas, trazendo o menino de volta pendurado pelos fundilhos, a espernear. Amparo, às voltas com a gravidez inesperada, andava aérea. Não adiantava chorar depois das ocorrências. Javier mantinha silêncio doído, como se cheio de fungos ele também. O que foram descobrir adiante é que havia razão lógica para as fugas de Júlio. Uma raposa de nove caudas o assustava. O doutor e o enfermeiro belo ficaram um tempo em silêncio, a sorver aquela imensidão além da murada sul. À esquerda, um tanto escondido, muitos quilômetros dali,  jazia um prédio em ruinas. Ambos demoram-se naquela imagem. Creio que temos sorte de ter-nos conhecido, doutor. Javier quebrou a quietude com sua voz grave. Olhava, também ele, o mesmo edifício. Sentia-se honrado por estar ao lado daquele jogador de capoeira preciso. Talvez o médico soubesse de um golpe para derrubar as aflições.  Também acredito nisso Javier, bom conviver com as gentes desta casa, respondeu o homem, ainda com os olhos na direção do antigo prédio. Estamos, juntos, atrás de uma historia de amor, não de horror. Ali era o Sanatório de Mont’Alto, contou Javier. Estrutura grandiosa, exuberante, abandonada, envolta em histórias indignas. Sempre há um tanto de amor nesses enredos macabros. O prédio possuía escola, igreja, lavanderia, foi descrevendo Javier. Lembra um pouco o que se quer deste Casaredo, pensou alto Itaú. O foco do lugar era o tratamento para a tuberculose, continuou Javier. Ficaram prontas, as edificações, em 1950. Você já presenciou o sobrenatural, Javier, perguntou o doutor sem desviar o olhar da paisagem. Vi ilusionistas na Rua Paralela, em Barcelona, o enfermeiro respondeu distraído. A força do pensamento materializa desejos, de coisas pueris a cicatrizações, ou até mesmo se realizam cirurgias, cortou Itaú. A mente cria enfermidades simulacro, balbuciou o rapaz. Conheci um homem no Brasil que operava com as mãos nuas. Comoveu-me esta historia, o número de pessoas que ele atendeu. A conversa entre médico e enfermeiro, um ping pong casual, tinha rumo certeiro. Parecia rabo de arraia[2]. Itaú encontrou em Javier um bom jogador. Desses que, mesmo sem nada dizer, era como orvalho matutino, canção de revoada, flecha ligeira. Não gastaram quase nada em digressões, não era necessário. Ambos precisavam voltar a seus afazeres. Ao final do tempo de que dispunham, Javier desfechou: estou com medo. Vou ter outro filho e meu Júlio parece muito adiante de nossa época. Além disso, não tenho para dar o amor de que Amparo precisa. A vida não pede ama-me ou deixa-me, devolveu Itaú. Pede, quando muito, respeito. Sabe ao menos conversar com sua mulher? Itaú olhou pela primeira vez os olhos do rapaz quando fez a nova pergunta. Se não, peça a Wong Lam a movimentação adequada na dança que ele faz. Concentre-se com firmeza, sinceridade. Enquanto isso, posso lhe ensinar os fundamentos da capoeira angola, podem ser úteis para muitas decisões.

Ao descerem da murada sul, doutor e enfermeiro acolheram ao colo as crianças. Santur, aliviado, foi brincar com seu novo amigo, que terminara de pulverizar o campo. O jantar seria, hoje, em casa de Manoel. Uma sopa de músculo bovino sem muito tempero, com cebolinhas, compartilhada entre ambos. Antes, Santur ganhou um banho, de que muito gostava. 

 



[1] IAB, Itapira, São Paulo, Brasil

[2] Golpe dado com as pernas junto ao chão, visando derrubar o oponente. Aplica-se com um movimento de rotação, com a perna esticada, varrendo a horizontal e apoiando-se uma ou ambas as mãos no chão.

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