Hospital Casaredo 49




Loto 

 

O Hospital Casaredo adquiriu popularidade na península a partir da inauguração do atelier. A Laborterapia fez emergir, das mãos de cinquenta e três pessoas, produção digna de exposição pública. Gilmar, o senhor J.G., Madame, Javier, a narcótica Adele, Isidoro Brando, Chang Chang e a própria doutora Dung Hanh, dentre outros, encontraram ali espaço franqueado, onde as expressões ultrapassavam expectativas. 


Madame foi apresentada a um teclado macio, com tela ampla diante dos olhos, protegidos do brilho excessivo por fina película. Gaspare iniciou com a senhora mais um processo lúdico, que perduraria por vários dias. Escreveu como estás, qual o teu nome? Algum tempo se passou até que Madame usasse o dedo médio da mão esquerda e o indicador da direita para responder Encantada. A sorrir, Gaspare continuou. Vens sempre aqui? Todos os dias, ela escreveu, também a sorrir. Como vão as coisas? Vão bem, tenho muitos amigos, meu filho Gaspare é um sedutor. Tu estás com fome? Sim. Queres algum alimento? Água de coco, por gentileza. O exercício prosseguiu. Javier sentou-se à esquerda e entrou no dialogo, um pouco menos hábil, mais afeito a contemplações. Ficaram a conversar por escrito por trinta minutos, até que as obrigações em outros setores os chamaram. Ao se despedirem, Madame abraçou-se ao  caderno e manteve uma postura recolhida, quase triste. Manoel rendeu Gaspare. Pôs a cadeira da senhora sob a parreira, em frente à porta do atelier. Ela olhou firme para Manoel e disse meu nome não é Encantada, é Madame. Era a primeira vez que dizia uma frase completa, de forma clara e audível. Manoel lhe beijou as mãos. A senhora então tomou do lápis e escreveu, com o arroubo costumeiro.


O céu esverdeado dos sonhos dava a José sediciosas visões. Nada concreto, nada de símbolos reveladores ou clarividências ou consórcios com anjos, demônios, nada. Teve um único momento de levitação, inesquecível, pairou sobre a copa de árvores muito verdes, era noite, o voo mais longo e verossímil que experimentou. No sonho, o marujo viu a mãe. A zona onírica era à beira da praia, onde ele boiou à deriva, na preamar e então despertou, encharcado de suor. Ouviu sussurros não é preciso tanto esforço não é preciso tanto esforço nãoéprecisotantoesforço.  Amarfanhado, gosto ruim na boca, olhou pela escotilha, a madrugada sem nuvens. O comandante ergueu-se e foi ler as cartas do tarô de Marselha, baralho que ganhara de uma vidente em Braga. Depois de um tempo entretido, confiou que esqueceria a dor e voltaria a dormir. Sabia que, depois da meia noite, a consulta às cartas era desaconselhada. José, influenciável, supersticioso, mesmo assim deu de ombros e virou três delas. Tal seria que maus espíritos escolhessem somente a noite para atormentar, e que aparecessem, todos mortos. Dispôs a primeira carta sobre um tamborete. L’Imperatrice. Sabia que significava não confundir desejo e necessidade, também amor que não evolui; novidade alguma vinda do passado, portanto, só  tormentas, privações, espera. Para a próxima, a conexão lhe escapava, L’ Étoile, carta do presente. Sobrepeso no espirito. Le Pendu, interpretação para os sonhos futuros, reverberou nada em seu íntimo. Homem preso à mãe. Tais informes, José Gaetano os repudiou antes de qualquer análise. Sabia que o baralho só voltaria a falar com ele quando e se quisesse. Sentimentos de falta, desejos de consolação, falta de consciência – ou recusa em escuta-la, é o mesmo, afluíram a magoar. A espada era misericordiosa. O marujo lembrou-se do elmo refulgente que o Capitão-Mor usava no dedo anular. Chorou. Eram quatro horas e havia sinais da manhã, a tingir o horizonte. O dia prometia calor. Subiu ao tombadilho. Orar, para o corsário, era cantar sem texto. E José clarinou, sem texto, meu coração é preamar e está onde Alois está. Tenhamos paciência, José não sabe muito o que faz.


Passado o tempo da singela acolhida a tanta gente, Júlio finalmente teve coragem e entrou no Loto. Era um daqueles dias em que o sol dá fricotes, faz que fica e se embrulha em edredom fino. O ambiente do atelier estava cheiroso de sândalo. Quantos anos o menino tinha? Perderam a conta. Dung Hanh bordava um grou e estava sozinha. A narcótica Adele, há pouco, havia deixado sobre o cavalete um retrato de Madame, que pintara de memória. Ao sair, ela teve humor para dar um tapinha amigável no ombro do pequeno, dizer-lhe uma queridice e seguiu seu caminho. A criança se aproximou, apoiou-se na coxa da doutora como se quisesse algo, e de um jeito que ela adivinhasse. A moça se habituaria logo com aquela presença amável, que parecia um cisne novo, a deslisar sobre o gelo. Júlio só entraria na sala quando a doutora estivesse assim, sozinha, sem atender alguém. Loto olhou-o sorridente e apontou a mesa mais baixa, com uma cadeirinha ideal ao seu tamanho. Ali Júlio passaria, depois, a comer melhor, ou a refugiar-se quando amolado ou para pensar em seu pouco tempo sobre a Terra. A mesa o acolheu e esperou. Custou o tempo da doutora buscar o carvão, a folha que lembrava aquelas de papel de arroz. Era a carvão que Júlio melhor se expressava no momento. Daquela mãozinha brotaram botos, muitos, rabiscados pelas calçadas do prédio. Todos os seres de rio reunidos sob diversas luas, cefalópodes a correr, a pescar, a brincar com seres marinhos menores. Para que as luas nascessem, ficava o cimento da calçada vivo, enquanto o entorno era coberto com carvão, o astro cinzento mergulhado naquele caldo negro. Uma chuvarada recente lavou as calçadas e apagou quase todos os desenhos. Daí veio o raciocínio de pedir papel a Loto. Álvaro Vilar havia fotografado alguns desses trabalhos, estas fotos sobreviveram. Em estampas posteriores, feitas sobre papel, apareceriam uma ou duas estrelas, além das luas. Grande fúria brotava das mãos da criança, enquanto pintava o céu noturno. Nas gravuras que nasceram no atelier, os pontos vazados não borravam, a técnica era incrível. Júlio, no seu primeiro dia de Loto, representou primeiro um gato, tão cubista que deixou Blackwood boquiaberto, ao se deparar com o desenho. 


Em outro papel, Júlio representou uma mulher de costas. Mesma técnica. Preto furioso em volta dela, os contornos do corpo muito bem delimitados. Era como um negativo de intensa luz. Um cabelo farto, ondulado, a escorrer até metade das cortas, que podiam ser adivinhadas por detrás das cascatas de cachos. A mulher posava com tanta leveza que era possível ver seu braço a suspender o seio esquerdo entumecido. Um menino triste, em pé diante dela, olhava o mamilo, representado para o lado. Quando terminou seus riscos, que deixou sobre a mesa, Júlio foi beijar a coxa da doutora, tornou a sair para o jardim, serelepe, a carinha meio manchada a carvão, as mãos pretas, que ele se recusou a lavar. O menino avistara Madame sob o parreiral. Adorava ficar perto dela, punha-se logo a tagarelar, como não o fazia, nem com os pais.


Dung Hanh tomou o trabalho do menino nas mãos, pura comoção. Pareciam, as peças, representações de Matisse. Afixou as folhas ao mural. Mais tarde, haveria fila diante do desenho. Assim que voltou ao seu bordado, entrou na sala Amparo, à procura do filho. Madame fez sinal imperceptível e Júlio sumiu por um conglomerado de chaliças. A moça ficou petrificada, ao parar diante da imagem da mulher com o menino. Os olhos se turvaram e ela desmontou. Começava ali, pareceu, o processo de desincorporação da esposa de Javier. Ela não comporia, mesmo, o organograma do hospital. Era preciso confiar em alguém. Era preciso ceder, foi o que Amparo concluiu, mais tarde. Dung Hanh acionou os bips de Matilde e Alev, e obteve resposta pontual. Matilde verificou a pressão e suspendeu as pernas de Amparo, apoiando-as a uma banqueta, entreabertas. A moça foi voltando à consciência aos poucos, atrapalhada. Permitiu que Alev a dispusesse sobre a maca sem resistir. O enfermeiro verificou batimentos um tanto acelerados. A compleição física de Amparo avisava que nada sério ocorrera, apenas proteção natural do organismo contra emoções fortes, talvez provocada por uma gravidez, suspirou Matilde. Amparo aceitou-lhes a rogativa e foi à enfermaria fazer exames. Todos ficariam bem ao final, se não fizessem drama, foi o que a enfermeira arengou.


Um casal, por menos que queira, caso mantenha intercurso com certa regularidade, mesmo com uso de preservativos, sabe que está fadado, em algum momento, a engravidar. No hospital, todos se perguntavam o por que de tamanha aflição. Matilde, sozinha com a futura mãe na enfermaria, olhou Amparo fundo nos olhos, uma garra surpreendente. Disse rapariga, se tudo der errado, eu crio teus filhos com a Catarina. Amparo sossegou, deixou rolarem algumas lágrimas e adormeceu.


Depois, para se alegrar, ergue-se, e bailando, e rindo, pôs-se a cantar, um canto molhado e lindo.  António Botto      

 

Madame percebeu os movimentos em torno de Amparo. O que poderia dizer? Em não sabendo, voltou aos seus afazeres. O menino, que se juntara ao cão para não angariar a animosidade da mãe, voltou para perto da senhora. Subiu ao colo dela, agarrou seu pescoço, molhou-o com vários beijos, lambidinhas à moda de cachorro e perguntou se a mãe ia partir. A senhora afagou a cabeça do pequeno e sossegou seu espirito. Júlio tornou ao chão, onde Santur o esperava em posição de descanso. 


A jornada é generosa, escreveu Madame. A não ser pela raposa de nove caudas, que ronda o mar aberto, pelos daguerreótipos invasivos. Aquela era uma hora hiato, seguiu Madame a contar. Uma tensão comprimia o ar antes de a nau topar com redemoinho. O comandante já calculara algo em torno de cento e cinquenta quilômetros de diâmetro para o que vinha, sonso, modulado. José não seria surpreendido. Estes movimentos do oceano, cujo acionamento bombeia água para lugares afastados em latitude e longitude, ensinavam impermanência. Na prática, tais giros céleres, gargalos, significavam mudanças climáticas, intensificavam ou amenizavam o frio. Eram caos e ordem a conversar, ponderar sobre o equilíbrio do pequeno berço azul. 


José, menino ainda, sempre adormecia quando o capitão da Sant’Ane, June de Castelnuevo, lhe ensinava cálculos náuticos. Não que se enfarasse. Faltava-lhe registro intelectivo para pronta absorção do conhecimento, então dormia, um mecanismo de auto preservação. O capitão preceptor lhe perdoava a insensatez juvenil. Muita vez, o grumete voltava do cochilo e estava lá o simpático homem longilíneo. Soava uma mistura de oil, latim, galego, tamazirte e português. O homem gesticulava, cantarolava e girava nas pontas dos pés as fórmulas intangíveis. A matemática virava uma confusão de preceitos mágicos, equações exponenciais, ângulos, tangentes, secantes, limites, derivadas, geometria analítica, análise combinatória, logaritmos e outras adversatices. O capitão dançarino tinha o costume de reunir os comandados para instrução quando as horas eram quentes demais para permanecer no convés. Só o menino José, que Castelnuevo soubesse, aproveitou essas sabatinas. Tais sessões tornaram o grumete ainda mais circunspecto. Associava as ocorrências de redemoinhos marítimos a estes raciocínios, conturbadas razões, lógicas, álgebras, números primos. 3 + 4x + 5yzw 8xyz2 e −5xyzpolinômios grau coeficiente dioramas. O menino falhava na recepção e transmissão de dados, era obrigado a engolir certos informes e processá-los mais tarde.  José esperou receber, na prática, apoio do próprio cérebro, em especial para enfrentamentos como o que aguardava naquela noite girante. Por instinto, corrigiu a rota, girou radicalmente o manche para trinta graus boreste. Sentiu, à maneira de bandeirante, as reclamações do mar contra o madeiro da nau, intuição genuína. Movimento realizado, obedecia à força do vento. A chegada ao destino atrasaria bastante. A manobra fora, uma vez mais, ousada. Enfim, os estudos matemáticos surtiram o efeito prático desejado. Leme seguro, José orou com texto. Nossa Senhora da Ajuda deve ter ensurdecido. Distanciaram-se, enfim, da refrega. 


Este episódio foi a primeira compilação de Madame para o computador.  Gaspare na tutoria, experimentou com a senhora formatos de página, modelos e tamanhos de fonte, cor, até que se compôs uma página inteligível. O enfermeiro usou o mesmo sistema do dia anterior, dialogou na tela com a senhora. Perguntou se ela queria corrigir alguma passagem, trocar uma palavra, adicionar pontuação. Alguns trechos eram bastante confusos, solicitavam paciente revisão. Madame emitia sinais de contentamento, ao burilar seu trabalho sem rasuras. Contemplava um parágrafo por vários minutos, retocava aqui, ali. Quando concluiu, estava fatigada, passavam das vinte e três horas. Olhou para as poucas pessoas que lidavam com suas peças no atelier. Sorriu tristemente. Gaspare, antes de desligar a máquina, mostrou a Madame o arquivo que compusera. Abriu a folha de rosto. Uma ilustração de azulejos portugueses quase saltou sobre os dois. O titulo em destaque, escrito em letra corrida, dourada: Hospital Casaredo. Logo abaixo, lia-se nome da autora. Transcorridos alguns minutos, Madame escreveu qual é o seu nome? Gaspare devolveu filho. Madame espero um pouco mais. Então escreveu, no espaço, Madame. Gaspare diagramou o texto  na página, na cor preta. Madame olhou, fez que nada viu. Sem alarde, o enfermeiro chamou o doutor Wong Lam que, com a desculpa visitar o atelier, tinha vindo para estar com Dung Hanh. 


O médico, quase encabulado, verificou o estado de Madame, atestou que ela estava bem. A tela do computador fosforescia. Wong Lam olhou a folha de rosto e sorriu, como há muito não fazia. Pediu que Gaspare aguardasse, saiu da sala e logo retornou com o pai. Era a primeira vez que o senhor Wong Bohai entrava no novo espaço. O filho lhe mostrou o trabalho de Madame. Aquela senhora tornava-se pessoa, por si. A paciente que optou por expressar-se em silêncio. Um pseudônimo. Madame. Poderia funcionar. Wong Bohai não deixou de olhar o trabalho instigante que, soube, era do menino Júlio. O retrato de Madame, pintado pela narcótica Adele, também lhe chamou a atenção. O bordado do grou esvoaçava, delicado. As filhas lhe vieram, os olhos se encheram de lágrimas. Wong Lam confortou o pai, o braço a amparar seus ombros. 


Houve ceia no sobrado dos Wong Chang, um lar harmonioso e sem luxos. Chang Chang tinha dan dan mian para oferecer. O macarrão de arroz, feito à mão, as pimentas vermelhas, um pedaço de lombo desfiado, molho de soja leve, tomates cozidos e cebolinhas. Tahine e óleo de gergelim, aromatizado com pimentas. A senhora acrescentou ao wok acelga em conserva, a carne de porco, um pouco do molho de soja e dourou bem. Em outro tacho, deu ponto ao molho. Três tigelas brancas, decoradas com ramos azuis, pintadas por ela, serviram a mesa. Pãezinhos vonton vieram em outra travessa, um bule e xícaras para o chá de jasmim, biju para acompanhar. Flores do jardim ornavam o ambiente, iluminado indiretamente.


Os Wong Chang sentaram-se juntos à sala, ato solene, amoroso, silencioso. Os três deram-se as mãos e cantaram uma canção que falava da magia dos bambus em feixes. Os princípios fundamentais do relacionamento, complementares e antagônicos, seguiam em perfeito equilíbrio naquele lar. Forças e leis naturais, dinâmicas, os envolviam. A impermanência das coisas dissolvia qualquer desconforto. 


O ato de dar nome aos pacientes, para os Wong Chang, era compromisso com a ordem planetária. O núcleo familiar estava, no momento, tutor de vidas, ofereceria proteção a elas com as suas, desejava o bem para todos. Wong Bohai, Chang Chang e Wong Lam eram éticos, sopesavam suas ações. O Loto oportunizava, também para eles, pertencimento, oportunidade de compor a história com o Casaredo. 


Mesmo estando cansados aproveitaram, após concluírem a refeição, para rever os eventos. A cozinha, arrumada em conjunto, deixou-lhes a mesa livre. Sem vontade de falar, cada um pôs diante de si folhas de papel arroz tamanho ofício. Na vitrola, antigas danças do folclore cantonês. Começaram a surgir desenhos com caracteres do mandarim, nomes de parentes, ornados com grous, cavalos, trolliuses e bambuzais. As representações eram propostas de paz. Os nomes Smith e Carpenter apareceram primeiro, lembraram amigos acolhedores. Outros nomes similares, Pereira, Silva, Pádua vieram em seguida. Então, a flor de sua cultura: Flora, Magnólia, Beleza, Pureza, Bravura, Poder. Um nome curioso, Gou Sheng, que significa resto de comida de cachorro, um talismã que protege, a quem o enverga, de maus espíritos. Ma, nome da família. Ma Yang, nome de homem. Quando ainda criança, lhe chamam pelo apelido, Yang Yang. Na cidade de Wuhan, província de Hubei, alguém se chama Huang Helou, que significa grua amarela. Sortudo. Auspicioso. Próspero. Sábio. Notável. Livro. Orquídea. Mar. Nuvens. Elegante. Macio. Prata. Yan, graça divina. Chun, Primavera. Jin, ouro. Chang, livre. A família terminou a tarefa passadas as três horas da madrugada, cada um a colaborar com um detalhe para o nome Rosenberg, o médico que cuidou das filhas até o final.


Na praia da Aguda, pouco depois de o sol iluminar a areia, ondas calmas, maré vazante, 
Wong Lam ensinou a todos
 o ideograma Ping’an, que significa Paz. Cada um grafou    和平 vária vez, 
enquanto o doutor contava a história de um grupo de chineses molestado por xenofobia nos EUA. 
A campanha para lidar com esse tipo de violência, o Say my name, tornou-se referência mundial. 
O Casaredo talvez tivesse menor alcance mundial com seu intuito, 
mas as pessoas ali pertenceriam à constelação familiar Ping’an.
 
Gaspare, durante o turno da noite, esteve com Kyle na enfermaria. Os sinais do ator se mantinham estáveis, 
porém a inconsciência persistia. O doutor Luis Pedreira reparara os estragos causados ao braço direito, 
porém sua mobilidade só seria testada com o retorno à ativa. 
Gaspare, ao trocar os curativos, fez as primeiras fisioterapias, com cuidado de escultor. 
Ao tocar aquele corpo, Gaspare experimentou sutilezas nunca dantes sentidas. 
Algo maior que reações ao desejo sexual, mais flagrante, magnético. 
Imaginou as sensações que lhe perpassavam sendo devolvidas fluidicamente, 
com tamanha potência que os sinais vitais de Kyle se intensificaram. 
Trabalho concluído, o enfermeiro parou diante das radiografias do braço, 
a avaliar a extensão das sequelas, bem como para definir o tratamento a realizar nos próximos dias. 
Antes de sair, Gaspare fez dois movimentos: beijou a testa de Kyle, suave e demorado. 
Colocou em um jarro a segunda carta que chegara pela manhã, endereçada ao ator. 
Chang Chang autorizara-lhe a leitura, 
porém metáfora alguma oferecia informes práticos, que amparassem o escocês.

Kyle, 

vinte e um anos de mar entre nós, assim começava a reflexão. Interessante, podermos falar nessas condições, com esperanças de boa conexão. Naquele encontro de três horas mais um quarto que vivemos, sete mares se juntam e são capazes de sentir a culpa e a responsabilidade dos vícios afetivos, dos tantos barcos afundados, nem sei se por nós. Consigo enxergar, neste instante, as figuras curiosas dos cefalópodes, seu bioma, sua conjunção e seu desejo primevo de nos encontrar em paz, donos de nossas laringes libertas, nossas mãos fluidas, nossa pisada firme e nosso coração acalentado.

 

Há uma lenda sobre os sexagenários. Eles já não escutam muito e dizem muito, posto já estarem em estado de mosto, num lagar. De mim posso dizer: escuto muito e escrevo, pelo doce prazer de ver nascerem as coisas. Quando eu digo algo, já escrevi a respeito antes. No último encontro, fui impelido a falar, inspirado por seres mínimos, alados. O mar estava revolto dentro, ventaneiro. Senti o fluxo, refluxo, deixei que as cristas se formassem e deslisei as ideias aos teus ouvidos, teu rosto quase triste, cansado. Se adentraram o coração, só o tempo. 

 

A folha onde escrevo me dá certo desespero e igual alívio. O desespero impele o mar, adentra maré, foi encontrar a Perpétua Mineira, em seu jardim bem cuidado no Valongo. O alivio devolve espuma à areia. Vontade de abrir o livro de Mario Quintana, ao alcance da mão e ler para ti, que já o conheces. Seriam palavras de pesca, de mais de oitenta anos de poesia. Segui a falar, do meu jeito, lembranças fundas, resgates terapêuticos inconclusos, sem falso pudor. O corpo formigou, a mente inundou, de arrecifes. O espirito, acorrentado às pedras a gritar, louco, Desdêmona, Desdêmona. Tive visões privilegiadas, detalhes do teu corpo em ação, dos lábios, dos fios dos cabelos, expandidos. Sinto falta do poncho. Até teu olhar veio, já mais para o final da récita, quando perdemos a mão em tantas reflexões. Os olhinhos do caracol a suplicarem silêncio, e só tu sabes o significado disso. O sol criou um calidoscópio sobre e entre as águas. Quase que pude imaginar o frio e o sal. Senti cheiro de maresia,  forte, carrancudo. Caravelas portuguesas, das azuis, boiavam, à distância segura de um muro. 

 

À minha fala foi imposto conter versos de puro amor, um acordo alfandegário. Vinte e um anos é muito tempo, muita cauda de sereia peixe deixada na orla, mesmo em conversa de artistas. Se, de fato, algo de sublime me tocasse. Por isso mesmo, pela sublimidade do ato, tais versos suspiraram e as gaivotas voaram com eles para outro sargaço.

 

A tragédia é da ópera. O martírio é dela também. Encontros em tela são novela. O romance, acho que troquei o ato de mamar pelo romance. Respiro romance, príncipes, dragões, espinheiros e torres muito altas. Respiro som e fúria. Sou pouco instruído nos clássicos. Chegou-me, cedo, a Biblioteca da Moças. E Cecília Meireles. Também um livro que Lispector escreveu aos dezesseis anos e outro, de Ligia Fagundes Telles, a falar sobre cerejas. E chegou-me José Mauro de Vasconcelos, o mago dos rios e laranjais. Do teatro, Gogol, cedo demais. Toda nudez será castigada, cedo, cedo. Prospér Mériméer, absurdamente cedo.

 

Eu poderia afirmar que, para mim, vida é mais, dentro dos gêneros literários. Cá fora, um certo desrespeito meu, a dizer não gosto de gente. É como afirmar não gosto do Todo Amor. É o comportamento das gentes que me constrange, contamina. Como queimadura de sol das onze horas, a beira mar. Só que sou, eu também, gente. É a minha incapacidade de entender as Leis Celestes que me sufoca. Tragédia e martírio são os ajustes das Leis.

 

Não deixo de pensar naquela terra sem mar (acho que tem, sim, um mar perto de Jerusalém...), cheia de igrejas. Não deixo de pensar em ti, na tua história marítima, talvez ligada à dos cavalos canadenses... à artista de vidro de Utrecht, à feitora de macarrão, em Zamami. Não deixo de pensar o que conecta a tua a uma história de vinte e um anos antes.  Não deixo de pensar em tragédias, martírio e os mares, quando se encontram. Recalculo as rotas e sigo, sustenho a respiração, para não encher o mar com as minhas lágrimas. Vinte e um anos de mar entre nós. Ainda bem que existe a escrita, e se pode cantar, algumas vezes, o amor que se escreve.

 

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