Hospital Casaredo 42
O balé às natas
As receitas culinárias vão passando, de caderno em caderno, fogo em fogo e são séculos de boa mesa. São a diferença entre triste e alegre, entre ofertar o bom e o melhor. Mais tristinha que desperta, inspirada por uma percepção etérea que lhe vinha sempre à noite, um aviso do qual dependiam conhecimento, afinidade e compaixão, Madame optou pela disciplina no cozer. Enquanto durou o processo, ela espantou a velhice e curtiu o resfriado comum pelo qual transitava. O enfermeiro Gaspare se referia ao sintoma como lágrimas represadas.
Não se pode ter medida de tempo nas idades tardias. Estranho falar assim, posto que setenta anos é um breve pedaço de jenipapo, o que está vai empregado no compensatório. Criar os pratos para a equipe do Casaredo era, para Madame, devolver aos profissionais um pouco dos cuidados de que necessitava. Quem não quereria poder fazer dessa maneira? Nem a enfermeira Catarina, mão de fada na cozinha, era capaz de superar os pratos de peixe da senhora. Ao menos uma vez na semana, havia bacalhau no cardápio. Madame ganhara, da Desembargadora Luariz Sezna, fã de sua mesa, uma cadeira de rodas movida a duas baterias de auto. Dava para correr a sete quilômetros por hora pelos corredores, visitar os dormitórios, ir à lavanderia, beijar o enfermeiro Manoel na boca e partir, recorrer aos jardins, à âncora Julieta, aos sobrados, independente de companhia. Para ir à praia, ainda esperava Gaspare ou o enfermeiro Javier, por gozo. O mais útil, na engenhoca, era a cadeira possuir um sistema de ascensão hidráulica, que lhe permitia olhar o alimento de cima e alcançar com mais facilidade a pia, o fogão, os utensílios. Dessa maneira, Madame fazia todas as tarefas de cozinha sozinha, um dos atendentes por perto para eventual socorro, em especial no erguer panelas de água quente, fritar com muito azeite ou manteiga e colocar travessas no forno. A consciência de Madame dava mostras de tolerância às próprias limitações. Na medida em que lavorava, seu rendimento mental ganhava um ponto.
A enfermeira chefe Maria velava por Madame, de longe. O enfermeiro Alev e seus poderes invisíveis, vária vez evitou que a cadeira despencasse. A senhora enxergava Alev e sorria, matreira. Era uma aparição bem humorada a dele, bem apessoada. Talvez o mais lindo dos homens que conhecera. O atendente, após livra-la de encrencas, logo encaminhava Madame para onde Maria estivesse. Alev cantava, em momentos ímpares como esses, frases tão longas que davam vertigem. A voz ecoava fundo pelos corredores, com a potência de um mulá. Em geral, os textos que entoava contavam as histórias das mil e uma noites, Madame sabia disso porque lhe perguntara.
Maria escolhia feijões no refeitório naquela manhã. Olhou Madame com respeito, fez uma saudação com a cabeça e seguiu com sua tarefa. Alev, já acostumado ao ritual de cozer, tratou de dispor sobre a bancada os ingredientes da receita aberta no caderno, página escrita recentemente. Vieram as postas demolhadas, o leite, a cebola, a farinha de trigo, as batatas, noz moscada, as natas, o parmézzo, azeite, sal, pimenta. Alev evaporou no ar. Maria, a cantarolar Mãe Velha[1], enquanto catava os grãos.
O balé teve início, cadencial, tranquilo. Às vezes uma pausa, um respiro mais fundo, um sentir o aroma dessa ou daquela porção. As postas foram cozidas ao leite, nem muito, nem pouco. A frigideira chiava com as cebolas cortadas em rodelas. Logo se juntaram a elas lascas de bacalhau, a farinha peneirada e colocada em porções que escorriam dos dedos, regadas com o leite do cozimento. Tudo mexido com esmero, para engrossar por igual. Maria aproximou-se, daquele seu jeito firme, talhou as batatas em cubos e as fritou. Madame aprovou com um meneio de cabeça quando estavam no ponto. Ao acrescentar as batatas ao cozido, vieram os temperos, marca registrada da senhora. Seis travessas serviriam a clientela, cobertas com as natas, o queijo. Maria colocou-as no forno para gratinar. Chegaram alfaces e tomates da horta. A enfermeira Josefine, que se chegara de manso, a fim de não provocar qualquer choque, aguardou a deixa e preparou uma salada a la julienne, além de um caldo de inhame para os pacientes.
O conto do Pico Ruivo já vem
Duas colheres do caldo e Madame estava satisfeita. Aceitou também um pedacinho de bacalhau. Depois de pendurar o avental, foi sozinha à parreira, abriu o caderno e seguiu a contar. O comandante Jose Gaetano tinha consciência de que suas histórias, nem limpas nem sujas, exerciam pouco apelo aos que se interessavam por feitos de instrução duvidosa. Nesses casos, a predileção é pelas páginas policiais, pensou, ou o periódico os evidencia, bandoleiros de toda espécie - suas vítimas subjugadas e ensanguentadas, em estrondosa manchete. Os bandoleiros são mais cínicos que qualquer herói, por isso mesmo atraentes, ativos, movidos, delirantes. A farta cabeleira loura do irmão bastardo, a esvoaçar, o brilho da vingança no ar. Uma sinopse que informa tratar, o livro, de ritual cultural para iniciar uma menina no meretrício. Uma peça teatral, a contar sobre a dama da noite Darlene e o caso da fuga com o bandido boliviano.
É possível compreender, então, o que o corsário sentiu, ao reler o material de seu relato mareado.
Faltava o sombrio que lhe respingasse as páginas, a cominar mistério e temor, imprecisão, sobretudo.
José Gaetano até pensara em dar primazia à bravata de El Carrón, um pirata com quem tomou uns goles no Porto de Vigo.
Este colecionava barbas, cãs, madeixas dos pobres que tombavam sob o fio de sua adaga.
Ao invés de invocar D. Henrique de Sagres - preâmbulo desta historieta -,
ou àquele argumento frágil, de um homem apaixonado a espera de outro e botas e canhões, encontros
postergados que acabam em asilos de doidos, ou no suicídio da Darlene,
José Gaetano tinha vontade de abrir a saga com o chefe do mais sórdido galeão dos sete mares, movido a entranhas humanas, o Umenneskelig.
Encontraria a voz lírica, tal qual a galhardia descritiva de Baulenas[2], enunciada do tombadilho de uma embarcação clandestina,
apodrecida, onde impera o caos piolhento e a prostituição da mente. O marujo José não admirava heróis de cabelo rente a nuca.
Sonhava madeixas ao vento e um martelo mágico para brandir, lógico. Apesar disso, o infortunado paneleiro estava um colhedor de rosmaninho,
voejava na penumbra, sem espalhafato ou capa, sem ação.
Insistimos em dizer que não o queremos menosprezar, ao José. Amamos ao mercante o suficiente para discernir em que lugar de honra o queremos, feito de espada e comorbidades, José Gaetano, o homem mediano retratado na canção[3]. Era a quinta vez que o título da brochura que ele escrevia, à qual almejava publicar, aparecia rasurado e redefinido, os anteriores ainda perceptíveis. Hoje nós o encontraremos um José abatido, nesses poucos dias que antecedem à Navidad, absorto em seus pensamentos, braços atados à saia da Rafaele, a Sor no cais da Ilha de Bom Bom, olhar adiante. Piticó, Piticó, la mágia comenzó[4], cantarolava ele.
Sono uno studante della vita, escreveu, santur dedilhado sem pressa. Il cuore di una bestia. E blá, blá, blá...
A carta que te enviei no último dez de outubro, amigo Donis – contava o comandante em delírio platônico, é guia para as fogueiras de Barcelona. Es inevitable piensar em ti. Es inevitable caer, sin tregua. Não sei se o mais acertado é sair, sem um níquel, com cobertas de campanha, uma panelinha de ferro, caneca, colher e navalha, talvez um atiçador. Uma brochura, pena, tinteiro. Um mapa? Corpo insatisfeito, espirito amortecido, objetos extraviados, um resfriado enervante, voragens do coração a obnubilar a mente, ou o contrário, é o mesmo, rumo às ondas da Nazaré. Demoro-me, sentado neste posto de observação em que me encontro, a ouvir tua voz, enquanto decido o rumo a tomar. A canção não vem. Bom dia, Capitão-mor. Era o primeiro parágrafo de mais um apelo ao vento. A Rosália que morresse, de filho no braço.
Caberia, neste ponto do texto, um tratado sobre atração, imantação e repulsão, talvez decisões ignóbeis, travestidas de acertadas. Vamos deixar, mais um pouco, cada louco com suas manias. Madame contou, ainda, que José Gaetano queria viver o janeiro que se anunciava, sem esperar fevereiro e era mentira. A cisma ia longe, para lá do Rio Teixeira. A lavra me chama a instrução e eu a compor verso, ia murmurando o lamurioso. Uma lágrima de José vazou sobre a página de seu diário de bordo. Desejo de tocar um coração, verso solto, verso mil vezes garatujado, palavras a esmo. Homem ou rato de porão eu estou? O que quero da vida, que abraço? O que dou a ela, além de nada? Diário de bordo, data do mar de vinte e dois dias do mês de dezembro de que ano não lembro, ano também e mais da graça de Nosso Senhor. Uns pensam acaso, outros fatalidade, a de que morreremos. Quero morrer em teus braços, Capitão-Mor. O que realmente vale acentuar, nas escolhas? Caos é rima impossível. Pássaros-bisnaus.
Por mais progressista se almeje a história de bordo, é preciso reportar ao leitor os lapsos aqui reunidos. Não se pode perder de vista o fato, natural, trágico, o que for, de que se trata de reminiscências, alguém que pretende preservar o que de bom há em reiteradas tormentas, desvios de rota. Que aquele que escreve está agora acamado, interditado e louco. Espaço para mínimas distrações. A quem o viajor quer legar estes calhaus, reunidos ao fundo de seu aquário particular? Talvez a um filho, ou amante expressivo. É importante reforçar que naufrágios, contumazes, não os houve nesta saga, a não ser o abandono parcial do Crisinho, a derrocada da narcótica Adele e a Amparo, contaremos logo. Algum outro, recolhido ao Casaredo, tardiamente, logo nos inspirará sobre mata-lo ou salva-lo, um escrevinhador tem destes poderes. Infaustas reviravoltas, revoltantes escolhas egoístas, facadas de orgulho, que atiram os barcos à costa ou a redemoinhos e, numa bela noite lunar, lá estão outra vez o Alois, a Rosália, o corsário e toda constelação a cruzar os céus. E a coisa só se encerra quando as palavras respiram, olho fixo na agulha magnética.
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