Hospital Casaredo 41
Uma comemoração equivocada
Casaredo, dormitório masculino um. O homem, de aproximadamente setenta anos, era fustigado por sonhos pavorosos. Uma onda enorme o engolia e separava de sua âncora. Foi assim que o senhor da Nossa Senhora despertou, desesperado, à procura dela. Julieta, Julieta. Engatinhou pelo quarto, a ranger dentes e resmungar sua cantilena. Agarrava-se às pernas das camas, gemia, exortava. A Nossa Senhora, em suas múltiplas vestes, era convocada. A enfermeira chefe Maria, que cochilava em uma cadeira de balanço no corredor, ergueu-se para socorrer. Tinha ouvidos de maenga esta mulher. Encontrou o velhinho, menor ainda do que era, sob um dos leitos. Banhado em lágrimas, todo urinado. Um assovio interno, era o que o senhor da Nossa Senhora deixava escutar naquele momento. Maria o soergueu, deu-lhe a mão e conduziu, sujo com estava, lentamente, até o pátio onde repousava a âncora, apesar do frio que fazia. A lua insidia diretamente sobre o objeto, como se fora véu diáfano a emoldurar-lhe e vestir. Do sul, vinha uma melodia dedilhada, as notas sol la sib la sol la sol mib, re sib re mib re re sib la, sequência de várias semínimas e duas colcheias, arrematadas por uma mínima, ao concluir a primeira e segunda frases. Triste canção, oriental, executada na sanfona, os baixos alternando os pedais; a melodia inspirava harmonias funestas e se misturava ao neno insistente que soava, ainda mais pungente, de janela próxima. O senhor da Nossa Senhora ficou parado. Não era possível saber se ele via ou ouvia o mesmo que Maria. A enfermeira se perguntava onde a realidade. Um trem, há alguns quilômetros, sintonizou com as melodias, cortou o fundo da paisagem.
Difícil a contagem das horas, as que marcam o final do ano. Pensar em morte, um perigo. Maria, sensível a este momento em particular, cantava vitória todas as vezes; mais um réveillon sem naufragar. Faltava pouco para a meia noite. Ano bom. Um acordo, firmado entre os enfermeiros, foi o de comemorarem a passagem a cada mês, caso houvesse sol, era uma tentativa de dirimir a ansiedade de muitos na casa. A prática - orquestrada há mais de dez anos -, não atenuava o temor pelo último dia de dezembro. Cada um com suas razões. Os fogos de artifícios, amiúde, promoviam surtos. Hoje, soavam pouco e longe. O episódio que envolveu a Julieta foi leve. Da janela do primeiro piso alguém despejou no pátio uma comadre. Por pouco Maltilde, que passava em direção à horta, não recebeu tal batismo, apenas respingos. Era mesmo Ano Bom.
Julieta, Julieta. O senhor da Nossa Senhora, em prantos, dobrou os joelhos sem despencar para frente e tocou a âncora com as duas mãos. Depois ficou de pé, executou a reverência aprendida com o doutor Wong Lam. O homenzinho passou a perna mais curta de um lado, flexionou a outra, os braços à cintura do objeto. Ficou assim, imóvel e abraçado. Arremedou o neno que escutava ao longe, acompanhado de leve balançar do tronco. O enfermeiro Gilmar o encontrou no meio da madrugada, abraçado à âncora, mesma posição. Maria dormia, encolhida na grama, ambos roxos de frio. Por sorte, o inverno solar garantia despertares com temperaturas amenas.
No refeitório, nesse mesmo réveillon, Júlio foi encontrado a dormir sobre uma mesa, aninhado entre os braços de Madame, a mãozinha a segurar-lhe um seio. Dormiam um sono sossegado, o menino a sorrir. A senhora, um esgar incógnito na face. Ao dar-se conta do sumiço do filho, passadas as sete e meia da manhã, Amparo repensou toda sua vida.
Despertada aos gritos, doeu em Madame a expressão da mãe. Se fora mais moça, Madame perguntaria a Amparo o que uma rapariga com filho pequeno fazia enfurnada em um asilo de velhos loucos. Olhar congelado, a madrilenha não escutaria, nem se a sanidade morasse em ele. Algo no coração de ambas se quebrou, era palpável, um susto capaz de atos de violência. Amparo levou o filho, naquele momento por maldade e não para o proteger. A senhora e suas restrições de movimento suspiraram. O menino voltaria depois, mais alegre ainda, por ter vencido a morte, a autoridade parental capenga, para fazer o que o seu amor mandava. Gaspare, que acompanhou a situação da porta do refeitório, sem se manifestar, absteve-se de consolar Madame. Amparo esbarrou nele ao sair e praguejou. O rapaz, imperturbável, fez o que era para ser feito, coisas de asseio, alimentação. Depois, Madame pediu para ir à praia. Lá, ambos encontraram Javier, o senhor da Nossa Senhora ao lado, alheio este, ainda sob o impacto da noite do abraço. A senhora se manteve, igual, no próprio mundo. Ignorou Javier. Mergulhou em suas páginas, tomou do lápis. Gaspare facilitou as coisas, pôs-lhe os fones de ouvido. O mar de Debussy foi aceito de bom grado.
A caminho de Santos, Brasil, contou Madame, a tripulação da Sor resolveu entre si comemorar o natal de um grumete. Foram ao porão ver o que havia para beber e abriram uma caixa de vinho do porto, propriedade da Coroa. Em a algazarra aumentando com o cair da noite, José Gaetano foi ao convés impor algo de disciplina. Encontrou a todos nus, uns lavados pelo mar, outros mais sujos que funileiros, a passar cachimbo de ópio uns para os outros. Entoavam um canto sobre o poder da cor da pele. Ô, ô, andá, a djê lelê lê leô. Ninguém acusou de onde apareceram, vinho ou ópio, por mais que José berrasse palavras de ordem, impusesse flexões. Dois piratas ousados agarraram o comandante e o ataram abaixo do mastaréu, de calças arriadas. José pensou ser seu fim, manteve silêncio. Reverenciou mar e céu como pode. Escarneceram dele, fazendo-o alvo de suas adagas e mãos. O campo magnético de José Gaetano desviou os golpes de metal. Apesar de o achar maricas, a tripulação tinha-lhe certo apreço. A postura quase feminil com que o marujo se dirigia a todos, independente de raça ou casta incutia afeto, por assim dizer. Também evitaram, naquela noite de excessos, constrangê-lo com atos sórdidos, algo nele os comovia. Porém, o corsário não foi poupado de presenciar desqualificações. A tripulação só parou porque as ondas, vindas do nada, onze metros ou mais, esperavam para engolir a Sor e tudo o que nela havia, a qualquer momento. A proa, escangalhada, perdeu todo anteparo. Salvaram-se todos, nus em pelo. O último que ainda tinha forças pela manhã, desatou os nós do comandante e o ajudou a compor-se.
Quando teve tempo de anotar o episódio, José Gaetano garantiu a si que o narraria em parágrafo sumário. Ele era desses homens que se compadecem com a desgraça dos irmãos de espécie. Ao frenar os próprios instintos, o eu sombrio viu como provocação o roçar de barbas naquela balbúrdia aquosa, o escorregar de mãos e outras coisas representaram tabefes. Entendeu que tudo era digno de dó. Uma solidão sem precedentes apiedou-se dele. Quanta violência haveria para sofrer. José foi muito bem lavado a sal, quem sabe se salvasse. Era um homem comum o comandante, tinha desejos, os quais trocava de bom grado por carinho e respeito. Procurava entender os apelos do organismo, o por que desses arroubos bestiais. Sabia que eram o motor de propulsão para qualquer jorro criativo. E não era patrimônio dessa ou daquela fase de crescimento. Na Sor, não havia espaço para morbos. José Gaetano perguntava a si para que repetir os mesmos delitos tanta vez. Era cumprir as tarefas e seguir para o próximo estágio. Nem uma onda repercutia, ou fazia o mesmo movimento. O que havia de imperfeito com os humanos? Que preguiça era essa de evoluir? A força do livre-arbítrio era benéfica, necessária, rapidamente desmoralizante, poderosamente corruptora. Felizes daqueles que sabiam usá-la com sabedoria. José Gaetano ainda precisava reprimir-se para dar conta do mar que lhe ia dentro. Tinha consciência de que esses freios auto induzidos proporcionavam efeitos colaterais, uma raiva aguda e ação injusta. Ele não era asceta, sonhava o encontro íntimo. Sonhava, acima de tudo, o amor íntimo. Tinha ideais de liberdade onde o ideal possível era família. Passada a tempestade, a bebedeira, o torpor, o convés se fez pacificado. O imediato fez pedido insólito ao comandante, que ele cantasse e tocasse o santur.
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