Hospital Casaredo 40
Novos moradores
“Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer. – Levanta, ó dono das preguiças”. Mia Couto
O olhar duro, de comandante. Absorvente, olhar de executor. Na ocasião, Rosália sentiu o útero feito caverna crivada de estalactites. Riu, quando o marujo bateu a porta atrás de si. Riu um riso agudo, maquiavélico, sombrio. Ouviu uma voz interna a escarnecer levanta, rosa vadia. Levanta, rosa vadia. Rosa não se lembrava de ter cobiçado os homens das outras. Não se lembrava de atos hediondos que houvera cometido, que justificassem o descaso por seu estado de mulher e gestante. Pensou no rostinho de seu filho. Deu-se conta de que o abandonaria, ato rebelde, covarde.
Depois de anotar o parágrafo, Madame procurou, no meio da madrugada, o leito de Antária, a única ali cujo nome e história todos conheciam. Agradeceu-lhe, como pode, a persistência, o amor que deu à criança. Em seguida baralhou-se, como se caixas e caixas de tecido fino despencassem do guindaste no cais. Quem seria aquela mulher, perguntava-se. De onde lhe veio a Rosa? Por que me convida, inquiria o ar. Por que me perturba? Assusta? Onde ela foi dar? Será que ainda vive? Madame voltou ao leito, não pode subir, dormiu sentada, um sono agitado. Viveu desconfortável sonho, a história de uma mãezinha jovem e cheia de incertezas, a vagar pela noite marítima.
Dormir, gozar letargos, despertar. Agradecer. Comer mingau. Receber a ducha reconfortante, às vezes um, às vezes outro enfermeiro a compartilhar suas intimidades. Madame era feliz, de certo modo. Por volta das dez horas, a senhora quis ir ao refeitório. Alev a guiou, andava visível por aqueles dias. Madame não se sentia confortável para cozinhar ao lado dele. Contentou-se em ser instalada próximo à porta, de lá podia apreciar a horta e a ensedada. Pôs-se a escrever novamente. Os ventos fortes a nordeste, cais do porto de Lisboa. Ali se encontrava o comandante José Gaetano, sem previsão de tempestade. O marujo suportava as variações climáticas, embora fosse antipático às frentes frias. Içou a Julieta, atônito. A notícia do futuro nascimento lhe mareou o íntimo com as mais profundas dúvidas. Não era bom momento para zarpar, fora desaconselhado quando passou pela alfândega. Teimou. Não poderia permanecer na capital portuguesa nem mais um instante. O que estava fazendo? Como se deu ao desaire, comportar-se como biltre diante daquele colo tão calmo da Rosa? E os planos do casarão, mudar-se, montar com ela a pousada? Acostumado às poucas vestes sobre o corpo, José saíra da hospedaria só de ceroulas. Desceu a Alfama desse jeito e, como a má reputação precedia o entorno, soldado algum o interpelou, imaginavam-no expulso de algum leito desaconselhável. Logo deu no Tejo. José vestiu uma calça em sua cabine e pôs-se, atento, ao leme. Os movimentos iniciais da nova viagem foram regados a uma garrafa de rum, virada de um só gole, a amortecer-lhe os músculos e o mau caráter.
O carregamento a ser transportado pela Sor era de pertences da Coroa. José Gaetano cuidou para fosse embalado em caixas comuns, etiquetadas como cordame e outras traquitanas de manutenção da nau. O homem metia-se com negócios maiores que sua aptidão. Não possuía qualquer queda para usura. Assumia problemas que não eram dele, incapaz de nortear a própria carta marítima. Como dizer a um homem desses que ele gostava do caos, sentia prazer em estar encrencado? No que dizia respeito à carga, caso houvesse saque à Sor, o bucaneiro pretendia salvar muitos caixotes. A rota calculada visava ancoragem primeiramente na costa nordeste brasileira, Salvador, Bahia. Os pretensos víveres, tecidos, livros, joias, vinho, boa parte para o consumo de El Rey, cobiçosa fortuna escamoteada, chamou a atenção da tripulação, que acreditava existir muito ouro sob aqueles disfarces. Para todos os efeitos, outro boato que corria era o de ser, tal fardo, indumentária pertencente a uma companhia de teatro portuguesa. O elenco da Revista Lisboeta Alhures embarcara na Galé Santo Antônio, no mesmo horário em que zarpou, às pressas, a Sor. Se havia algo teatral a bordo, quem sabe o cenário, só no desembarque seria possível conferir. As estratégias usadas naquele manejo, talvez levianas, camuflavam problemas mais graves, como insuficiência de água potável, alimentos, sem contar o soldo vago da tripulação, prometido para quando aportassem. Era a trigésima segunda viagem de José Gaetano. 38.707165, - 9.135517 - Lisboa - #2 Santos, Brasil - 23.961836, - 46.332249, destino final. Uma distância de 7.971,84 quilômetros. Uma jornada de ir e vir, tida como vitoriosa para o marujo. Nenhuma cisma ou premonição, coração seco, dentro do que egoísmo e orgulho permitem. Encontrar o Donis na volta, na ilha de Gonçalo Álvares, era possibilidade remota, eufórica, frenética. Se calhasse, José Gaetano ficava no meio do mar, agraciado, a Rosa que se arranjasse.
A narrativa, assim tosca, desprovida de tempero afrodisíaco ou bélico, deve provocar enfado aos amantes das aventuras do navegar. Nada da intensa história entre Vasco da Gama e o Mar Índico, os patrícios humilhados, depois tidos como temíveis inimigos. Nada de detalhes sobre corpos decepados, entregues como acordo mercantil ao samorim indiano. Nada de cenas picantes. Nada de abordagens heroicas. Nada de Zanzibar. De encontros fortuitos. De conflitos familiares, de mistérios, de assassínio, fornicação. Nada de embustes e ataques corsários, de confrontos com outras bandeiras europeias, nem uma desavença a bordo, nenhuma descrição de tornados. Nada, somente um poeta menor a singrar as águas, a olhar a lua e suspirar, sem ter muito o que dizer a não ser que sente saudade e que, apesar do torço nu, esconde o coração e a persona como quem detém o maior segredo do mundo. Nem uma descrição paradisíaca, ou encontro com sereia, com um barco amigo para refrega, nem areia branca ou basáltica, colisões com baleias, golfinhos, voos de arraias, gaivotas, comemoração do dia de Nossa Senhora dos Navegantes, nenhum congresso ecumênico, passageiro nobre, tripulante morto à traição, conversa com espectros, nada. Nada de histórias de demônios, de bruxaria. Nada de tráfico humano, a Sor jamais se disporia a servir como tumbeiro. Nem escaramuças políticas. Nada de festas a bordo, nada de atividades cotidianas no aperto da nau, nada de mastros que quebram, caem, de cascos danificados, vazantes do barco entupidas, transbordamento, nada. Histórias de crianças a bordo, idosos, funerais, nada disso. Epidemias tampouco. Nada de novas relações, profissionais ou amicais. Nem uma moça feia ou bonita para enfeitar o ambiente. Nenhum homem com quem se identificar, por quem se apaixonar. Soldados, marinheiros menos. José Gaetano não dispunha de mascote, nem cão, nem gato, nem papagaio, cacatua, coruja, falcão, cobra, aranha, tartaruga, aquário, nada. Não havia munição na Sor. Cada tripulante dispunha de um punhal ou adaga para os serviços gerais. Havia os livros, o santur, a voz, os diários de bordo e o silêncio, alternado pelo marulhar. Idiomas diferentes e dificuldade de comunicação, só lá no convés. Havia o céu, o horizonte e as águas. Às vezes, terra em algum arquipélago ou ilha. Nenhum desembarque forçado, nenhuma captura por selvagens. Poseidon acoberta a quem se mantém no leme a cismar. Vamos prosseguir viagem.
E quando, na manhãzinha lisboeta, José esperava o momento para partir, a refeição ainda quente no embornal, refez-se o trajeto dos dias de algodão em flor do seu coração. O parceiro de cantorias voltou-lhe à memória. Uma agitação de argilas no ar, o arado acabado de passar, a sondagem de pé em pé, flor em flor. Belo repertório, antiquado. Tudo a vogar, manso, denso, bom, tanta esperança. Vez ou outra, as queimadas da sorte enchiam o ar de fuligem, os galhos secos drenavam o pó, a terra revirada, o húmus nos desvãos. A gravidez da Rosa intrometeu-se, talvez, a única fecundação proporcionada por seus muitos milhões de legionários. E dorme o solo, a decantar misteriosas penúrias. Nada termina, tudo se renova, José Gaetano o sabia. A pertença ao mar era vaga. Haveria de chegar o tempo de celebrar este não pertencimento, o tempo de tudo florar em novo padrão. A responsabilidade, contudo, arengava no fundo da cabine. A raiva. Chegaria o dia de José ver a si, frente a frente com a consciência.
O caderno jazia no chão do refeitório. Madame, a cabeça apoiada sobre os braços, dormia diante da mesa para seis. Quem juntou as folhas soltas e as colocou ao lado de Madame foi Antária. Acariciou a face da senhora, beijou-lhe a testa e rezou uma ave maria inventada. O vento bate tão forte, Maria de Nazaré, lá, bem longe, já fiz esta oração. Senhora que nos trouxe Jesus, ajuda-nos em nossa viagem. Há tantas lutas em nós que é preciso apaziguar. Guarda o nosso coração de tantas fugas. Dá-nos firmeza para suportar a dor. Ilumina a nossa jornada. Cuida do rio, cuida do fio, cuida do mar. Ó Senhora Conciliadora, põe em nós a tua mão, sopra em nós a tua luz, dá-nos paz ao coração. Aquieta-o, Maria, Mãe de Jesus. O rezo, dito em voz alta e beatífica, trouxe Madame de volta.
Matilde e Bernice - que aprendia o ofício das emergências -, contiveram com rapidez um novo levante no dormitório um. Sem amálgama, ferimentos ou sujidades dessa vez. Era a segunda sublevação em dois dias. Mais um passamento ocorreu, na madrugada. Personagem sem nome, de número incerto, dois leitos longe de Madame. Talvez os ânimos estivessem exaltados pela presença da raposa de nove caudas e sua mortalha invisível. Ou seria Maria, a de Nazaré, a velar um suicídio?
‘(...) é preciso não esquecer e respeitar a violência que temos. As pequenas violências nos salvam das grandes’. In Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Clarice Lispector
Madame, um tanto aluada após a retirada do corpo da mulher sem nome, de número incerto, a energia vital a voejar pelo dormitório e escorrer pela janela, recebia alimento endovenoso. Parcialmente imóvel, optou por tratar-se através da escrita. Dizem, afirmou ela, tantas coisas, tantos são os julgamentos sobre a vida. Equivocam-se os que atribuem à morte o contrário de viver. O primeiro dedo apontado já o sabia. Extensor, magnetizador de metais. Pela força de atração, um túmulo com mil degraus foi encontrado, por debaixo do deserto do Egito. Em geral, a ponderação sobre a morte quer apaziguar deficiências praticadas durante a vida corpórea. Há metais alheios, anseios inatingíveis, ocos, oportunidades perdidas, eis que se erguem os costados de Itamaracá. Para lá rumam os ventos, onde antes batiam ondas salgadas. O Promontório de Sagres conta histórias outras, outras sortes. A virtude da paciência abranda o momento, por sua aplicação. Eu quereria a presença do parente, do chefe, do pastor de ovelhas, do condutor de carris, do fármaco, do mago, do livreiro. A proeminência do ventre, dorida, avisa movimento de dispersão. Alguém detém um martelo e o desfere sem dó, sobre o segundo mundo. Quando é hora de aponta-lo para si, o mesmo martelo treme e surta. Vão-se acumulando os atributos pejorativos ao nosso mercador, o José Gaetano, seguiu Madame a cismar. Quase que o perdemos em mar alto, tão pesado ia o paneleiro, quem diria, tão vigoroso. Recusou-se a assumir a cria, quantos assim procedem. Agora, mais este fado. Inesperado? Ato irrevogável, que não poderia rasgar as carnes de mãe para sempre.
Para aqueles que conviveram, ou mesmo souberam de casos de transtorno psiquiátrico no quadro parental, a imaginação lhes remonta uma sala cheia de camas, ou celas solitárias, escuras e fétidas, faixas de amarrar, duchas geladas de grande poder, correntes, um sótão ou um porão para isolamento. Talvez seja apenas aqui, nesta memória minha, a presença de excrementos e sangue, em meio a gritos, espancamentos, pranto e risadas sórdidas. O fato é que tais perturbações pontuam vários trechos da vigília e mais, do sono perenemente intranquilo que vivo. Ou estou morta e não mo disseram. Estou a perder minha mente? Enquanto houver acuidade para cozer, creio estar lúcida. Gaspare, Gaspare, vem logo. Que é que se encontra nas noites pavorosas? Tabernas fumarentas, cenas obscenas muito antigas, gestos pouco cordiais, corredores muito nítidos, de hospital, becos, lixo, fogo fátuo, olhos em brasa ou atoleimados pelo vício, alcovas suspeitas, descumprimento das leis naturais, homens e mulheres a coagir. Cabelo de fogo, vem logo. No mais, é subir ladeiras sem fim, rastejar por avenidas amplas ou ruelas sem saída. Quem foi que inventou esse tipo de noite? Que saiu para jantar com morcegos? Que foi caçar com hienas? Urutaus? Manoel, vem logo. Quem tocava um instrumento de dedilhar? Ou tomou nos braços um gato branco molhado, afogado, ou uma galinha, um pato, degolados? Quem ficou preso com cobras em um charco? Quem foi que viu a empunhadura de um revólver pela mão do amado, ou descer uma estaca de ferro sobre o próprio peito? Quem viu o próprio corpo no espaço da cova, molhado e nu? Quem foi que escavou as covas no campo santo com as próprias mãos? Quem foi que dormiu mal ou ficou sem dormir por muitos dias, jornada afora? Alev, não te demores a vir.
O dia amanheceu, exausto, a voz de Maria a soar longe, o xaile de minha mãe mais tarde serviu também pra agasalhar meu filhinho[1]. Nada ocorreu de horrendo, em lugar algum. O turno do Casaredo se cumpria, nascente, diante do mar. Agradecia a tal generoso arranjador, de tanta água, inspirador daqueles homens que a sabem dessalgar. A saudação ao sol daquele dia foi proposta por Amparo, aparentemente refeita do surto do riso. Ela ensinou ao grupo a girar sobre os pés, enquanto entoava um canto cigano. Era a primeira vez que a moça vinha praticar Lian Gong. Cada giro que executava, sincronizado aos próprios dínamos, aos ritmos circadianos, criava cadências sincopadas e proporcionava forças a todos os presentes. Alev girava e refletia, eles não sabem da ópera a metade. Mesmo assim, manteve a equanimidade.
Madame veio sozinha à rotina, apesar do cansaço. Surpreendeu-se com os movimentos novos. Chorou ao escutar o pipa, seu piado de pássaro misterioso. Recuperou-se dos sustos da madrugada. O instrumentista chinês, um senhor de sessenta e tantos anos, pedira afastamento à Companhia de Shangai e pretendia prestar serviços voluntários ao hospital. Ele era conhecido, no meio artístico, como Te Dan, Ovo de Ferro. O músico era também poeta e cantor. Chang Chang achava que era cedo para o artista deixar a cena. Te Dan, ao contrário, disse ter encontrado ali, naquela casa, suas raízes e pacificação. Combinou com Wong Bohai pagar uma pensão, que, ele não soube, seria contabilizada em separado, no orçamento do Casaredo, para os gastos do próprio músico. Te Dan e o administrador demonstravam grande afinidade entre si, como parentes próximos. Dias depois de oficializar sua estadia, Te Dan propôs um sistema de apadrinhamento ao hospital. O músico foi o primeiro a auxiliar financeiramente mães em gestação, que teriam assim condições para criar seus bebês. Logo, outro personagem, ator, foi admitido no quadro de moradores permanentes. Tornou-se padrinho de duas senhoras sem nome, recém chegadas, como ele.
Instalado em um dos sobrados, Te Dan convidou Gilmar a dividir com ele o lar e histórias de viagem. Para o brasileiro, o músico chinês tornou-se amigo e também personagem do mundo HQ[2]. Bastou uma noite de conversa e música para que a forma, a alma do mangá nascesse. A Ásia inteira, no imaginário de Gilmar, era o Japão; com Te Dan, a saga ganhou novos territórios, significados e perfis. Contos orientais, trazidos por aquele apaixonante dragão alado, o seu jeito sombrio de descrever aldeias, mulheres, homens e espadas, pobreza, dificuldades, palcos e guerra, extermínio em massa e gente incrivelmente tranquila, deram ao enfermeiro uma satisfação inusitada, ampliaram sua visão de arte. O instinto de bandeirante acendeu no rapaz. Te Dan adormecia após as longas conversas e Gilmar então ia desenhar, aperfeiçoava e elaborava novos cenários bidimensionais. Às vezes, olhos turvos, o enfermeiro saia à murada sul para tocar sua sanfona. Desenvolveu técnicas novas, novas sonoridades. A que horas dormia Gilmar, por quanto tempo, só Alev podia calcular.
Foi em uma segunda-feira úmida. Não muito longe do muro, uma voz lúgubre de mulher entoou um acalanto. Até a areia empalideceu. A ro ro ro mi nino, a ro ro mi sol, a roro lalê de mi corazon, este nino lindo que nascio de noche quiere que ló lleve a passear en coche.
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