Hospital Casaredo 32
O huli jing e o transtexto da casa colônia
Gaspare, desde que chegaram ao Hospital Casaredo, deixou de usar sua técnica de escuta musical com os pacientes. A urgência de sair da Assistência para o novo hospital, as adaptações, os novos rumos dos tratamentos, alteraram de forma pungente o modo de pensar do enfermeiro. Seus três objetos de pesquisa, as senhoras Dois, Três e Madame respondiam à rotina de modo parecido, entre pequenos surtos e períodos de normalidade. A realidade, sempre mais ou menos nebulosa. Gaspare sabia que o objetivo da aplicação de repertórios musicais era, superficialmente, oferecer calma, acalanto, similar ao que a enfermeira chefe Maria tinha como máxima em seus atendimentos. Gaspare, no afã de acordar os pacientes, sacudi-los, adivinhava trilhas sonoras, como se fora ambiência de filmes. Acordar significava, para ele, estarem, todos, no presente, desfrutar da casa, inteirar-se das histórias, quiçá receber alta e voltar para a família, para os amores. Elocubrações, o rapaz sonhava, gostaria de acertar prognósticos. E da família de Gaspare, quem sabia? Para onde ele voltaria? Quando foi para a escola de enfermagem, o jovem já tomava conta de si há bastante tempo. Desde que se lembrava, fora assim. Não conheceu os pais. De asilo em asilo, de tio para tio, era tratar de agarrar as ofertas imediatas, ou parar nas calçadas de Setúbal. Quando veio para Lisboa, andava pela borda do Tejo, como o fazem os romancistas. Sem ilusões, contudo. Apesar de uma vitalidade transbordante, tinha como princípio aguardar o par com quem constituiria família, mantinha-se tranquilo com seus relacionamentos afetivos, fáceis de acontecer e desmanchar-se, sem dores, sem mágoas.
Régia era uma mulher altaneira, corada, desbocada, que logo se afeiçoou do menino. Gaspare gostava de seu italiano aportuguesado, de seu riso largo e achou um bom arranjo cuidar dela enquanto pode. Era um conforto de duas vias. Ele tinha uma cama no pequeno quarto de aluguel que ficava no Alto da Guerra, protegia a dama da noite, ganhava algumas moedas que economizou com entregas de víveres, livros, flores e recados, o suficiente para pagar a escola e o leito. Régia o mimava, filho querido que nunca teria. Combinaram que ela trabalharia enquanto ele estivesse fora, estudando. Um laço vermelho, discretamente amarrado à aldrava dava o recado. Gaspare foi uma espécie de faz tudo para os lados da Mouraria. Quatro anos de apreço e alforria para ambos. Régia deve ter ido para o céu. Foi vitimada pela tuberculose. Lutadora férrea e agradecida, morreu nos braços do rapaz. Com Régia, Gaspare aprendeu, na prática, o amor incondicional, ingrediente essencial na Assistência, como se pode testemunhar até o momento.
Até o momento, a primeira possibilidade de encontro de almas, Gaspare aguardava com Javier. Sabia o quanto o amigo sofria por várias razões. A de ser homem e belo era uma delas. O amigo ia se tornando estátua de gelo e Gaspare nada podia fazer. Javier era casado e isso bastava para o dissuadir de qualquer avanço. Ao lembrar da história de Madame, Gaspare podia entender o que sofrera o marujo José Gaetano, a confusão em sua mente, a ruptura em seu coração. Sentia, ainda mais, a dor de Amparo. A dor de Rosália. A dor dos pacientes o comovia, aqueles barcos encalhados na casa assistencial, asilados, exiliados, em câmara retificadora, na cadeia. O sentimento por Javier ganhava contornos e cores novas. Gaspare e os pintores, atores, poetas, músicos, saberiam valorar tal joia, dirigir com maestria o destino do amor, sem o macular. O enfermeiro, acima de tudo, encarava com rigor a toxidade e saúde das relações humanas. Tinha escolha.
Sentado na areia da praia, diante de uma noite nervosa, Gaspare enxergou, a alguns metros, a pequena luz do barco pesqueiro. Ele ficaria ali, até os pescadores voltarem da lida. Compraria peixes frescos. A lua ora aparecia, ora se ocultava sob nuvens pesadas. Caso chovesse, o enfermeiro não arredaria pé. Aquela era uma noite de tratamento. Javier chegou, sentou ao seu lado com o mesmo fim. O pequeno Júlio estava com febre e cheio de pústulas. Varicela. A esposa cuidava do filho, que agora dormia, Javier os deixara a descansar no sobrado novo. Ficaram os dois colegas sem falar, a olhar o horizonte escuro e faiscante. Então escutaram avante, corsários, que já vem a pesca. Valei-nos Nossa Senhora dos vândalos. Dessa vez, o senhor da Nossa Senhora investiu contra os enfermeiros, com uma força de vários homens. Com as mãos limpas, pode bater por alguns momentos. Evitou tocar-lhes o rosto. Os enfermeiros não o contiveram, apenas se esquivaram de alguns golpes, rindo. As pancadas pareciam limpar o ambiente, ativar a circulação. Cobertos de areia os três, Gaspare e Javier gargalhavam daquele espalhafato, enquanto tomavam mais coices. Logo, o velho senhor acedeu ao surto, retomou o fôlego e sentou-se, a cabeça afundada entre os joelhos. Vomitou bile.
No que era possível enxergar na noite escura, o senhor da Nossa Senhora os encarou, primeiro com raiva, depois desesperado, desolado. Não sei onde está foi repetindo, o mar engoliu, a vida engoliu, capitão m’esqueceu, capitão não lembrou. Valei-me, Nossa Senhora das galés. Javier, compadecido, começou a improvisar sobre uns versos que aprendera. Gaspare os conhecia igual, alternou no encadeamento melódico. E começou a dançar em volta do velho arqueado, uns passos de tarantela. ‘Vim à luz em Covadonga. Morro em Alcácer-Quibir. Vou sepulto à flor da onda: Onda que vai volta a vir. O meu nome é Portugal. Trago a alma baptizada pela Távola Redonda. Vim demandar o Graal, vim à luz erguendo a espada. Vim à luz em Covadonga. Fiz-me ao mar à descoberta, a bordo da caravela, dos mundos por descobrir. Mas perdi a rota certa. Deu-me no peito a procela: Morro em Alcácer-Quibir. Nos tempos d’El-Rei Diniz, perguntei: – “Ai Deus i u é?” Sem que ninguém me responda. Sempre quis a quem me quis. A rimar fé com maré, vou sepulto à flor da onda. Diz-me El-Rei Sebastião, que a bruma oculta de véus. Se peço pra me acudir: – “Aguarda a ressurreição. Jamais te direi adeus.” Onda que vai volta a vir. Vim à luz em Covadonga. Morro em Alcácer-Quibir. Vou sepulto à flor da onda: Onda que vai volta a vir’.[1] Quando o senhor da Nossa Senhora voltou à calma, a manhã já nascida, seguiram para o Casaredo, os três à milanesa, com alguns peixes para o almoço.
Aquilo das receitas de bacalhau, tão equilibradas, feitas à maneira de escultura, virou notícia de tabloide. Estava no Casaredo, naquela quinta-feira, o jornalista Jerônimo Alcântara, famoso pelas patacoadas que alavancavam alguns canais sensacionalistas. O senhor e a senhora Wong Chang acharam por bem acolher o homem. Ele vinha com um auxiliar, o fotógrafo Álvaro Vilar. Andaram por todos os recantos da casa acompanhados por Chang Chang e por Alev, este às ocultas. Cumprimentaram a todos com seu discurso um tanto vazio e bajulador. Álvaro a registrar várias imagens. Os filmes da máquina foram surrupiados, misteriosamente, antes da dupla ir embora. Na cozinha, Gaspare e Madame trabalhavam um carapau. O peixe, fruto daquela noite estranha e ao mesmo tempo divertida com o senhor da Nossa Senhora, estava sendo cortado em postas. Havia batatas já cozidas, pequenas cebolas, folhas de couve, ovos cozidos, azeitonas pretas, grão de bico cozido, alhos inteiros, fatias de tomate, lascas de pimentão, molho de tomate espremido com as mãos, a cebola do molho, bastante cheiro verde, um pote de sal, uma bilha de azeite e outra de vinagre. Javier se juntou a eles, como se nada houvesse a fazer. A amizade sã e insana era selada no preparo de uma refeição. O belo enfermeiro ajudou a finalizar as travessas. Madame olhava para o rapaz e arengava moço bonito, não pode. Moço bonito, não pode. Ela percebeu algo de romance não selado, embora correspondido.
Álvaro Vilar bateu as chapas sem pedir licença. Várias de Amparo, que lavava o corredor com as saias arrepanhadas e se curvava demais para torcer o pano. De Júlio, a brincar com um cão e ensaiar os primeiros esboços gráficos a giz, na calçada. Um vômito no quarto do segundo piso, um beijo atrevido. Uma trança desfeita. Uma comadre. Lençóis esvoaçando, lavandas, uma vaca na ordenha, uma tosquia de verão. Um gato a dormir. Um encontro furtivo na lavanderia. Um choro sentido. Um exercício de Lian Gong. Uma aula de bordado. Uma enfermeira a ninar um velho enorme. Uma garrafa de rum. Um estranho homem a escalar a escada improvisada nos fundos do Casaredo, aos berros sobre uma Nossa Senhora das escadas tortas.
Jerônimo Alcantara, atônito com o balé rubato na cozinha, procurava anotar o modo de preparar o carapau, uma experiência arriscada onde se esperava bacalhau. Viu cortar as batatas em quatro partes, as mini cebolas al dente, viu juntar as couves na água do peixe. Viu os homens a fritar batatas, escorrer o excesso de óleo. Viu a senhora a dourar o peixe no azeite, viu caírem os alhos, acrescentar-se o tomate, os pimentões, cebola bem picada, refogar bem, juntar o extrato de tomate, as gotas de vinagre. Corrigir o sal. O cozido levou duas xícaras de água e agregou os ingredientes por dez minutos. O fogo foi apagado. Acrescentou-se o cheiro verde picado, as azeitonas, o grão de bico cozido. Gaspare foi generoso comas regas. Forrados, seis refratários, com folhas de couve, depois as batatas, cebolas, o peixe, ovos cortados ao meio. Javier cobriu a travessa com molho e era só servir, com o arroz branquinho que Gaspare preparou. Quatro garrafas de Cantanhede, jarras de água e um suco de fruta do Brasil guarneceram a mesa. Afinação perfeita das mãos, silêncio reverente durante todo o processo, apenas interrompido pelo tilintar dos utensílios e dos clic da máquina fotográfica. Júlio entrou no refeitório, passos trôpegos, atrás de um cão. Assim como entrou, saiu, rindo de puro gozo. Passava, naquele instante, a bela cigana com o rodo na mão, a esfregar o corredor. Tal aparição tirou a atenção da senhora cozinheira de seus afazeres, sem sem maiores comprometimentos. Ela pasmou, a olhar a porta já vazia e repetiu ah se este rodo voasse, ah ah ah. Dali a pouco, enfermeiros, médicos e visitantes haveriam de comer uma bela travessa de carapau, foi no que Madame pensou. Todos sentiriam saudades de algum afeto durante a refeição. Lá fora, num canto discreto do bosque, uma seringa de morfina jazia, abandonada com displicência.
“Com o fim do tédio desaparece o dom de ouvir e desaparece a comunidade dos ouvintes. (Os ninhos do tédio) já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo”. W. Benjamin.
Javier e Gaspare, que não tiveram folga para almoçar, viram Josefine entrar no refeitório. Ela assumiu a limpeza das panelas. A moça lhes aprontaria um farnel generoso e alguns doces, para mais tarde. Madame foi levada por Gaspare ao pátio interno, onde havia uma trilha estreita, salpicada de lírios roxos. A senhora ainda cantarolava, já sem vigor. Se este rodo voasse, ah, ah, ah e misturava com pedaços da canção de Covadonga, que intuíra no ar. Às vezes, numa mudança bizarra de tom, a senhora esganiçava o meu lírio roxo do campo[2]. O caminho que percorreram dava em uma âncora de navio, engastada sobre um bloco de granito. Se Madame precisava pasmar, que fosse diante daquele símbolo de significado austero. Gaspare ficou com ela, enquanto Javier correu em direção ao filho, para rolar com ele no gramado, Santur envolvido no folguedo. O cão então apartou-se, ouriçado, embrenhando-se por um capão. Logo voltou para perto da criança, não sem antes por o focinho entre os joelhos de Madame, como a pedir permissão. Sem perceber alterações no ambiente, Gaspare cantarolou, grave, ‘Vim à luz em Covadonga. Morro em Alcácer-Quibir. Vou sepulto à flor da onda: Onda que vai volta a vir. O meu nome é Portugal’. Madame, sem deter o olhar, soube que o enfermeiro Alev se esgueirava, no caminho indicado pelo cão. Cantou moço triste, coitado del’. Mais alguém se ocultava perto, entre o arvoredo, e tiritava. O cão se pôs ao lado de Júlio feito guardião. Via-se do ser mal disfarçado os olhos vermelhos e a cauda molhada. Alev resgatou o fado nos braços e o levou, somente Madame flagrou tal gesto. Uma piscadela e estavam acertados. Gaspare também acordara, aceitou o sinal e permaneceu onde estava.
Na sala da administração, pai e filho conversavam. Sabiam que era preciso contar, na equipe de enfermeiros, com pessoas pragmáticas, que resolvessem problemas sem as escaramuças dos psicologismos. O doutor Wong Lam ponderou com o pai, poderia treinar a todos para serem objetivos em suas ações. Wong Bohai contra-argumentou, tal pendor era necessário na fonte, era vocacional. Sobre Alev e Matilde, decidiram que não era prudente dar a eles chefias. Eram joias criativas no grupo. Inventaram funções interessantes para si. Embora pouco lícitas, coloriam de humanidade as diferentes situações, em todos os quadrantes da casa. Dar poder ao tipo de caráter que carregavam poderia enaltecer o pior dele. Matilde, com seus cabelos de fogo sempre esparramados. Alev, com seu tino de agente duplo, mais ou menos envolvido com contatos obscuros. A úlcera do rapaz controlada, mas ainda assim, dificultava-lhe a digestão, às vezes Alev se tornava ríspido, irritadiço. Matilde e suas manias, relativas a contenção. Alev e seu instinto voraz. O sistema de rodízio impetrado por Maria tornara as tarefas leves para a maioria. Cada atendente sabia das funções que lhe cabiam quando assumia o turno. Cada profissional avaliava seu desempenho ao final do período, através de um questionário semiestruturado, tipicamente chinês. Todos sofriam nessa atividade, preferiam que alguém os pungisse, se necessário, a falar sobre as próprias não virtudes. Ética, honra, fidelidade, honestidade e renúncia eram testadas a todo momento. Alev e Matilde, os mais transparentes no organograma. Nem sempre as coisas corriam bem. Os turnos eram lineares, quase tediosos. A expertise, que brotou na travessia para o Casaredo, não precisou ser mais acionada até o momento. Gaspare, Javier, seria importante apoiar estes dois, em suas questões de ordem pessoal.
Havia um desafio para a casa colônia: trinta novas vagas estavam a disposição do público enfermo. Noventa idosos para atender, portanto. Era trabalho que exigia conduta firme, rígido padrão humanitário. Os novos integrantes da equipe, à maneira de valetes, ainda se aclimatavam ao ritmo do atendimento. Camas novas chegaram às enfermarias. Nove leitos por dormitório. Quatro atendente e quatro voluntários para cada turno de quatro horas. O público, o mesmo: necessitados, com indicação ou que batiam aos portões, na faixa dos sessenta e cinco anos em diante, com diferentes níveis de debilidade física e mental, de várias partes da Europa. Chegaram, havia pouco, um marroquino que falava o amazigh e compreendia o espanhol e uma senhora que somente balbuciava a palavra Okinawa. Enquanto isso, pelos recantos do jardim, papelotes, cartelas de medicamento vazias, seringas, rastos bem guardados por Santur.
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