Hospital Casaredo 27




Surtos e falecimento



Hoje a lua se escondeu. 

Não a vi, não apareceu. 

Então, menino, vai dormir, que o sol já vem.  

Então, menino, vai dormir, que o sol já vem. 

Dorme, dorme, dorme, meu menino, 

dorme, dorme, dorme, meu menino, 

amém.

 

Assim que foi possível, o caderno de Madame tornou a ganhar anotações. Ela passou a escrever sob uma parreira, carregada de uvas pretas naquele início de outono. Gaspare pôs para ela uma mesa de armar junto à cadeira. Talvez, com vontade de falar do presente, Madame foi ao passado, às memórias de José Gaetano. O comandante visitara os avós em um sonho, a avó que lhe fizera festa e também a que lhe esconjurara. O avô silencioso velou pelo marujo menino, protegeu sua vida, insuflou perspectivas, para que tivesse coragem quando se tornasse independente. O avô que plantou jardins e os destruiu e tornou a semear, para que pudessem brotar, exortou-o à lide no mar. Avô modinheiro e contador de causos, período leve para José. Lembrava-se de vários incidentes tristes e engraçados que envolviam estes personagens. José sabia, tivera a família que se enquadrou melhor ao seu perfil. As gentes da infância o incitaram a observar suas tendências, a corrigi-las, superar seu temperamento melancólico, contraditório, carente de autocuidado. Se lhe faltou a prática do amor incondicional, não cabia a José cobrar. Estava diante de si a oportunidade de progredir, não desejava indultos. 

 

José Gaetano apreciou todas as tripulações que com ele viajaram. Eram, muitas vezes, filhos da sua alma, lhe doíam, conforme iam e vinham. O comandante os defendia em silêncio, como fizeram os avós com ele. Por que se negara ao rebento trazido por Rosa, a mais doce figura da tripulação? Ainda não sabia. Sentia falta dela. Em Alois, pouco pensava agora. Não lhe esperava mais as mensagens. Madame deixou cair o lápis, depois o caderno e pegou no sono, inclinada para a esquerda em sua cadeira.

 

Um mês de estadia no Casaredo, a satisfação perfumava de jasmim certos recantos. A implantação do hospital colônia se concretizava, saia do papel. O primeiro movimento, organizar a administração. Cada um dos atendentes e voluntários conversou por algum tempo, primeiro com Chang Chang. Foram definidos perfis e funções, de acordo com as competências de cada um. O nome Chang Chang denotava o que a senhora transparecia, alguém a florescer. Tinha cinquenta e dois anos, começava a ficar grisalha. Seu cabelo, cortado a Chanel, dava-lhe um ar simpático. A voz, suave e grave, delimitava uma distância respeitosa, muito por seu sotaque carregado. O semblante revelava tenacidade e ternura. Tanto os homens quanto as mulheres a respeitaram assim que a viram pisar na entrada da casa. Cada enfermeiro, a exemplo do que acontecera na entrevista com o doutor Wong Lam no sanatório, respondeu a Chang Chang o por que de estar ali. Difícil formar um quadro objetivo. Chang Chang, ciente da importância que a fundação do hospital representava para todos, das mudanças pungentes, sentiu atarem-se laços genuínos, mais poderosos que entre pais, irmãos, filhos. Uma comunidade de prática socorrista, sólida, nobre. As limitações pessoais os mantinham vigilantes, prontos a esperar, a trabalhar, a perdoar, a mover-se pela paz e pela preservação da vida sã. A solidariedade era tônica do discurso de todos, descrita de muitas maneiras. O enfermeiro brasileiro, Gilmar, novidade na equipe, assim como Catarina, de origem eslava, ambos em franco entrosamento, inclusive no domínio do idioma português, estavam presentes às narrativas dos colegas, era bonito observar como se acolhiam verdadeiramente entre si. Chang Chang historiou, após colher dados confidenciais, as questões humanas de seus administrandos. Um caprichoso dossiê foi montado, para  ser apresentado ao marido. A senhora, um passo adiante das barreiras culturais, afeiçoou-se, de pronto, ao navio onde doravante viajaria. Encantou-se com uma âncora reluzente, fincada no bosque praieiro, que podia ser vista da sala onde ela trabalhava.

 

Wong Bohai era seco, mas não se enganassem. Seu coração era as ondas do mar, caudaloso. Apresentou a cada enfermeiro um contrato, que pediu para lerem sozinhos, depois juntos. Na condição de advogado, o novo administrador poderia representa-los, porém havia outro colega da área jurídica, que cumpriria melhor o papel de auxilia-los nos assuntos trabalhistas. Giulionni já estivera no sanatório, como todos se lembram, tratando da papelada de transferência dos pacientes, do desligamento dos atendentes e da vistoria. Os rendimentos propostos à equipe do Casaredo estavam abaixo das expectativas. Havia cláusulas para ascensão de carreira, bons reajustes a intervalos pequenos, além de cursos de capacitação e outros bônus de participação. As horas de trabalho eram humanas. Havia plano de saúde, folgas mais frequentes e quinze dias de férias duas vezes ao ano. Um implemento que levaria algum tempo para ser assimilado, também cláusula de contrato, era o Gao Kao. A auto avaliação diária, por escrito. O instrumento assustou de inicio, parecia censura e restrição. A aplicação desta técnica tinha um objetivo justo e valioso, que seria conhecido por todos quando a hora chegasse. Tal afirmação estava posta em contrato.

 

Os corredores internos do Casaredo receberam latadas de lavanda. As plantas humanizaram o prédio. Matilde e alguns voluntários se encarregaram da jardinagem em vários ambientes. Criaram um sistema de horta comunitária que deu ocupação em especial à ala masculina, os que podiam realizar tarefas ao ar livre. Mais tarde, até em cadeira de rodas foi possível plantar, regar. Um trabalho cuidadoso foi feito para que os instrumentos de jardinagem pudessem estar ao alcance da maioria, sem riscos, uma ousadia no tratamento da demência senil. O fantasma dos pontos mortos, presente em qualquer humano, começou a abandonar o organismo e a mente de alguns pacientes. Era como se plantassem em si energia saudável. O clima de tolerância era tangível, a necessidade de contenção cedeu. As mudanças no quadro clínico geral foram vagarosas, mas eficientes. Não receberiam alta, e mais por não terem para onde ir. Viveriam melhor seu ciclo final, isto era certo. Serenados, o ambiente permitiu novos procedimentos terapêuticos. O doutor Wong Lam reforçou, com muito tato, o fato de ser responsabilidade do paciente querer melhorar-se. Difícil acreditar que uma pessoa chegava à catatonia porque se permitia, se descuidava, desistia de si. Aos poucos, o médico apontou evidências interessantes, até de casos forjados, pacientes que preferiam permanecer sob cuidados, sedação, paralisia, atenção total. Havia os casos curiosos, que inspiraram teses. Madame, um deles. A prática, no hospital colônia, recendia a imersão propedêutica  também para os atendentes. As preleções do doutor davam força aos vocacionados. Novos psiquiatras brotariam daquele jardim.

 

 

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. 

Fernando Pessoa

 

 

Pouco antes do terceiro mês de convivência no Casaredo, Madame, as senhoras Dois, Três e Quatro tiveram recaídas bruscas. Parecia, o estado delas, não fazer sentido. Um quadro depressivo as prostrou em horas, de maneiras peculiares. Sombras rondavam o dormitório do primeiro piso, como se algo intangível as tivesse, de alguma forma, encontrado. Havia períodos de estertor, gritos, gemidos, choro, contorções. Nove leitos dispostos no ambiente arejado, limpo. Era um campo de guerra. Para a senhora Três havia lençóis especiais na cama, que a mantinham segura, inclusive de ferir-se. Ela era de compleição mirrada, sobrava-lhe o leito com folga, a não ser quando se transformava em um inseto gigante. Não, não estranhem, a magreza dava esta sensação, a de um mosquito barulhento e feroz. Agora, o mosquito parecia ter sido preso em uma rede. As enfermeiras tinham-na acomodado em um casulo seco, a ver se voltava a perceber o entorno. Adele, uma quase menina entre as senhoras, por vontade própria convivendo entre elas, acompanhava os surtos muda, alheada apenas na aparência, um esgar obsceno, puro deleite. A moça, no momento, não exigia maiores cuidados, nem quis ser removida a outro espaço. Curioso processo, as pacientes trocavam fluidos entre si, tal qual se estivessem atadas a uma tina de Mesmer.[1] Não se ajudavam, a crise lembrava um entorpecimento alcoólico coletivo, com direito às barbáries desta condição física. Tal quadro se limitava ao dormitório um.


Foi Madame quem deu o tom para aquela condição atenuar-se, no quarto dia de crise. O novo sistema de comadres provocou em Madame impulsos defensivos. Ela sentia-se insegura para aliviar-se no próprio leito, mesmo exasperada. Envergonhou-se, a principio, de reclamar. Não podia evacuar. Molhava-se com uma urina ácida e malcheirosa, isso ela não controlava. Chorou tanto, doeu tanto, que desidratou. Um quadro histérico, para um diagnóstico superficial. Maria foi proibida de a ninar. O doutor Wong Lam estava enganado, mas sua orientação era a de que o exercício de ninar viciava, como se a paciente pudesse requerer atenção exclusiva. A hipótese não poderia ser desconsiderada. Então, veio a reação. Madame desceu da cama furiosa e, mesmo ferida no joelho, usou sua raiva entredentes para arrastar-se até o banheiro, que descobriu sabe-se lá de que forma, talvez pelo som que as camareiras produziam ao limpar. Fez suas necessidades no box, a urrar e blasfemar. Conseguiu puxar a torneira de água gelada sobre si e, quando Maria chegou para acudir, a senhora estava limpa, apesar de arroxeada de frio e talvez machucada em seu colón. O clínico geral que visitava os quartos duas vezes na semana, para fazer exames de rotina, entrou no banheiro e Madame tiritava, encolhida a um canto, a água a purificar o ambiente. Recusa-se peremptoriamente a vir para a maca. Vociferava como um marujo malcriado, apontando espadas imaginárias a quem se aproximasse. Ao médico, que não reconheceu, a senhora respeitou. Prosseguiu com a arenga de papagaio blasfemador. Na quinta algazarra que fez, quando o médico lhe apertava o ventre, Matilde mostrou-lhe uma camisa de contenção, por trás dele. Foi o suficiente para Madame se comportar, ao menos por algumas horas. Acabou embrulhada na camisa ao final da tarde, apartada das demais pacientes por dez minutos. Foi capaz de repetir, baixinho, vou me comportar vou me comportar vou me comportar. À noite, no refeitório, não houve outra maneira de relaxar senão arremedar os trechos  menos despudorados proferidos por Madame seguidos do final jocoso vou me comportar vou me comportar. Wong Lam estava com o grupo durante a refeição. Sorriu em silêncio e depois saiu para fazer Lian Gong na praia. A mãe seguiu com ele.

 

Iniciou-se um treinamento com Madame, por conta deste episódio. Ela aprendeu, a duras penas, a transferir o corpo da cama para a cadeira de banho, disposta ao lado do leito, mais alto que o do sanatório. Depois, deveria usar a comadre acoplada ao acento. Até que realizasse estes dois exercícios sozinha, um atendente se aproximava para ajudar. O único, aprazível para a senhora, com quem não chorava ou gritava, era Manoel. Este foi beijado somente em uma ocasião, uma marca no pescoço para recordar, que ele exibia com certo prazer. Tempo passou, eternidade em um ambiente hospitalar como aquele. Duas outras pacientes responderam bem ao mesmo procedimento. No dormitório um, o uso das comadres normalizou-se após quarenta longos dias. O quarto ficou conhecido como a mansarda das princesas. Quatro mulheres voltaram a comer sozinhas no período. Uma delas ocupou-se, molhava as flores da janela; outra bordava. Novo treinamento: o uso de fraldas. Para quem nunca as usou, eram mesmo incômodas. Ninguém quer presenciar uma guerra de caca. Houve algumas. No banheiro, a cadeira para higiene tornou mais fácil a lide dos atendentes. Madame quase ignorou seu caderno durante a saga do penico, alternando entre estados depressivos e fúria. Ela era quase rainha. 


O roseiral e um belo cachorro, doado pela senhora Luariz, despertaram em Madame novo fôlego. Gaspare chamou ao animal, um labrador dourado, Santur. O latido dele lembrava o tanger de uma corda do instrumento. O cão passou a acompanhar Madame, adotando-a como dona. Tal encontro devolveu alguns anos a ela, serenou seu semblante, melhorou sua capacidade respiratória e a movimentação fina. Falar tornou-se confortável, totalmente inteligível. Uma escuta mais atenta, afável, que sensibilizou até Matilde.

 

Adele não chamara a atenção até o momento. Foram dar com ela, entender que destoava do conjunto, dias após a guerra das princesas ter fim. Os enfermeiros começaram a questionar a estadia dela junto das senhoras. Havia estagiários na equipe de atendentes, orientados por Matilde a reduzir danos. Quando tudo parecia controlado, a moça foi pega em flagrante por Maria, a mexer o armário de remédios. Matilde precisou entrar em ação, vigilância era também sua função. Entre os estagiários, havia um padrinho do AA[2], Alberto Rosas, que passou a ser anjo de Adele. Chang Chang tornou-se peça fundamental no resgate desta paciente. O que as duas conversaram, ninguém soube. Adele mudou depois da entrevista, comportou-se com mais firmeza, cortesia. Concordou em ter um ambiente só para si, na enfermaria. Lá ela não ficaria sozinha, o rodízio de pacientes naquele espaço evitava apegos. As crises no dormitório de Madame cessaram, depois que a moça foi transferida.

 

Dez e quinze da segunda-feira. O sol fazia sorrirem as lavandas. Um grupo de  pacientes do segundo piso movia-se na horta, orientado por Gilmar e Matilde. Colhiam verduras para a refeição. O mais promissor dos paciente, o senhor Quatro, caiu. Estertorou por alguns instantes, veio a óbito. Matilde, com sua presteza, encaminhou os demais e suas bacias para o refeitório. Quase nenhum tinha clareza do acontecido, exceto o senhor da Nossa Senhora. Este não atendeu ao chamado da enfermeira. Humilde, baixou os olhos e começou a recitar sua prece para a Senhora da Lama e a Senhora da Paz. Acrescentou a Senhora dos Navegantes. Como sempre fazia, o homem pequenino dobrou os joelhos, dessa vez sem despencar e cair de cara. No meio das plantas, o senhor da Nossa Senhora foi acometido por visões, que descreveu depois como pirilampos. Depôs a bacia com a colheita diante de si e ali permaneceu, rígido, sorrindo e chorando, de braços estendidos para o alto. Matilde aprendera a deixar o homem em seu encontro sagrado. O doutor Itaú chegou nesse instante de prece. A enfermeira apossou-se da bacia de verduras sem movimentos bruscos. Ainda teve tempo de ver o doutor ajoelhar-se ao lado do paciente. Itaú foi dizendo cada frase em forma de responsório. Por um momento, Matilde embargou. Seu coração, um tanto seco, cascateou no peito. Ela também precisou de amparo. Foi a madrilenha quem a socorreu. Sentaram-se, as duas, nos degraus da cozinha, Amparo segurou as duas mãos da enfermeira, sem nada dizer. O morto foi retirado da horta com muito cuidado, por Gilmar e pelo coveiro, Teotônio. Os vegetais recolhidos foram organizados pelos pacientes junto com Gaspare, na pia da cozinha. Catarina olhou para todos os homens e seu rosto afogueou-se. Era lindo o trabalho que faziam, ela pensou. Agradeceu por estar ali, por testemunhar tanta compaixão. Os pacientes, já de mãos limpas, os aventais pendurados, as luvas de jardinagem postas nas prateleiras, foram conduzidos por Gaspare a um salão de múltiplas ocupações. Ouviu-se, então, soar a Ave Maria de Schubert, limpa, floreada, improvisada. Uma frase, cantavam o senhor da Nossa Senhora e o doutor Itaú, lá na horta. A outra, Madame a sussurrava no corredor. 

 



[1] Engenhoca criada por Monsieur Mesmer, para um sanatório francês. 

[2] Alcoólicos Anônimos 

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