Hospital Casaredo 26



O abraço do novo lar

 

Ao entrarem no jardim, os enfermeiros suspiraram. Olharam a fachada creme e branco, ainda sem acreditar. Estavam diante de um palácio que rescendia lavanda. Era um grande passo para a vida de todos. Sem esmorecer, após a longa e tensa travessia a pé, começaram as verificações. Havia planilhas de tarefas afixadas na entrada. Wong Lam sossegou a todos e orientou para que dispusessem os pacientes ali mesmo, sob as árvores. O lugar era sereno, florido, havia a brisa, o som do mar. A terapêutica da Natureza faria o trabalho de acolhimento.

 

Madame, ainda sonolenta pela medicação que recebera nas pedras, teve sua atenção atraída por um roseiral colorido, que dispersava um bálsamo sutil pelo ambiente. Aceitou, a sorrir, sentar-se em um banco. As senhoras Dois, Três e Quatro dormiam perto. Gaspare andou entre os pacientes, mediu sinais vitais. Algo em seu coração doía, era um encerramento. Mesmo assim ele esteve atento, ofereceu comodidade, água e, para alguns que permitiam, um afago nos cabelos. A ausência dos gritos e da agitação da travessia provocou torpor coletivo. Gaivotas e andorinhas ativavam seus sonares ao longe. Alguns pacientes olhavam o entorno e seus rostos traduziam a expressão morri, morri, morri.

 

A enfermeira chefe Maria estava maravilhada. Tivera permissão para entrar no prédio. Leitos novos, paredes limpas, de um verde jade com detalhes em creme, azulejos tradicionais por toda parte. Os colchões eram firmes e vieram com protetor. Foram doação pessoal da Desembargadora Luariz Sezna. Os lençóis, de polipropileno, seriam mais fáceis de lavar e manusear, em número suficiente para até três substituições, conforme se estragassem. Havia travesseiros laváveis, recobertos por capas de fácil asseio.  Tecidos especiais, macios, em tons pasteis, fariam as vezes de toalhas para banho. As camisolas, já conhecidas, as havia às centenas. Igualmente, babadores, fraldas descartáveis em profusão. A novidade das máscaras e luvas provocou muito riso. Era um luxo inexistente no sanatório. Produtos de higiene pessoal e de limpeza, os havia para vários meses. As duchas práticas nos banheiros animaram a todos. Os armários estavam arrumados. Matilde fizera um excelente trabalho com seus auxiliares, incluindo inventário, etiquetamento e planilha de gastos. Ela trabalhara muito naqueles dias de preparação, de um para outro estabelecimento, com a ajuda de duas furgonetas cedidas pela senhora Luariz. Naquele início de tarde, a enfermeira dos cabelos ruivos e alvoroçados não perdeu o ritmo e seguiu com suas funções, sem dar mostras de fadiga, pronta a conter, sempre. Somente para Maria, ela tinha um sorriso quase tímido.

 

As furgonetas conduziriam parte dos colaboradores de volta às suas casas, dentre eles Pierce Rice, visivelmente impressionado e satisfeito com todo processo. Ele demorou-se nas despedidas com Amparo e o sobrinho, confortando a cunhada e reafirmando, tudo ficaria bem.

 

Ao final desse primeiro dia na casa, chegaram os pais do doutor Wong Lam, encarregados da administração do hospital. A equipe já havia conversado sobre esta decisão, Wong Lam precisava dedicar-se à sua profissão, não poderia acumular mais funções. O que espantou a todos foi a senhora Chang juntar-se às enfermeiras no dormitório, na primeira noite. Dócil, gentil, a senhora parecia uma abelha mestra circundada por suas auxiliares. 

 

Jamais os enfermeiros se depararam com tamanho bem-estar, nem quando atuavam em outras alas do sanatório. Um refeitório amplo, novo, equipado com cozinha industrial. Uma variedade de papas e rações para alimentar vários exércitos. Maria descobriu como usar a máquina de café e preparou também uma bandeja de biscoitos, o que reconfortou a toda equipe. Alguns, sentados à mesa, permaneciam quietos, respiravam pausadamente. Gaspare, às voltas com o que lhe doía, ergueu-se e fez uma longa reverência ao doutor. O doutor devolveu a reverência a Alev. E assim, foram-se estreitando laços de cordialidade. No final, todos se curvaram juntos, como a saudar o novo espaço de trabalho. Ainda não sabiam que ali era a casa deles, de papel passado.

 

Dispostos os leitos, banhados, vestidos, alimentados, os pacientes finalmente foram integrados à nova morada. Eram dezessete horas e dez minutos quando o último foi acomodado. A maioria dos pacientes não se dera conta das mudanças, muitos estavam sedados, em sono induzido. O turno da noite prometia surpresas.  

 

Era hora de conhecer o espaço de repouso para os enfermeiros. As mulheres compartilhariam um quarto ensolarado, amplo, boas camas, com janelas para o jardim. As valises tinham sido distribuídas por Matilde, dois dias antes. Todas agradeceram os lugares determinados, sem barganha. Banheiro privativo para elas, imaculado. As mulheres trataram de banhar-se. Os macacões limpos estavam dependurados em armário comum, agora com nomes bordados no bolso direito, por uma senhora gentil de Vila Nova de Gaia. Papel de parede de cores distintas, ao fundo do armário, limitava com folga o espaço de cada uma. Dois pares de sapatos, confortáveis e novos, esperavam por seus pés. Em menos de vinte minutos, Matilde, Joana, Catarina, Josefine, Amparo e Maria estavam preparadas para render os homens, que então conheceriam seu dormitório, no segundo piso. Júlio tinha um mimoso cesto para dormir, ao lado da cama de Amparo. Naquele momento, o pequeno ressonava nos braços do pai, que o ninava no corredor.

 

Houve um ou outro atendimento fora da rotina noturna, nada emergencial. Diante de um armário repleto de medicamentos, as pranchetas de cada paciente nas mãos, Maria foi compondo as doses em um carro, um luxo que nunca tiveram na Assistência. Gaspare e ela se encarregaram das primeiras ministrações. A enfermeira chefe pôs os olhos na paciente Adele, que esvoaçava pelo corredor um tanto aérea e deslocada. Maria passou por Alev, que lhe piscou, confiasse. Na cozinha, Catarina encheu cumbucas com ração em temperatura ambiente, copos de suco com canudo. Arranjou as refeições em um carro de distribuição, que logo ficaria famoso pelo tilintar, e saiu para atender aos pacientes despertos. Josefine, uma das voluntárias que se tornaria atendente, fez um lanche reforçado para o pessoal em serviço, junto com Amparo. Seria quase um banquete, do que estavam habituados a comer. Os pacientes seriam brindados, mais tarde, com purês doces e gelatina, também novidade no cardápio.

 

Nos dias que se seguiram, o trabalho adquiriu corpo, abraçou a casa. Uma equipe, dentre os voluntários, foi cuidar de compras e abastecimento da dispensa, fármacos, outros aviamentos. Os novos servidores da limpeza se mostraram prestativos e eficientes. Amparo estava satisfeita na função de supervisora desta equipe. Vestiu seu macacão como quem joga a primeira partida de um campeonato e limpou pessoalmente os sanitários das senhoras e das enfermeiras. Ficou bonita na vestimenta, talvez ainda mais do que era. Atenta, procurou inteirar-se dos movimentos. Soube que os distritos de Braga, Aveiro, Viana do Castelo, Guimarães e Coimbra se apresentaram como apoiadores do hospital, ato politico de grandes proporções, com visibilidade mundial. O que mais a interessou foi testemunhar o atendimento emergencial a um grupo de ciganos, vindo de Sevilha. A comunidade permaneceu acampada nas proximidades, com permissão da Guarda da Cidade do Porto. Uma mulher estava em vias de dar à luz. Em agonia, foi prontamente atendida. Havia crianças portadoras de verminose e outras enfermidades infantis. Pessoas idosas, que careciam diagnóstico e cuidados. O clinico geral, Luiz Pedreira, ainda a ponderar sobre seu enquadramento ao plantel do hospital colônia, teve bastantes atendimentos por vários dias, em função da presença dos ciganos. A experiência o ajudou a decidir-se. 

 

Amparo visitou a trupe, serviu de intérprete. Javier fez a triagem dos casos a tratar. A chefe da caravana, Carmín, grata pela atenção dispensada à comunidade, dividiu com Wong Lam os  contatos que possuía, de organizações filantrópicas habituadas a favorecer pessoas em situação de risco.  Vários estagiários de enfermagem puderam realizar suas provas práticas de graduação, nesse período de grande e diversificado atendimento. A enfermaria do Hospital Casaredo foi inaugurada, com a realização do parto. Tudo correu bem, procedimentos dentro da normalidade, apesar de a criança estar invertida. Mãe e  bebê receberam alta em dois dias e puderam retornar à caravana. Este evento, marcante, deixaria sementes para mais adiante.  

 

Motivo de alegria, nesse início da história do Casaredo, foi a visita de um time de futebol português, que teve o ônibus da delegação quase tombado na estrada, há um quilometro da casa. O motorista sofreu uma parada cardíaca ao volante. Teve os primeiros socorros ministrados por Alev e Wong Lam, ainda no ônibus. Após Gaspare verificar que todos os passageiros estavam fora de perigo e pacificados, a delegação seguiu viagem. O motorista permaneceu internado e seria transferido mais tarde a um hospital especializado em Coimbra. O técnico da equipe e sua estrela mais brilhante, nascida na Madeira, visitaram as instalações do novo hospital colônia e se comprometeram verbalmente a tornar-se apoiadores. A equipe voltaria, para comemorar a inauguração oficial do Casaredo. 

 

Um organograma, elaborado pelo doutor Wong Lam, foi exposto à equipe em reunião formal, presidida pelo novo administrador. Cadastros, fichas, estatutos, normativas, tudo ia sendo apresentado de pouco em pouco. O Casaredo contava agora com porteiros, serviço de limpeza, de manutenção, de adequação do espaço, empreiteiros. Nenhum atendente, exceto Alev, tinha noção do que fora necessário fazer para que eles estivessem ali naquele momento. 

 

Os encargos do hospital, urgentes, foram postergando a esperada inauguração. Faltavam alguns meses para o Ano Bom. Alardeou-se um réveillon. Buscava-se harmonização entre hospital, administradores, corpo médico, atendentes, colaboradores, equipes de apoio, pacientes e visitantes. Não faltaram novas faces àqueles meses de instalação. Prestavam-se vários serviços de utilidade pública. Logo organizou-se a Associação dos Amigos do Casaredo.

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