Hospital Casaredo 25

 

matizes dumont



Rolam as pedras que devem rolar



Qual é o tempero das canções

Um colo quente, a mãe do dia

Aracy, voz dos pássaros

 

Qual é a alma das canções

A roupa, o tanque, o quarador, Maria

O varal, os braços fortes da ventania

 

Qual o sentido das canções

filhos do Sol

A vida que passa, a mão da poesia 

Ah, filhos de Gênese

 

Qual é a voz das canções

O rio, as multidões, as hidras 

as orlas, o véu, a algaravia

 

Qual canção no horizonte

Um colo quente, mãe das manhãs, Carolina

Os filhos da arrebentação, as estrelas guia

 

 

Gilmar compôs um tema musical para aquele instante. Juntou versos de outra canção, cinzelou aqui e ali. O senhor da Nossa Senhora, ao seu lado, olhava sério, como se aprovasse o sentido, como se compreendesse o conteúdo. Nos intermezzos da sanfona, o velhinho oscilava de um pé para outro. Às vezes, parecia segurar uma palheta com a mão esquerda e tanger com ela um objeto à frente, que conversava com o fole. Gaspare passou por eles e o movimento daquela mão o atraiu. O enfermeiro meditou sobre o poder terapêutico das canções. Era forte o sentimento geral de gratidão, de preservação da vida, da ordem, não havia espaço para elucubrações, e Gaspare seguiu adiante. Grande esforço, o dispendido para controlar emoções, para transmutar a energia captada em determinação.  O cortejo se aproximava das pedras, hora de alerta máximo. Agora era cruzar ou cruzar. E seguir. Gaspare gritou a ordem: sigamos!

 

Um gesto lento, calculado e Gilmar, a correr todos os riscos, despiu a sanfona e a engatou no peito do senhor da Nossa Senhora. Aguardou a reação. O paciente não demonstrou surpresa. Acarinhou o objeto como se fora um menino pequeno ao colo. Sacudia-se sutil, como a ninar. Dali a pouco se escutava baixinho a voz a entoar eu ouvi um passarinho às quatro da madrugada[1] e a imitação do toque nos baixos do instrumento, sem abrir o fole.  A maca de Madame passou por eles. A paciente estendeu o braço por alguns segundos em direção ao senhor da Nossa Senhora e logo desfaleceu. Amparo e Maria, já de frente uma para outra, respiraram juntas e começaram a travessia da pedras. Dariam socorro do outro lado. 

Eis o momento crucial da travessia, vinte e nove catres, conduzidos por sobre pedras, secas. A maré baixara e o vento enxugou os rochedos. Aquele trecho deveria ser vencido em dez minutos pelo grupo das macas e em menos de cinco pelos caminhantes. Um silêncio reverente se fez. Os repórteres a distância calculada, os homens de Alev incógnitos. Adiantaram-se mais três pares de macas e, no tempo previsto, pararam todas na areia, do outro lado. Maria então tomou o pulso de Madame. Arrítmico. Aninhou a senhora ao colo e repetiu-lhe o canto que a fez desmaiar. Cinco minutos de tratamento. Madame despertou e começou a balbuciar os nomes José, Julieta, José. Matilde aproximou-se com o sedativo. Trinta minutos se passaram. O cortejo venceu as pedras. Vinham agora os últimos caminhantes, titubeantes porém acolhidos por pelo menos dois voluntários. Até as crianças reduziram a euforia, ajudaram no que puderam, cuidaram de Julio, que olhava tudo com certo assombro e ameaçava querer chorar, mesmo porque já passara a hora da mamada e ele precisava trocar as fraldas. O grupo começava a sentir a umidade das ondas. Alguns quiseram seguir para o mar. Foram brandamente conduzidos em direção a areia e, hipnotizados que estavam, atenderam ao chamado da segurança. Um homem apenas escapou e foi contido com presteza por Matilde. Alev aplicou o calmante no paciente e o deitou em uma das macas de apoio. Gilmar se prontificou a carrega-lo, porém o colega o preferiu livre, para fazer música. Agora, era vencer os  cinco quilômetros restantes até o novo lar. Diminuiu o som de choro e os barulhos em geral, todos já muito cansados. Aumentou o peso das macas e arrastou-se o passo. Todos receberam cremes de proteção para o sol. Não fora a esperança dos atendentes e voluntários, a travessia ficaria registrada como sofrimento. Gaspare e Javier repetiram várias vezes sigamos, sigamos. Vai valer a pena, sigamos. Marchemos, avante. Dali a pouco todos cantavam a Grândola.[2]

 

O sol era, sempre, aliado das manhãs. Já afastados das pedras, houve pausa para lanches, para hidratação. Alguns pacientes foram lavados à beira da praia. O doutor não incluíra banhos de mar no programa, apenas socorro fisiológico. O senhor da Nossa Senhora gentilmente devolveu a sanfona a Gilmar. Havia um brilho novo naqueles olhos mortiços. Gilmar, como se lhe houvessem retirado cem toneladas dos ombros, começou a tocar um xote e, não demorou muito, vários pacientes e acompanhantes bamboleavam em torno dele, alguns até trocando passos da dança de roda. Até Wong Lam se deu ao brinco, a embalar Matilde, a senhora Dois, Gaspare e Manoel, que saltava como um grilinho. Dançando um xote tropecei com alegria na melodia de pisa na fulô. E quando vinha o refrão - pisa na fulô, pisa na fulô, pisa na fulô, não maltrata o meu amô[3] -, este era repetido duas vezes pela comitiva, aos berros e cada vez com animação maior. Muitos personagens daquela travessia lembrariam emocionados do momento, pelo resto de suas vidas, a dor permitiu passagem. Para aqueles que, no mundo inteiro, pararam para ver a saga pela TV, a travessia foi momento encantado, próximo da mentira. Jeronimo Alcântara fez a narração com apelo dramático, veiculado por muitos telejornais matutinos. Contou alguns casos, autorizados pelo psiquiatra chefe e o advogado, Giulionni. As tomadas do cinegrafista eram sempre panorâmicas, de bom gosto. Imagens da Senhora da Burrinha apareciam, aqui e ali, muitos devotos a homenagearam, religiosos aproveitaram para oferecer mensagens aos telespectadores.

 

Acreditem ou não, os ventos foram sempre auspiciosos. O refrão de Pisa na fulô ainda se ouvia aqui e ali. A comitiva chegou, enfim, ao destino. A imponente fachada do Casaredo brilhou nas telas de milhões de telespectadores. Eram doze horas e trinta e sete minutos. O doutor Wong Lam conseguiu desvencilhar-se dos repórteres e demais bisbilhoteiros, pelo bem dos pacientes. O Pelotão da Guarda da Cidade do Porto permaneceu no perímetro, a proteger a orla até que todos fossem devidamente instalados. Os bombeiros, de grande valia em todo processo, carregaram várias macas durante a travessia, aplicaram sedativos, ofereceram alimento e higiene. Os grupos de apoio foram se despedindo, muito comovidos, as santinhas com eles. Um menino presenteou o senhor da Nossa Senhora com uma, pequenina, cabia em seu bolso. O caminho de volta era longo, o alívio pelo dever  cumprido e o cansaço eram uma só unção. Em alguns dias, todos haveriam de comemorar juntos as novas instalações. Vinte, daqueles mais de cem colaboradores, se fariam funcionários permanentes do novo hospital colônia. 

 

 



[1] Canto tradicional alentejano

[2] Grândola, vila morena, José Afonso

[3] Pisa na fulô - canção de João do Vale e Alceu Valença

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