Hospital Casaredo 24


A travessia

 

Chegou o momento ansiosamente esperado. O grupo da Assistência organizou as tarefas em três etapas, a serem cumpridas em aproximadamente seis horas, com margem de erro de duas horas. Como era início de verão, sairiam do prédio às quatro e meia da manhã, todos juntos. Se tudo corresse bem, antes das treze horas avistariam a entrada do Casaredo. 

 

O silêncio da direção do sanatório sobre a partida da ala de idosos causou alguma apreensão, a equipe ficou de sobreaviso. Era possível que fiscais viessem, para inspecionar a transição. Precauções foram tomadas contra ameaças aos pacientes, oferecimento de suborno a voluntários, sabotagens ao patrimônio. Nada, ninguém apareceu. Alev plantou, entre os participantes do movimento, conhecidos seus afeitos a combates, nem Wong Lam soube disso. Vieram prontos a dissolver o menor sinal de corrupção. Os ousados, se houvesse, dormiriam por algumas horas, em grutas, céu aberto, nus, ao consolo dos siris. As notícias correntes descreviam a ala como deplorável, para a qual não valiam esforços ou atenção. Quanto antes se cumprissem as metas de saída, melhor. Wong Lam estava de posse de documentação legal, detalhada, descritiva de toda a instalação; fotografou os ambientes, utensílios, no afã de prestar contas com exatidão. Contou com auxiliares, enviados pela Desembargadora Sezna, para ajuda-lo no processo. Cuidou de não expor pessoas nas imagens. 

 

Manoel, Alev e o brasileiro Gilmar supervisionaram as limpezas pesadas e outras minudências, com rigor de paladinos. Gilmar, assim como Catarina, terminado o período de substituição durante o recesso dos enfermeiros, solicitou  integração à equipe de atendentes, no que foram muito bem recebidos. Muito ainda seria contado sobre estes dois. As macas de campanha foram construídas por Gilmar e Manoel, com o auxilio de vários carpinteiros. 

 

Faltavam poucos ajustes para o início da travessia. Sempre  atenta quanto a surtos ou qualquer emergência, nessas horas era Matilde a arma secreta. Em alguns segundos a moça era capaz de fazer uma contenção, sedar ou chamar a atenção com firmeza, melhor até que Maria. A enfermeira ficou, dessa forma, no controle de danos. Sentiu que finalmente tinha seu lugar na equipe. Estava satisfeita. Maria conversara com ela durante os treinamentos. Duas mulheres francas, a abordar questões íntimas, assuntos que constrangeriam em uma sessão terapêutica e talvez fossem insolúveis.  Maria falou detidamente sobre apego e mania, sobre as consequências da não vigilância dos impulsos, das emoções, reações. Matilde aceitara sua situação. Todas as mulheres internadas naquele posto se encontravam ali por desajustes, vítimas de alguma frustração afetiva, de algum passo mal dado no campo dos relacionamentos. Uma coisa era cuidar delas, até sentir satisfação com o trabalho. Outra, inimaginável, era estar a mercê de estranhos, na condição de paciente. Tinham sorte, as duas enfermeiras. O corpo de enfermeiros formado na Assistência era distinto, vibrava bem, sempre disposto a acolher. Maria perguntou a Matilde o que era melhor, nove amigos ou um amante, inda mais usurpado a outra mulher. Ambas concluíram a conversa apertando-se as mãos, com a promessa de se apoiarem, para que jamais precisassem se encontrar na posição de dementadas. 

 

Junto ao portão da Assistência, os comandos foram acionados. Joana e Catarina estavam incumbidas em contabilizar os pacientes, estes já asseados, vestidos e alimentados. Matilde ficaria um pouco mais no sanatório, após a saída de todos, para concluir a higiene das camas e fazer as últimas conferências. Seis auxiliares voluntários estariam com ela.  Foram-lhe confiadas as chaves das portas. Ela não sabia, mas Alev esteve todo tempo ao seu alcance. Todos os colchões, lençóis e apetrechos de vestuário usados até aquela manhã seriam devidamente incinerados. As fogueiras estavam armadas desde o dia anterior. Gaspare e Javier chefiariam todo o percurso até o novo hospital. Cobririam todas as frentes, a delegar função e providenciar socorro. Alev, Manoel e Gilmar controlariam o miolo e a retaguarda. Um pelotão se fizera fiel a eles, pela firmeza de caráter, correção e empatia que externavam. O cumprimento da missão, com sucesso, era esperado. Maria e Amparo acompanharam Madame, como é sabido. A senhora dera de gemer baixinho, algo como saudade. Um jumento ia ao lado delas, já familiarizado com as damas e o peso de Júlio. A dona do animal ia alegre, um pouco atrás com o filho, ao lado da Senhora Três.

 

Para Júlio, aqueles foram dias de surpresas divertidas. O pequeno ria às gargalhadas, não se lhe afastassem os barquinhos. Amparo intuíra que seu bebê faria bem aos pacientes. Tal observação a ajudou a minimizar o desconsolo que experimentava. Para o bebê, o contato com crianças, animais, a visão do mar foi fundamental para o manter feliz. O bem estar dos pacientes naquela travessia se deu, em parte, pela presença dos pequenos. Manifestações de ternura vinham, em especial, das mulheres. Júlio permaneceu no cesto a maior parte do trajeto. As crianças das herdades, que eram maiorzinhas, iam e vinham na carreira, no inicio tímidas, depois a desbravar, acompanhadas das reprimendas das mães. Javier, apreensivo em seu posto, sentiu algum afeto por sua mulher pela primeira vez. 

 

A excursão, atípica, causaria alarido na academia, Wong Lam o sabia. Para a sociedade, era esperar. Alguns eram partidários do fim dos sanatórios, a favor de hospitais colônia. Por não se tratar de acontecimento relevante, o caso permaneceria desapercebido para a maioria da população, porém, não escapou ao alvoroço da imprensa. Houve destaque para a preparação que antecedeu o evento em diferentes tabloides. A Cidade do Porto, precavida, acionou sua guarda desde o início da madrugada, para evitar quaisquer constrangimento aos partícipes. A equipe de atendentes esteve disponível apenas para coletivas de imprensa, não viessem colher dados individualmente ou se meter com pacientes.

 

“Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento”. 

Cecilia Meireles

 

 

Não longe deste episódio, o bebê da irmã de Amparo, Agrado, estava por nascer. Pierce, seu marido, seguia a trabalhar na fábrica de azeite, certo da paz em sua nova família. A esposa estava saudável, ajustada, passava bem. Os jovens consortes haviam retornado à própria casa, em Vila Nova de Gaia, depois dos meses de convivência na Ribeira do Cavalo. Uma doula fazia companhia a eles. Agrado garantiu a Pierce que teriam alguns dias até o parto. O rapaz se sentiu à vontade, portanto, para o engajamento à travessia da Assistência. Uma ação dessa monta era importante para suas convicções e, de mais a mais, ele queria por os olhos em Javier, entender quão vocacionado era o cunhado, já que a união dele com Amparo ia mal. Com a desculpa de fazer isso por Agrado, Pierce dava vazão aos seus ciúmes, fruto da beleza do outro, da coragem do outro. Seriam apenas poucas horas de uma manhã, correspondiam a um período de folga. Pierce tornaria à casa com elementos suficientes para pensar em seus anseios, tão secretos, que nem ele os transformava em visualizações. Na mente de Agrado, a presença de Pierce ao lado de Amparo era oferta de suporte, segurança.  

 

Pierce chegou ao sanatório pouco antes do sinal para avançar. Impressionou-se com o quadro a conduzir. Alev o recepcionou, Javier  tratou-o com amabilidade. Após receber as primeiras coordenadas, Pierce foi escalado para distribuir água e frutas, além de precisar estar atento a eventuais substituições, em especial, na condução das macas. Por não ter se avistado diretamente com os pacientes, o tio de Júlio precisou respirar muito para não chorar ou acovardar-se. Nunca tinha visto tantos humanos depauperados juntos. 

 

Os voluntários se destacavam no cortejo, vestiam camisetas com as cores de Portugal. Às costas das roupas, ia escrito Casaredo. O que aquietou o coração de Pierce foi olhar o sobrinho a brincar e tagarelar com as crianças que lhe faziam festa, enquanto aferrava-se com seus barquinhos à boca. O tio vinha ao encontro do bebê a todo momento, oferecendo-se para trocar de lugar com Amparo.  

 

A conversa com Wong Lam produzira efeitos calmantes em Javier. Ao expor seu dilema, o enfermeiro contou que não se apaixonou por Amparo. Era uma atração terna, fraternal, com grande chance de durar muitos anos, caso soubessem nutri-la, caso poupassem conflitos sutis. O enfermeiro fez um relato emocionado de sua percepção das coisas, de quanta piedade sentia, por todos. O frisson que ele causava no ambiente do sanatório, por ser belo, o impedia de ser empático. Maria e Gaspare eram amigos valorosos, em quem Javier aprendera a confiar. Ele também sentia imensa ternura por Madame, se identificava com ela. Matilde não passara despercebida e o rapaz não tinha intenção de a magoar. Ela foi mencionada nos momentos finais da sessão, como mulher intensa, dona, porém, de forte senso de dever. Wong Lam orientou Javier a reforçar seu campo de defesa, sem afastar as pessoas. Aglutinador do grupo, por sua postura, o enfermeiro ganhara o respeito de todos, era confiável. Apesar de todas as dificuldades, a sessão foi encerada com um pedido, que Javier desse uma chance ao casamento, aproveitasse a disposição da esposa em se aproximar. 

 

Um dos pacientes, aquele que clamara a Nossa Senhora há poucos dias, marchava trôpego. Gilmar ia a seu lado, sanfona sobre o peito. O enfermeiro tocou o refrão da canção uma vez e, no ritornelo, o velhinho veio com ele, a bradar entrei na dança de roda, mas não cheguei a dançar. Enganei todas as voltas, não me deixaram ficar[1]. Seguiam os dois a cantar, cada qual a lidar com suas sequelas, naquela onda humana de resvalados da vida. Passaram por Pierce e bradaram, ainda mais esganiçados entrei na dança de roda, mas não cheguei a dançar. Gilmar, apesar de alegre ia tenso, pronto a largar a sanfona caso o perigo se apresentasse. Manoel ia um pouco atrás, ao lado da senhora Quatro, que estava atenta ao catre de Madame. Esta gemia, um apito agudo, a garganta espremida. Às vezes ela balbuciava lembra-te sempre de mim[2]. Júlio dava gritinhos de contentamento no seu cesto, mais ainda quando o pai passava, a ver se tudo estava a contento. Vez por outra Javier voltava, a trazer-lhe um navio que caíra. A presença do enfermeiro, uma flor no bolso do jaleco, fazia sorrir sua esposa e também Madame. 

 

Maria seguia, calada. Ainda não fora ao Casaredo, não tinha ideia do local para onde se dirigiam, o que encontrariam, apesar de todas as descrições entusiásticas que lhe fizeram os colegas. Há muito, perdera os elos familiares. Aquele riacho de sofrimento em que se encontrava imersa era sua gente, eram seus filhos. Toda mudança aflige, era natural. Manoel aproveitou que sua acompanhante apertara o passo, deixou Pierce com ela e suas cismas e perguntou a Maria se queria que a substituísse. A enfermeira meneou a cabeça, estava bem. Mesmo assim, Manoel seguiu ao lado, em silêncio. Madame parou de gemer.

 

Era de causar calafrios a estampa da caravana. Ao mesmo tempo, ia com o grupo uma vibração folgazã. O vento afastava para longe eventuais cheiros ruins. Ficava a amônia dos peixes, um cheiro de areia e plantas aquáticas. Caminhavam há quarenta minutos e a impressão era de dez horas passadas. O sol já nascera. Escutava-se choro, súplicas, resmungos, gritos, impropérios, às vezes gargalhadas bizarras. Alguns espasmos tiveram início e só nesses casos foi providenciada sedação. Aquele movimento era benigno, instigante, apesar do perigo iminente. Matilde e seus auxiliares já integravam o grupo, ela enérgica e quase alegre.

 

Os repórteres de plantão acompanhavam o cortejo, a uma distância respeitosa. Volta e meia davam informes inocentes às suas emissoras. Alguns programas de televisão, ao vivo, fizeram suas filmagens durante a travessia. Eram entrevistas, pequenos shows e até uma missa campal estrategicamente armada no quilômetro quatro. Um cantor gravou um número de rock, houve desfile de roupas de banho e até uma receita de frutos do mar foi preparada, o set de filmagem montado próximo às pedras, o feitio do prato cronometrado com a aproximação da procissão, no tempo de Javier o provar. Também houve espaço para prática de yoga na TV, outros tratamentos de saúde alternativos, com foco no aprimoramento mental e emocional. Manhã de festa no rádio, emissoras  inclusive internacionais, com notícias em tempo real. Os ouvintes aguardavam menos o final feliz e ansiavam, no fundo, por alarido. Aquelas eram sendas humanitárias, representavam bons augúrios em tempos conturbados, porém um tanto de barulho dava ares de importância à vida de muita gente. Algo inédito envolvia a travessia em doces promessas, sem ser sensacional, não encobriria uma montanha de pecados.

 

Ninguém esperou por despedidas ou banda de música à saída do sanatório. Ninguém olhou para trás. Ficou um rasto de creolina e fogo. Somente quando o grupo se pôs em marcha, o diretor geral saiu à janela do salão de reuniões. Matilde testemunhou a aparição, depois contou a Maria. A lua ainda brilhava no céu. Madrugada estrelada. O homem, semblante neutro, pele cinza, coração pedregoso. Ele identificou as fogueiras que começavam a arder no horizonte. É certo que esperava por falhas na empreitada, balbúrdia, alguma razão para redimir-se, ir à forra. Espantara-se com a posição ordeira do grande pelotão miserando, o doutor Wong Lam à frente, outros dois enfermeiros com ele, a ditar o ritmo. O diretor não soube que a guarnição havia triplicado de tamanho. A ala subsistira a duras penas, por quase vinte anos, à revelia d’ele. Ao dispor da perspectiva, o sujeito gris respirou aliviado, deu de ombros e seguiu para o local de aplicação de eletrochoques, haveria sessão naquela manhã. Finalmente, ia embora a sua mãe de um olho só. Só ele sabia que a senhora figurava entre os pacientes daquela ala. Amásio Cândido, diretor do Sanatório Marítimo do Norte, freguesia de Valadares, concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, Portugal, visitaria a Assistência apenas três dias após a partida dos antigos usuários, juramentado pelo dossiê de Wong Lam. Alguns componentes da guarda da Cidade do Porto se revezaram às portas principais da ala, devidamente lacradas, até que a assinatura do diretor, acompanhado das testemunhas, figurasse nos documentos oficiais da vistoria. A cópia da súmula foi entregue ao final da tarde. Era o dia que antecedia a transferência da ala. O documento saiu das mãos do advogado Giulionni, tendo Maria, Alev, a doutora Dung Hanh e o doutor Luiz Pedreira como guardiões, além de dois representantes da Desembargadoria. Amásio estava de posse da papelada, abraçado a ela, quando apareceu à janela naquele inicio de manhã memorável. Ao quinto dia após a travessia, uma forte crise depressiva acometeu o homem, da qual ele não retornou lúcido. 

 

O céu esteve claro na manhã do cortejo, que coincidiu com as comemorações à Senhora da Burrinha. Apenas uma penugem amarronzada corrompeu os arredores do antigo prédio socorrista, dia quente. Várias horas passadas e nada lembraria a partida do imenso grupo de idosos, a não ser as faixas pretas e amarelas a lacrar as portas e impedir a passagem de pessoal não autorizado ao que fora, até aquela manhã, a Assistência. Para trás, ficaram as sete fogueiras, muito bem estruturadas. As chamas podiam ser vistas ao longe. O corpo de bombeiros enviou um carro para emergências. Substituiu, ou melhor, instalou extintores nos corredores do setor vistoriado. Os construtores das piras as dispuseram de modo que não comprometessem, com fumaça, o funcionamento do sanatório. Elas queimariam por algum tempo, deixariam mínimo cheiro acre no ar, uma reminiscência de partículas deletérias. Tal odor não penetrou janelas, ou  tormenta alguma veio do mar para mudar o curso dos ventos. 

 



[1] Dança de volta – Camané/Mario Laginha

[2] José Mario Branco e Davi Mourão-Ferreira

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