Hospital Casaredo 23
O bebê e o jumento
‘Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas’. Cecilia Meireles
Frio, chuva. Desde as seis da manhã, a intervalos regulares ele clamava, a mesma arenga toda vez. Nossa Senhora dos vândalos, rogai por nós. A voz era roufenha, muito recolhida, como se houvera engolido a úvula. Estava em pé na cama e oscilava para frente e para trás. Assemelhava-se a uma bandeira, agarrada ao mastro com uma das mãos. Em alguns momentos, ele protegia o corpo de algo que o empurrava pela direita. Depois, passava a mão livre pela face e cabelos, como se estivessem molhados. Equilibrava-se, como que em uma ponte pênsil. Abria a boca como se encontrasse, no espaço, um lugar seguro para sorver o ar. E vinha a rogativa. Nossa Senhora dos vândalos, rogai por nós. Até que se exauriu, ajoelhou sobre o colchão e tombou de cara, a alguns milímetros da cabeceira. Inerte, deixou que o enfermeiro novo o virasse e acomodasse. Mais um paciente, cujo histórico os atendentes desconheciam. Só o sabiam dementado, com essas manias de chamar por Nossa Senhora. Tinha poucos dentes, emagrecera muito e uma das pernas era encurtada, uma marca feia de corte às costas. Encontraram-no desacordado na porta da Assistência há uns meses, no dias das maias, logo após um falecimento na ala dos homens, o que permitiu abriga-lo.
Fora necessário, naquele período, acomodar algumas mulheres em colchões improvisados no chão, inclusive Madame. Originalmente, cada dormitório comportava quinze leitos. Por necessidade, arranjou-se acomodação para dezoito pacientes no primeiro, dezoito no segundo e dezessete no terceiro. Pouco espaço, muito tumulto. Evitava-se, ao máximo, assumir a lenda do sempre cabe mais um. Sim, os homens padeciam mais e morriam antes das mulheres. Por isso, duas enfermarias lotadas com elas. O que havia de bom é que todos os pacientes, sem exceção, eram amáveis no cotidiano. Cinco viravam feras, quando em surto. Os atendentes não escolhiam seus atendidos. Entravam, três enfermeiros por vez, turnos de doze horas – era sempre muito mais que isso -, e davam conta de todos, como era possível. O amor distribuído era natural. Os enfermeiros estavam na Assistência porque queriam ali estar. Recebiam menos que os colegas de outras alas do sanatório, eram mal vistos. Quanto mais enxovalhados, mais ofereciam préstimo.
O encontro com o doutor Wong Lam, após a notícia da mudança, demoveu duas propostas. A primeira, conseguir medicação, mesmo que de forma tortuosa, até para os atendentes. Evitar desequilíbrios era primordial. A outra, horários individuais para conversar com o médico. O clima melhorara muito com o recesso, entretanto, os ânimos andavam fragilizados, a partida soara alarmes inconscientes. Wong Lam precisaria de outros dois colegas com quem dividir as tarefas. Que nenhum surto, mazela ou atrito ocorresse durante os preparativos, era o que o doutor esperava. Os enfermeiros foram orientados por um advogado e apresentaram seus pedidos de desligamento à direção do sanatório. A demissão representava estresse financeiro para eles. Memo assim, as perspectivas para a equipe eram consoladoras. Wong Lam achou por bem não informar que lhes proporcionaria conforto de toda espécie nos próximos meses. Precisava deles dispostos à luta.
O grupo iniciou treinamento emergencial. Começou com caminhadas ritmadas pela praia. Cada enfermeiro ia entre pacientes que podiam andar, mãos dadas. O objetivo, tornar familiar a travessia até o Casaredo. A equipe se aproximava das rochas, parava. Às vezes lanchavam juntos, a observar as ondas, voltavam então ao sanatório. Cultivaram proximidade, trocaram palavras de incentivo. Socorro algum se apresentou durante a atividade, até voltaram as cores aos mais pálidos. No dia da travessia, alguns pacientes a fariam a pé, outros carregados em macas improvisadas. Não seria empreitada fácil. Eram quase oito quilômetros, um breve trecho com pedras e ondas a vencer. Os enfermeiros trabalharam também corridas entre eles. Teriam de voltar algumas vezes ao sanatório, a buscar mais pacientes. No terceiro movimento dessa natureza, Gaspare tomou coragem e sugeriu ao doutor conseguirem reforços, leigos de herdades próximas, um mutirão. Ele era conhecido nas cercanias, tinha amigos. Caso aceitassem, poderiam ser igualmente treinados. Em três dias, organizou-se um corpo de voluntários, além da incorporação de dois médicos e mais dois enfermeiros, trabalhadores do sanatório que nunca tinham visitado a Assistência. O caso da gruta, objeto de muita fofoca, servira como despertador. Algumas mulheres voluntárias não tinham com quem deixar seus pequenos e queriam ajudar. Foram incluídas na equipe mesmo assim.
A preparação da travessia durou uma semana. Foram ministrados cursos, incluindo observação, estágio prático em cuidados paliativos - banho, troca de roupa, alimentação e medicação via oral. Os exercícios Lian Gong agradaram a todos. Os voluntários, nos finais de tarde, eram reunidos na praia para cear, cantar, tocar, dançar, contar histórias, instruir-se sobre o quadro geral que iriam viver. Doações de víveres, materiais hospitalares, roupas de cama e banho, camisolas, foram recebidas no mesmo período. Um grupo de trabalhadores dos serviços gerais foi enviado pela Desembargadora Sezna. A senhora Luariz ofereceu furgonetas e ambulâncias, porém Wong Lam trocou tais dádivas por outras, de maior urgência. O ambiente favorável, quase festivo, propiciado pelas caminhadas aeróbicas, animou a todos. Os pacientes percebiam o movimento, tranquilos e medicados. Somente alguns tinham noção das mudanças futuras. Madame fazia anotações, com ares de jornalista. Apresentava leve prostração.
Finalmente, a oportunidade da esposa do enfermeiro Javier se aproximar do marido se apresentava. Gaspare mandou a Amparo um telegrama, com consentimento do colega. A moça chegou à Assistência extasiada, demais poder-se-ia dizer. Trazia no coração as flores iniciais da vida a dois, para aquele lugar onde braçadas de espinhos eram rotineiras. O ingrediente secreto, amor conjugal, estava em falta para o casal.
Javier não esteve com Amparo nas caminhadas, por ofício e vontade. Gaspare pediu aos colegas cordialidade sobre o assunto. Houve apoio suficiente à moça, que aceitou a situação, imaginou-a passageira. Júlio, o filho do casal, suportou as tensões com seu bom humor habitual. Durante o treinamento testaram, dentre outras coisas, manter o bebê em um cesto, atado à cela de um dos jumentos que acompanhariam o grupo, a carregar primeiros socorros. Em estando dentro do cesto também os navios de borracha, tudo ficava bem para o bebê. O enfermeiro invisível, Alev, trouxe à criança mais dois barquinhos, de cores diferentes, delicadeza que fez tranquilizar à mãe um tanto decepcionada. Enquanto as estratégias iam gerando bons frutos, Júlio e Madame se fizeram camaradas. Amparo foi escalada para conduzir a senhora em uma maca, na companhia da enfermeira chefe, Maria.
Comentários
Postar um comentário