Hospital Casaredo 22
Enfermeiros
Madame apartou-se do caderno e quis enterrar o lápis na própria mão. A enfermeira Matilde a impediu, com firmeza. Fogo, fogo, gritou a senhora, fogo, fogo e fez de tudo para agarrar os cabelos da moça. Catarina, enfermeira substituta, que atendia à senhora Três, retomou seu canto ó bonequinha ó bonequinha agora, agora, ó bonequinha agora já[1], cheio de sotaque. Madame relaxou, fechou os olhos. Matilde sentou-se no chão, o rosto entre as mãos, exasperada. Catarina, ainda a cantar abaixou-se, afagou e trançou como pode o belo cabelo ruivo, volumoso e embaraçado. Ajudou a colega a levantar-se e a levou até a porta do dormitório, as pacientes alheias ao movimento. Ao deixar a enfermaria, Matilde foi ao banheiro para recompor-se e gostou do arranjo de cabeça refletido no espelho manchado. A partir daquele dia, aceitou que a colega penteasse seus cabelos, atasse a trança. Ganhou um enfeite, um pequeno prendedor em forma de pássaro, aplicado a um dos nós, de modo a não tentar paciente algum.
Frio, trouxas azuis pelo céu, livros antigos, um pote de cacto, dois casacos cheios de bolinha revezam arame. Dentes que riem diante do primeiro espelho. Cama amarfanhada, fim de tarde, bruma e uma flor de anis. Ou talvez um bando de palavras com febre.
Estamos em companhia de um escrevinhador que deixa desfilarem quantos personagens apareçam, Madame seguiu a contar. É como dar à luz um filho em cada porto e não tomar a qualquer sob custódia. Mais tarde, no tempo de revisão, se consumam alguns, outros somem e outros jamais se revelam. O sétimo atendente da Assistência, o já anunciado Manoel, aguardava seu grande momento de acolhida. Sempre de bacia em punho, era o encarregado dos serviços de urinol. Por sorte, a firme construção que era o sanatório contava com sistema hidráulico funcional e saneamento básico, até naquele setor em abandono. Tendo isso em mente, o serviço do enfermeiro era esvaziar penicos no vaso sanitário, meter-lhes creolina e tornar a distribui-los entre os leitos. Limpar paredes, colchões, grades e chão lambuzados. Não se usava fraldas na ala. O volume de lençóis e camisolas emporcalhados era grande. Um processo quase violento ocorria na lavanderia, desde a chegada do lençol sujo até sua volta ao armário, nem sempre imaculado. Mesmo que muito arejada e iluminada a dependência de lavar, os bafios do departamento precisavam de grandes pulmões e pouco luxo. Não havia sistema para passar a roupa. Duas secadoras muito antigas já não ajudavam devidamente. E é assim nestes lugares, as pestes não agregam, poucos adoecem. Pois se já estão mortos. A vida de Manoel transcorria nessa correria de lidar com os detritos humanos. E ele ia bem. Era, talvez, o homem mais belo do mundo. Um cavanhaque bem aparado, cabelos castanhos cacheados, penteados com os dedos, um olhar de quem atravessou desertos. Preferia fazer as tarefas sozinho, a demonstrar o nojo e desprezo que sentia. Na Assistência, cinquenta e três leitos ocupados. Duas trocas diárias por paciente, afora as emergências. Um dos tratos entre os atendentes era não deixar acumularem-se sujidades. Se já era pantanoso o atendimento, imagine-se a falta de socorro para essas imundícies. Manoel faria quarenta anos no dia de voltar do recesso.
Madame tinha contatos quase secretos com Manoel. Era ele o primeiro a surpreende-la sentada no urinol nas madrugadas. Na primeira ocorrência, Manoel cometeu o erro de devolve-la ao leito. Foi devorado por uns lábios ávidos e teve sua orelha esquerda gravemente mordida. Isso custou contenção à senhora. Horas mais tarde, ela padeceu de episódio sonambúlico. Sumiu por quatro vezes. Manoel a encontrou, na última, debruçada sobre uma das tinas, a esfregar compulsivamente a camisola que vestia. O atendente experimentou estender-lhe uma roupa limpa. Não tinha repulsa, por esta mulher não. A senhora não poderia vestir-se sozinha e parecia saber disso. Lento, como o embalar dos lençóis no varal, Manoel se aproximou. Poderiam ter consumado o encontro, contudo ambos acharam por bem estreitarem-se em abraço fraterno, dessa vez sem beijos ou mordidas. Concluído o sutil contato, Manoel atou os laços da camisola, a olhar nos olhos da senhora. Levou-a de volta ao leito como se passeassem, até alegres. Essa paródia de enamoramento durou pouco. Madame passou a se mover de arrasto. Manoel como que se lhe escapou ao campo de visão. Por uns dias, ele sentiu falta. Depois, aferrou-se com mais disposição aos esfregaços e aumentou o consumo da creolina. Como seria, sem ele e Joana por tantos dias no recesso? Um atendente da ala nobre do sanatório veio cobrir Manoel, Maria conseguiu demover o enfermeiro a descansar um pouco. Todos temiam a intromissão, um xereta na Assistência. O que se verá, contudo, será um irmão, útil e prestimoso. Para a ala masculina, não houve atendente melhor. Gilmar se chamava o rapaz, de sanfona ao peito, voz de trovão.
Cinquenta e três leitos vagos de uma só vez representavam lucro para o sanatório. Foi o doutor Wong Lam quem deu a notícia, numa tarde de sexta-feira, quando os ânimos da administração se acirravam em favor do despejo da ala. Mais alguns dias e a Assistência mudaria de endereço. A novidade coincidiu com Maria a voltar das férias. Que viesse a travessia.
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