Hospital Casaredo 19






A árvore do cabelo penteado



A falta de quem a escutasse foi crucial para desencadear o sofrimento psíquico de Rosália. As irmãs, farpadas na convivência, não puderam ser-lhe de valia. Tinham para si que mulher embarrigada e sem marido era pecado mortal. Olhavam a irmã do meio como uma coisa suja, a temer. A mãe doente gritava impropérios só de ver passar a filha prenhe à porta do quarto. Rosa não cuidava da mãe há semanas. Descuidou-se também da hospedaria. De si. As irmãs, sem ela, desgovernaram. O caos se fez notar entre os hóspedes, que já não frequentavam a Roseira e iam minguando, conforme os boatos maldosos corriam do vento.

Gaspare cobriu o rosto com as mãos. Tentava entender todas as ligações que desfilavam pelas mãos da senhora, algumas até o surpreendiam em pesadelos. Não sentia que Madame estivesse a narrar ficção. Anulou, uma a uma, as hipóteses para compor seu artigo científico. Madame era mais fabulista que memorial. Perdido em possibilidades, o enfermeiro sentiu fome. Mesmo preferindo ocultar do grupo seus estudos, tinha-lhes respeito. Wong Lam lidava com a melancolia descrita nos fragmentos de texto a que tivera acesso e com o estado depressivo da paciente. E as crises sonambúlicas ocorridas na Assistência? 

Passados quinze dias, ainda sob o impacto do tratamento rude que presenciara, o das ondas, Gaspare registrou os prontuários para o plantão da noite e fechou suas anotações. Se houvesse algo para comer no refeitório, ele talvez se animasse. Longe de abandonar seus objetivos de aperfeiçoamento, exigiu-se mais empenho, observações mais assertivas. O moço parou à porta do dormitório, olhou as pacientes. Afeiçoara-se àquela gente, gostaria de conhecer suas histórias. A maioria vegetava, estava despida de nome ou teto ou alguém com quem contar. Elas também não conheceram o amor, e neste momento ele suspirou. Javier veio-lhe ao pensamento. Gaspare não via motivos para se envergonhar pela admiração que lhe dedicava, um refrigério de carinho naquele ambiente doentio. No espaço amargado de feiuras, o colega espanhol era uma flor colorida, a sorrir, apaziguar, para logo incendiar. O que lhe provocava tensão era a imagem do colega, muitas vezes surpreendida em sonhos. O sorriso chegava antes. As mãos. Pela manhã, Gaspare procuraria Wong Lam, precisava dividir a dor. Encontrou pães chineses recém cozidos em uma vasilha, café na térmica, passado havia pouco. O doutor estivera na cozinha fria. Foi bom não cruzar com ele naquele momento, teria chorado.

 "Narcissus", 1594 - Caravaggio. (...) O crime de Narciso é preferir, no final, sua imagem a si mesmo. A impossibilidade em que se encontra de unir-se a ela só pode produzir nele o desespero. Narciso ama um objeto que ele não pode possuir. Porém, assim que começou a se debruçar para vê-lo, era a morte que ele desejava. Unir-se à própria imagem e confundir-se com ela significa morrer. Era também seu duplo que buscava nas águas moventes a filha do Reno. — Louis Lavelle, no livro "O Erro de Narciso". (Cap. I: O erro de Narciso - 8. A complacência de Narciso / Realizações Editora; 1.ª edição [2012]).

 

Como se lesse o íntimo de seu menino - ela considerava a Gaspare um filho -, Madame abriu o caderno na madrugada e escreveu. A noite dá suas passadas longas, não está destinada, não avisa paradas, nem bruscas, nem previstas. Só caminha, ou toma condução. O lápis, atado à cesta, se move com ela, invisível e sem mão que se lhe tome, sem saber qual a próxima palavra ou risco será cunhado num papel ou pedra ou chão de areia. Se eu fosse datar esta noite, escreveria salamandra, pretexto, miséria, vertigem, desesperança, ausência de culpa. E um homem precisa sentir culpa para ter consciência? Abetarda, lince ibérico, estrada, furgoneta, bófia, gente pouca, inépcia muita. Vindima. Dois babuínos pedem socorro por todos nós. Duas meninas acenam da calçada à portuguesa. Só o que ocorre, sem mais elas, é erguer o lápis e escrever. Muitos fazem isso, registram seus soluços. Contam árvores, pedem água. Desde cedo, se ouve o alerta: ratos a devorar o estômago de crianças famintas. Fitas para as pendurar em ganchos às paredes, a salvo. Média menor que cinco no que diz respeito a conhecer o mundo, ler, fazer contas. Consciência de que? Diz!! Lamentar configura dois problemas – o problema propriamente e a ruminação.  Escrever talvez abra portas. Alguém vai ler, meditar, passar adiante. Quase um jornalista, que nome for, lápis a adornar algum lugar entre os olhos. Um pingente azul da cor de um dia quente de verão sobre a garganta. Alva a pele, forte a expressão de quem cantou demais. Somos naturalmente silentes, nós, os humanos. Nosso exercício principal é respirar. O clarão que brota das minhas rugas é são, é divinal. Serviria, uma canção, a qualquer voz e tom? Onda emaranhada, imensidão galante, um sinal. Lápis a adornar algum lugar no coração. 

José Gaetano ergueu o punho aberto, acalmou os dedos amortecidos. Lembrou-se de um alerta de Alois. Escrever sim, mas os outros precisam entender o que vai ali expresso. Muita gastura de alma naquela noite de agosto, outro sarau improvisado, difícil contar estas histórias tanta vez. Decisão errada, aceitou cantar para estar perto do amigo.  A voz de José soou lenhosa, como no tempo das galés. O trio, Olivairas, Alois e ele, empenhados no que foi misto de distração e deleite. Para os convivas, experiência alegre, de dançar. O comandante, lá e cá na récita, ao invés de perder-se na entidade que evocava um bailarino espanhol, pensou nas notícias de um seu parente, a morar no deserto do Brasil. O primo o chamou para conhecer a pequena mansarda de sapé que ele erguera, a poucos metros do mar, em Luís Correia, litoral norte, Piauí. O marujo deixou-se fugir para a paisagem agreste enquanto cantava. Antes de cada nova canção José dizia era uma vez e então voava mais. Imaginou a árvore do cabelo penteado, que vicejava naquele lugar onde o primo vivia. No banco de namorar que firmou a lenda da árvore. José acalmou, com esses devaneios, dores tamanhas, pode concluir a soirée, apesar da imensa saudade. Flagrou tempos de menino, de mosteiros, passeios em librés, do ofício de saltimbanco, bardo, arauto, de instrutor de navegação, todas as tormentas vividas, os remansos. O marujo nem acreditava que viajara tanto. A voz adernada, feito noite abissal, enfrentou o frio desértico do outono em mais aquela festa. A noite soledade soava elegante, embora revelasse desgastes profundos na alma. Um cantar ermo, de beiral, de cidade, manancial, da vastidão dos desejos não realizados. José percebeu-se a sopesar o santur, enquanto a saleta da condessa voltava à sua retina. Havia de comer na cozinha para os músicos, caldo de vôngole, pão, vinho e olivas. José guardou as partituras, o instrumento, quieto com seus botões. Ninguém lhe pôs reparo ou a mão à cabeça. O homem soturno ainda rememorou os conteúdos das odes escolhidas para a récita. O que desejaria, abraçar Alois, era impossível. 

José caiu em si, de fato, na cabine da Sor, diante da Rafaele que fumava, desnudou-se, a tiritar e saltar de um a outro pé. Entrou na tina, lavou-se até que a pele ardesse pelos esfregaços, enfiou-se em um camisolão e precisou de meias sob o pelego de que dispunha. O catre estava úmido. A voz que canta deu pão, mão, chão, ele rezou. Pôs-me no mundo, em estado de prontidão. Eu voo contigo, minha voz, declarou-se, José. Por que lembrou-se de Rosalia naquele momento? Por que lembrou-se daquele carregamento de quase setecentos humanos pretos, que vira subir à bordo da Crazy Mary, na Costa da Guiné?

 

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