Hospital Casaredo 18


 


A trupe


“A velha paraguaia

De ver aquele moço a catar caracóis na beira do rio

Até duas horas da tarde, balançou a cabeça

De um lado para o outro ao gesto de quem estivesse

Com pena do moço, e disse a palavra bocó.” Manoel de Barros

 

Madame, em estado de agitação, seguiu com suas digressões. Escreveu que enquanto um endoida, outro vai com o regador. O gramado do vizinho parece, sempre, mais verde. Duas noites de tertúlia, uma na Madeira, outra nos Açores. Fazer música, para José Gaetano, era encantatória e ele se sentia embriagado, melhor, de ressaca. 

 

O Donis encontrara Santo Olivairas em viagem. Este, alaudista renomado, era parceiro querido, de concertos e pândegas, de muito lagar. José Gaetano o ouvira cantar em outros saraus, a tocar desgarradas com Alois, cumplicidade genuína. Era assim, muitas alianças de longa data, camaradas de tempestades e festejos, tudo leve e ligeiro, espairecido, alegre. Tratava-se de vidas independentes, de viajores jovens, de desapegos. Doía o personalismo de José, o ciúme é algo que não se descreve facilmente, não se permite caber no rol de conhecidos e nem é fado, ou modinha. Alois era lundu. Olivairas, Bahamas. O comandante torceu-se em cólicas, das orgânicas, quase uma quebra de sigilo. 

 

Se fizermos neste momento um aparte, Madame interrompeu os pensamentos, é uma surpresa José Gaetano garantir bons contatos comerciais. Até que se portava a contento, tinha conversas francas, fazia negociações lógicas. Chefe de fragata, o sabemos, empunhador de espada, José dava ordens aos berros, também isto é noticiado. Era capaz de suspender arrobas com rosto de paisagem, criatura que muito remara, mãos e peito calejados para escambos. O velhusco era bom, metaforicamente, para servir como primeiro ou quinto violino. Tocava sempre em harmonia com os demais, apesar da dor. Mais viajado, tinha a obrigação de parar com aquela viciação, com aquelas crises de despeito. A mania dos conselheiros estava em vias de se aposentar, era toxina de grande vigor. As óperas almejam grandes fatos, grandes feitos, de mocinho, mocinha e rufião. Havia, para a história de José, no máximo um rubião, uma pedra, uma espiga e corante. Nem para suíte havia roteiro. José teria, um dia, as águas claras, caso abrandasse o narciso credor, que lhe obnubilava o sono. O melhor a fazer era ficar calado e seguir adiante, senão sucederia coisa pior. Uma catalúnia, um serviço de cristal e não a prática musical decente com que tanto sonhara. Muito barulho por nada, é preciso trabalho, é urgente o tratamento com especialistas. 

 

Alois Donis, Olivairas e José Gaetano meteram-se em algumas cantorias mais. O mar os expulsaria da lide grosseira um dia, seria bom ter mais que jogos de cartas e rum para se ocuparem, no outono que logo viria. Nas horas de abstinência, ansiedade. José pedia socorro a uma Nossa Senhora da Lama. E então a chamava Nossa Senhora do Rio. E costurava a rogativa, sem saber por que tanto se coitadizia. 

 

Nossa Senhora que adentrou floresta e cunhou nas pedras limosas os caminhos das desovas. Nossa Senhora que banhou os mantos das entradas, das demências, das fugas, das desavenças, das matanças e os deu a São José para pendurar; que plantou açucena sobre os sambaquis e orquestrou o flanar alegre das faluas.  Nossa Senhora, Senhora dos livramentos Nossa Senhora da Anunciação Senhora clemente e olorosa. Nossa Senhora desatadora dos loucos. Cuida dos nós. Cuida desse amor que eu pus no paul, na foz do Vouga, amor que eu embalo como quem embala a um filho santo e deixo a mercê do teu amor. Cuida de nós, Santa Mãe. Conduz a nossa barca ao mar da redenção. 

 

O tempo aufere dados impressos e compõe matéria feita a som, tenhamos paciência. Para uns, as partituras musicais dão liquidar alugueres, fazer refeições quentes e vestir algum casaco de inverno. Em as executar, se acresce valor. José nestes vogares solitários. Rosália sem moedas, nem poemas, nem ai. Para Alois, algo entre ele e o vivace. O ritenuto, misericordioso para José. Tudo durou a viagem de carris ladeira acima, uma seresta, uma valsa canção. Não se tratou de tornar fábula a forma pensamento. As harmonias, as cartas sem resposta, o ridículo, os saraus sem pecúlio. E o amor? Amor é trabalho desinteressado. 


As decisões, más ou coerentes fluíam, ondas do mar. Jornada insólita, José assim a via, contabilizada a cantilenas, a corridos e o sonho de casar. A luneta do marujo focou ações adequadas aqui, acolá, apresentações em feira, enquanto mercava. A voz que canta o salvou, até aquele momento. José, por escolha, poderia ter acordado do ermo ilusório, que o impedia de viver. Para uma bolha no cérebro, faltava pouco. Sortilégio de quem não vigia as próprias canções. 

 

Quantas histórias iguais à de José, nos céus e mares? Melhores, mais atraentes para difusão de novelas, películas? Histórias autênticas, originais? Milionárias? De consolo, de amizade? José Gaetano deixara de beijar isso e cais. A moeda, espera, espera, espera e mais um dia. Mais rio que leva o dia, que leva a tarde, que leva o canto, que leva a dor em sua chalupa. Espera, perde, espera. Resiste. 

 

É bom que se reforce ao bondoso leitor, homem trabalhador o José. Porém, uma pena, os esforços não eram suficientes para sanear-lhe o proceder. Não estava bom o que vivia. O rio, que leva o dia, e outro dia, e outro, e outro,  e outro. E nada de viver. Restos de naufrágio, era o que se comia das escolhas. Quando foi posto a par deste diagnóstico, José virou as costas ao físico que o atendeu, jogou os comprimidos em um cesto de material desprezível e seguiu viagem. Enquanto os delírios pareciam não ter fim, há alguns quilômetros, Rosalia dava à luz um menino são. Ela é que perdera o tino. 

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