Hospital Casaredo 17



Os filhos


“Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede”. Cora Coralina

Rosália oferecera ao marujo um bem querer sossegado, travestido em doce de leite, compota de figo, olivas frescas, a melhor botija de vinho, a melhor sardinha, as melhores batatas, as mais tenras cebolas, o mais puro azeite, o mais doce travesseiro. A zupa di giorno, aprendeu a cozer para o acarinhar. A cama sempre perfumada, passada a ferro, aquecida com braseiro, as meias de lã, a lavanda, os seios onde o velhusco gostava de enfiar o nariz para dormir. Ao contrário dele, Rosa não esperava. Ia tocando os dias com sorriso largo, alma simples, prática. Tinha freguesia habitual na hospedaria,  galanteadores com quem flertar e era só. O coração sereno ficou com José. O coração de José era de outro mundo. O tempo, lugar, a natureza do encontro, agora pareciam nada. A concepção ocorrera, contudo. Cristino era real. 


A estalajadeira amolou-se com seus fluxos. Havia tomado os cuidados, sabia da jornada incerta do pretenso amante. A natureza exige reparação. Respeitava o direito do homem ir e vir, tanto quanto respeitava o dela de ancorar-se na hospedaria que dava sustento a ela, mais duas irmãs e a mãe adoentada. O sogro partira logo que as mulheres assumiram o serviço. Deixou as escrituras no nome da mais nova, só se veio saber disso muito depois. Mesmo cheia de temor, Rosália assumiu o risco da gravidez. Não cogitava agir de outra maneira. Acolheu o embrião e entristeceu, do dia para a noite. Fazia quase um mês, José Gaetano deixara de mandar noticias à Alfama. As mensagens já eram miúdas, antes da criança. Algo acontecia e ele não tinha coragem, nem jeito de se abrir. Rosa não era, para ele, dessas mulheres com quem se pode dividir os pensamentos, ela sentia. As distâncias entre ambos eram grandes. A nova mãe dera ao marujo todos os motivos possíveis para confiar, compreensão, paciência, dedicação. Não bastaram. Bom partido ela era, distinta, traços marcantes, galegos. A vida tem dessas coisas. Não se pode forçar um querer bem. E José Gaetano até a queria, mas tinha lá suas dificuldades. O que não estava previsto era o terremoto a ocorrer em Rosa. O primeiro sintoma foi a glutonaria. Depois, presenças sombrias, inimigos aleatórios, inventados. Depois, o desconforto com as irmãs, depois o descompasso agressivo da mãe. A barriga a crescer causava mais que enjoos.


“Se a lua sorrisse, teria a sua cara 

Você também deixa a mesma impressão 

De algo lindo, mas aniquilante”. Silvia Plath

 

Ao final do terceiro mês de gestação, a complicação. Quase se consumou o aborto. Um corre daqui, de lá, a parteira a lhe ministrar mezinha, as irmãs a exorcizar. O susto foi cedendo, porém quando Rosa voltou da febre alta, não parecia a mesma fortaleza. O embrião como que lhe roubara a atenção. Chamaram Efigênia, uma cigana contumaz nos benzimentos. A mulher dançou, abanou folhas e nada disse, nem de sim, nem de não. Lá do Rosário, veio a fofoca de que o marujo estava no Beira Minho, abatido, inapetente. Não o mandaram chamar, nem ele viria. José Gaetano não quis saber das gravidades da Roseira. 

Fim do poema, fim da arte primarista, do idílio musical. José Gaetano criara anéis de saturno para si, para se bastar, enquanto esteve acompanhado pelos parceiros de palco e alguns invitados. Foi consolado enquanto cantava, liquefez em alguns pedaços, as energias orbitaram, frágeis. Se ele soubesse da gravidade da situação, teria se mantido no leme, o santur na cabine, tocaria somente para si. 


A maior coita que eu vi sofrer d’amor a nulh’home, des que naci, eu mi a sofro; e já que est assi, meus amigos, assi vejo prazer!, gradesc’a Deus que mi faz a maior coita do mundo haver por mia senhor. E bem tenh’eu que faço gram razom d’a maior coita muit’a Deus gracir, que m’El dá por mia senhor, que servir. Hei mentr’eu viver: mui de coraçom gradesc’a Deus que mi faz a maior coita do mundo haver por mia senhor. E por maior hei eu, per bõa fé, aquesta coita de quantas fará Nostro Senhor, e por maior mi a dá de quantas fez. E pois que assi é, gradesc’a Deus que mi faz a maior coita do mundo haver por mia senhor, pois que mi a faz haver pola melhor dona de quantas fez Nostro Senhor.[1]


Durante um jantar de confraternização com a trupe do Fado da Soledade, após novo sarau, ficaram separados, sequer frente a frente o Donis e o José. Poderíamos utilizar a expressão restou ao marujo, mas não era isso. Calhou, diríamos assim, de o homem ter diante de si, como companheira de talheres, a própria inveja. Cintilante, clarificada pelo esmalte fluorescente do final da tarde, merecia todo respeito e poucos detalhamentos narrativos. Braço nu maravilhoso, seguido de bela mão, impossível de desenhar.  

Três lonjuras combinadas, três sentires doentios iam no coração do pirata, a cupidez, a cobiça, o apego. Envenenou-se. Pensem em um aparelho digestório a contabilizar emoções descomunais, intragáveis. A inveja, lavada a vinho verde. José Gaetano a contemplar aquela arte divina, fel em lugar de saliva. A inveja, motivo ético suficiente para concluir a presente exposição, para um Cease&desist. Estradas de caminhar ensinam, peixe salgado mitiga o paladar. Desdita, foi outra bacalhoada da qual José não sentiu o gosto, várias ainda viriam. 

A vida olhou docemente para o homem marinho, pediu tenência. O fogo da lareira que aninhava o estabelecimento murmurou, no final, tudo vai ficar bem, posto que tudo é bem. Vias lácteas enviariam novos moradores à Terra, para dar outros rumos aos personagens, a exigir outros saberes de bem viver. 

Os olhos de ouvir de José detiveram o infinito finito dos sons. Alabardas, entrelaçadas sobre o console da sala de refeições, lembravam pacto sagrado, que ele não fizera. Os ouvidos de ver viram e era além da inveja. Uma hora dessas José entenderia que o outro, por mais belo, também sofre. A pele de José respondeu em suas grotas e já não era inveja, era voz. Ao lado daquela fênix, o pirata abdicou. Que ninguém se enganasse, tudo tem preço. José deu a voz. A linguagem íntima saiu da sombra. O dia viria, o de compreender além das fronteiras do oceano, além de qualquer bem enlouquecido, além do pensamento, do pensador, daquele outro que fica por trás deles e conta melhor as histórias.



[1] De Airas Carpancho, poema galego português

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