Hospital Casaredo 16


Pataquadas da Cruz de Clemente

 

“Onde nos vimos nós? És doutra esfera ? 
És o ser que eu busquei do sul ao norte  
Por quem meu peito em sonhos desespera”? Castro Alves

 

As pessoas são convocadas a assumir posições, em algum dia serão cobradas por suas escolhas. É regra geral, serão reunidas, para lapidar arestas com seus pares, a começar pelos familiares. Assim que se deparam com fatos, suspiram, dizem-se emboscadas, magoam, relevam suas mais íntimas inseguranças, devolvem golpe a golpe os eventuais reajustes. Pena, passaram muito tempo a dormir. Os papéis sociais, feito áreas descampadas, tornam-se obsoletos. A coletividade é motim de nomenclaturas. E não há jeito, a fatalidade é o progresso de todos.

Óbvio, José Gaetano desejava um lugar na organização: homem, forte, realizado, esposo, pai, insígnias no ombro ou um tapa-olho. Sentia-se pária, contudo. O ás do mar sofria, por figurar entre milhões de solitários. Espectador, almejava protagonizar Aquiles. Nenhum, dentre os que partilharam com ele o remo era chefe de fragata, mercante, músico, cantor, bardo. Ele era todos. Corsário dos bons, negócios consistentes. Alois, José pasmara por Alois, acreditava que ser Alois era melhor que ser José. 

Os primeiros parágrafos da nova página redigida pela manhã, por Madame, carregavam emoções e pensamentos conhecidos, ponderou Gaspare. O enfermeiro empilhara os cadernos da senhora em sua mesinha, fazia-se de perdigueiro, vigilante, atento e melancólico. Embalara-os em plástico, na tentativa de conter a umidade do inverno, o mofo. O rapaz precisava dormir e não podia, estava agitado. Sonhava, ele também, o seu Alois. A choramingas prosseguia. Apesar de sonharem com a adultez, considerava Madame, embora soe precário quando eu crescer quero ser grande, a maioria das pessoas prefere as alegrias da criancice. Uns adoecem, por conta da pressão dos ritos de passagem. São convidados a permanecer na infância, ou negam-se a responsabilidades. O ouvido de José impedia a compreensão acústica para sua maturidade. A desculpa de ser poético, aluado, reticente o atrasava, o expunha a permissividades. Aquiles, se o conhecesse,  lhe cravaria a espada ao calcanhar. A mais grave limitação perceptiva concentrava-se-lhe no tato. Não, não se tratava de erotização perniciosa. José enxergava mal com as mãos. O comandante temia formar uma família, eis o drama. Optara por frenar a demência que o assolava, por não legar genes puídos a seus descendentes. Em seu íntimo, sentia que livrava gerações futuras dos delírios que o vitimavam. Abria mão do carinho de um filho, um ato sacrificial. O pirata não se dava conta do peso dessa desdita. Alguns vieram ao planeta para aprender a valorar o  que se pode tocar, ele pensou; antes de cometer maldades, que passasse sozinho pela existência. O filho que Rosa esperava era dele.  E agora? O comandante desenhou, para o cabeçalho daquele sábado, a Cruz de Clemente.

Envio a missiva, cantou José, espero resposta. E ela não vem, e não vem, e de novo, não vem. E eu espero, porque há em mim este ‘romance tragicômico’, vestido com ‘as flores da Santa Maria da Feira e Mar de Andamão’. Estava endereçada a Rosa a cartinha chorosa. Era pedido de perdão? Não, José não sabia fazer isso. Para a circunstância em pauta escrever era covardia, uma justificativa esgarçada, para não dizer descarada. Lembrava bilhete grafado por mão de menina, letra redonda, parelha. A futura mãe não podia captar o ser inspirado que lhe escrevera. Mandou-o às favas. Naquele momento, foi execução sumária, sem apelação. Achava o homem ambíguo, digressivo o estilo, sentiu uma  raiva fria. Rosa adivinhou: não eram para ela as cantilenas fúteis. Não eram também para amante vulgar. E ela, e a cria que lhe crescia no ventre? Quem seria por eles?

Mal terminaram as vibrações da batida da porta e Rosa ouviu a sineta. Era Alois quem chegava à Roseira.

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