Hospital Casaredo 14



Memórias da rosa dos ventos

 

Passaram-se outros dias. A Assistência entrou em período de calmaria. As tarefas dos atendentes abriram brecha para clubes de leitura. A reunião com os dirigentes do sanatório fora férrea para Wong Lam, contudo, ainda se dispunha de tempo. Ao sair do perigoso embate sobre descartar a ala dos dementes idosos, o psiquiatra foi caminhar. Munido das referências oferecidas por Adele Roderjan e confirmadas por Gaspare, Wong Lam pôs, enfim, os olhos naquela possibilidade remota de mudança de endereço. Estava diante de bonita mansão à beira mar. Os portões estavam abertos, o caseiro permitiu a visitação. 

Os pais de Wong Lam haviam querido oferecer-lhe um consultório em Londres. Imaginavam para o filho a prática cirúrgica. Alarmaram-se com a decisão que o rapaz tomou, o caminho da psiquiatria. As notícias que chegavam do filho eram lacônicas, forçadas pelas circunstâncias. Há sete anos a família não se encontrava. O casal Chang Lam foi forçado a fugir de sua pátria. Escapou do Cantão pouco antes de cair nas malhas do governo chinês. As irmãs de Wong Lam estiveram presas por alguns dias, conseguiram evadir-se sem deixar vestígios, graças a alguns patrícios amigos, que foram muito bem recompensados. Pai, mãe e filhas passaram a residir em Liverpool. Donos de muitas posses, logo refizeram a jornada, no aspecto material. Wong Lam se manteve afastado, estudava ferozmente para compensar seu brio, o de não ter estado com os familiares durante as duras provações. Annchi e Bo pagaram preço alto pela rudeza com que foram tratadas durante o cárcere. Apresentaram sintomas, meses após aportarem em solo inglês. Sarcoma de Kapov, as agruras da AIDS. A mãe, afeita a causas humanitárias, após o sepultamento das filhas, que partiram com dois dias de intervalo entre os eventos, iniciou trabalho voluntário em prol de mulheres orientais abusadas em conflitos bélicos. Evitou para si, com tal ocupação, transtornos mentais e suicídio. Seu sentido de proteção à vida auxiliou o marido, médico legista e advogado, a recuperar, ele também, a sanidade. Foi com alegria e alívio que os pais receberam carta do filho, contando de seus propósitos e pedindo, com respeito, o apoio moral e financeiro deles.

Entre uma visita e outra à sonhada nova instalação da Assistência, dos trâmites legais que exigiam paciência, a jornada seguia como mar sem ondas, moradores e atendentes em certa harmonia. Energias renovadas, muito por conta dos exercícios diários de Lian Gong, o caderno de Madame florou novas situações deste cotidiano que não aclarava, se imaginado ou vivido. O contato com as rosas do pátio interno do sanatório inspiravam e embaralham histórias. Lembranças espontâneas -  corro riscos ao escrevê-las -, alertou Madame. Sei que atesto minha luta, tanto no mar quanto no contato humano, com gentes que partiram e estão nesta casa de loucos. Arrisco-me. Sobre as linhas da página, quais fios elétricos estendidos aos pássaros, encontro esteio para os pensamentos, preparo o voo das palavras e transfiguro as emoções. Sei que muitos à minha volta amortecem a dor que sentem, alheando-se. A desdita humana esbarra com diferenças, ingenuidade, frescor da idade, com o outono, senho franzido, com a força da criação que sacode, arrasa. Eis, de volta, o José Gaetano. Para escapar a qualquer insensatez, desejoso de recuperar alguma sensação de paz, o marujo cismou, diante do mar, o tempo de Portugal se tornar Portugal. Lembrou-se de D. Dinis I, a oficializar o idioma materno, a escrever canções de amigo e chorou profusamente. José Gaetano estava canção. 

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