Hospital Casaredo 9






9 Delirios


“Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..." Manoel Bandeira

 

José Gaetano era afeiçoado à terra, na forma lírica do termo. Apreciava o plantio das parreiras, os bichos de cria, a palha. Quanto ao toque dos instrumentos musicais de corda dedilhada, era terramar. Ambientes de estância, bucólicos, era nesses lugares em que ele podia organizar seus registros de viagem. Poucas vezes aportou por muito tempo, contudo. Todo silêncio do mundo é insuficiente para pacificar o íntimo, a não ser o do mar. 


Madame retomou a instabilidade ao escrever o parágrafo seguinte, quem sabe o mais confuso até então. Era claro que ela tentava se expressar, contar sobre grande aflição. Reticente descrição veio, como que ruído à narrativa anterior. Gaspare, ao lado dela, fingiu não se importar, para não interromper o fluxo. Caso viesse um maremoto, saberia como agir. O moço andava à espera de fatos esclarecedores, que ampliassem suas hipóteses. Sabia, entretanto, que o cérebro é uma caixa magnética, que tudo pode, inclusive explodir. A paciente vizinha a Madame, cujos pulsos permaneciam  atados, sofrera um surto moderado há algumas horas, não careceu contenção. Madame não o presenciou, pressentiu pelo ar. A senhora imobilizada não falava, a não ser blasfêmias e urros. Muitas vezes, reunidos na sala de que dispunham para descanso, os enfermeiros conversavam sobre o que era conviver ombro a ombro com a demência, se isso não aumentava os sofreres, debilitava ainda mais os atendidos. Nada poderia ser feito, a não ser isolar um ou outro, nos momento limítrofes. Gaspare, após a leitura do trecho que seguia, ficou em silêncio. Talvez uma ideação suicida. Agora que o doutor Wong Lam partilhava com ele o conteúdo transcrito, preferiu subordinar-se e guardar as próprias impressões. 


O doutor demorou algumas horas para tomar conhecimento dos novos relatos. Não comparou, analisou, apenas anotou. Madame contava que José estava sentado diante do mar e viu. Era noite sem lua. Mesmo assim, o céu muito estrelado deixava um sutil véu, iluminado sobre as ondas. O marujo, de onde estava, não podia ser visto. Apoiara as costas em uma pedra, um pouco acima do nível da maré. Estava descalço, de camisolão. Não conseguia sequer cochilar, talvez estivesse com fome. A guarida privilegiada da praia, sua vegetação, os olhinhos dos siris, duas fogueiras distantes. Sua mente estava vazia. Uma dor diferente balançara seu coração pouco antes, como que um presságio. Então vieram os dois. O velho empurrava uma mulher em cadeira-de-rodas. José Gaetano sabia da velhice pela dificuldade dos movimentos do homem, as costas muito arcadas, como se uma tonelada pesasse sobre elas. Os cabelos levemente prateados de ambos. Cheio de solidão como vivia, o corsário enterneceu-se com a cena. Pensou-os companheiros de longa data, o velho a mostrar o belo da noite a sua amada antiga e ferida. Mesmo as rodas a prender na areia, o homem seguiu resoluto rumo às ondas. Parou na borda e recitou em voz audível o Eclesiastes 1:17 - ‘todos os ribeiros vão para o mar, e contudo o mar não se enche; para o lugar onde os ribeiros vão, para aí tornam eles a ir’. O velho entrou na água até que a cadeira flutuou. A mulher não demonstrava reação, era como se dormisse. E então o homem a soltou. Ficou ainda alguns instantes a olhar a cadeira oscilar, até que virou e foi puxada pela corrente. O velho deu-lhe as costas e caminhou o mais rápido que pode para a orla, sem olhar para trás. Chocado, José Gaetano demorou alguns instantes para sair coxeando em direção ao mar. Chegou a tempo de puxar a cadeira que se afastava. Trouxe para a beira a mulher, presa à cadeira por fraldas de pano. Devolveu-lhe a respiração com a própria boca. 


A notícia de mulher içada em rede de pesca foi veiculada pelos tabloides da época. Um casal grisalho encontrado na praia. Ela, presa; o homem, metros à frente, uma bala a trespassar-lhe, lado a lado, a arma ainda na mão. A mulher, viva, fora conduzida ao sanatório da Cidade do Porto. Cruz Florenciana. Este foi o primeiro encontro de José com a aldrava da ala de assistência do sanatório. Como ele chegou até lá, a mulher envolta em fraldas, não sabia narrar. Na sequência do relato, Madame fez sentir algumas digressões sem sentido, sobre desgosto em um ensaio musical. Outro tempo e lugar. Vários trechos rasurados.


“se tens que esperar para que saia de ti

a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa”. Bukowski


Alois e José conversaram naquela noite, abstrações. Parecia errado o encontro. Tinham planos de repassar o repertório para um sarau em casa de família conhecida do capitão-mor. Nada ensaiaram. Nada fizeram. Alois, amuado, não pôs o que o incomodava. Talvez, se José fosse uma dama, o capitão-mor tivesse mais confiança. O amigo de estante, exasperado, externou desistirem do encontro musical; deveriam seguir com suas vidas. Ao dizer isso, José reunira toda coragem. Não havia compromissos, ele sabia. Contudo, o medo de nunca mais se verem era condenação de morte. As coisas da jornada cobravam ao marujo, que já não era moço e não deveria ter dúvidas sobre os passos a dar. Posava de adolescente ali, egoísta, a pensar só em si. O outro, agoniado. E então o Donis falou de entrega, esses aportes que se usa na interpretação teatral. De maneira insólita, esquivou-se do próprio imbróglio. Quem, dos dois, deixara de entregar-se? Cruz de Caravaca. José, pasmo diante da situação, irritadiço, sem entender qual sua responsabilidade em tudo aquilo, escutava. Sentia-se mal, não seria possível transformar aquele momento em verso. Alois jazia, jogado à chaise longue da sala e não contava, o horrível que poderia ter feito. Medo de que? De lhe cair o véu?


Exilado de contratos familiares, José não poderia ajudar, de qualquer modo. Tinha a impressão de que se tornara bomba de sucção, sem potência para tirar água ao poço. Riu-se por dentro, estava referto de seus cartéis. Havia um trecho rasurado na descrição feita por Madame, algumas linhas que certamente esclareceriam aquela rusga. Foi habilmente riscado na página. Ficaram somente três palavras: então ela chegou... a máscara caiu, de toda sorte.


Eu ouvi a conversa dos falantes, a conversa sobre o início e sobre o fim,
Mas não falo nem do início nem do fim”. Walt Whitman

 

Cruz Florenciana. Não, tenham compaixão, logo passa, escreveu Madame. Suponham tratar-se de mais um surto. Ou José bancava o tresloucado, depois de deixar a senhora resgatada das ondas diante do enfermeiro,  ou era o mundo à sua volta que não se ajustava. Ou era misturar-se, por segundos, à dor do outro, isso combinava com entregar-se. José os viu partir, a dama e o músico. Ao fechar a porta, estava acabado. Guardava alguma consciência das próprias infantiladas, seus ares de ciumento devedor o denunciavam, suas feridas fixadas e deprimidas o desdiziam. Naquela noite, não haveria travesseiro que o consolasse. O quadro acenava o que sonhara seu e esfarelou, a zombar. Faltou-lhe coragem para dizer que não se veriam mais. 

 

Cruz cristã. José vivia um redemoinho, onde topava com a mulher na rede, que levara ao sanatório. Ele a sustentou, ao colo. José não perturbaria paz alheia. Não distinguia o que era seu na tormenta. Amargava um ninho de mafagafos diante da paisagem hostil. Mentir a si, não podia. Estaria louco, de vez? Para purgar um transtorno só o tempo, contenções, vergastadas, solidões, escaladas íngremes por paredes retas e pedrinhas nas sandálias. Assim era a justiça. O corsário não  havia encontrado o gozo, perdera a chave. Então não havia o que sonhar. 

 

Estranho, contar a história desses homens sem terra. José não era ingrato, tampouco pensava em desistir de si. Ouvira o músico com ouvidos de ouvir e não havia fatos a analisar. Refletira sobre silêncios, sobre reações de rompante, caminhares infrutíferos, dificuldade em aceitar que as coisas eram como eram pela lei de ajustes ou para que se cumprisse a gloria divina ou qualquer desses argumentos. Do que falaram naquela noite os dois homens, afinal? Sem testemunhas, difícil averiguar. Melhor esquecer. O que é urgente contar, afinal? Quem lê quer saber.

 

O marinheiro deu ciência a alguns poemas por aqueles dias. Falavam de saudade, de desterro, de funeral. Portugueses falam bem da morte, a tratam bem. Encantou-se com as palavras e disse, em voz alta, farei canções. Ah, compor, alinhavar ideias nobres, se bem que parnasianas, em tempos pós-modernistas. Compartir, sentar-se, tocar, evoluir na escolha de outros temas que dessem suporte ao roteiro do sarau. A data para a tertúlia fora mantida. Cruz de Caravaca.


O capitão-mor Alois Donis cogitou outras pessoas para fazerem música com eles, a coisa queria crescer. Muito natural, sonoridades diversificadas, atraentes, um regional se formaria. Melhorariam o tom da festa, tratava-se de divertimento em solo tradicional. Entrou para o conjunto o Santo Olivairas, colega comum. Homem doce, bom, correto, ótimo músico. José variou, e se as canções que compôs fossem todas sussurradas por fantasmas? Se atendessem a outro destino? Perguntas descabidas? Insanas? O galeão das horas traçou com clareza o mapa de sua enfermidade. Ser músico era diferente de ser mercante. Estavam misturados os prazeres do convívio musical para José, a prática criativa excitava além do necessário. O desejo de companhia, de cumplicidade, era a mais grave pendência para ele. Um dramalhão tolo, feio de se ver em homem maduro. Pena, ele não sabia contar que se apaixonara por quem não era seu. Um dramalhão tolo, feio de se ver em homem maduro. 


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