Hospital Casaredo 8


Cruzes


“Vem do luar no céu, vem do luar no mar
coberto de flor, meu bem, de Iemanjá”. Vinicius de Morais

 

Madame reanimou-se. O fato de se interessarem por seus escritos foi como acordar de um sonho ruim. Era como ter pessoas para conversar. Dois outros cadernos, em branco, apareceram na Assistência naqueles dias. Todos pensaram que o doutor os trouxera. Só foram saber da boa nova depois. Encantada com o volume, peso, as espirais vermelhas da borda, a capa estampada de rosinhas, a senhora esperou que Gaspare  retirasse o objeto do plástico. Alisou e virou as folhas durante algum tempo, testando a nova maneira de o dobrar.  Segurou o lápis recém apontado e se pôs a contar que José Gaetano, aos dezessete anos, era do mundo. Não esqueceu a terra natal, tinha-lhe apresso. Após o estágio nas galés, contudo, desgarrou-se de suas raízes e isso era natural. A escola náutica exerceu sobre ele forte impacto moral. O rapaz transferiu seu coração para domínios novos, como se fora sépia marinha. Emancipado, nutriu a ilusão de não precisar prestar contas, ou lembrar aniversários e outras convenções sociais. Impunha-se leis rígidas, obsoletas, sem amor. Tal gesto o comprometeria mais tarde. 


Não fora diferente para muitos meninos de sua época. As mulheres tinham os filhos como era possível. Os rebentos ficavam a ciscar pelo terreiro, a meter os dedos terrosos à boca e logo eram utilizados em trabalhos domésticos. Quando uma criança se rebelava, por qualquer motivo, ia logo para a panela ou, no caso de José, para longe. O marujo compreendia as tramas humanas como se estas fossem um espaço conquistado a ferroadas. Sempre com febre, ficava acima dos liames da indiferença e do tédio. Tinha na lua uma aliada brilhante. Caso estivesse cheia num dia de delírio, José Gaetano exultava e atacava seus desejos, perdendo no momento seguinte. Era ambíguo, para José, lidar com a dor: ao mesmo tempo em que a suportava estoicamente, tinha-lhe ojeriza. Tal inconformismo ficava evidente em sua respiração curta. Ele tomava ar com sofreguidão e expirava curto, como se o movimento o rasgasse. Faltava-lhe filtro na oxigenação. Um temperamento benjamin, melancólico, para não dizer mimado. Raiva, orgulho, apatia, tédio, inversão da chave a todo instante.


Cruzes. Quando viu a Sor pela primeira vez, as velas decoradas com cruzes portuguesas, José Gaetano corou. Preferiria os velames neutros. Perguntou sobre o significados dos símbolos em muitas viagens, a passageiros nobres. Os lábaros encantavam. Colecionou histórias d’eles. A embarcação, que José agora conduziria, pertencia ao Conde Himeneu de la Fambula, como foi noticiado. Ao subir a bordo, papel de arrendamento na mão, com letras pequenas no pé do documento, o bucaneiro mirou o emblema vermelho, alimentou convicções tortas a respeito de coragem. Várias representações de cruzes passaram a abrir as páginas de seu diário de bordo. Uma para cada condição. Cruz ansata, quando José estava bem; sautor, quando se sentia ameaçado; a portuguesa, quando tinha saudade; a cristã, quando havia dor, injustiça; os arcos sobrepostos, tanto para dizer que pensava nos mortos ou buscava sua identidade, ou simplesmente para louvar os peixes. Ao final de cada mês, o comandante fazia a contabilidade e anotava seu estado geral. Ficava apreensivo, quando percebia que o número de redemoinhos era grande. 


José Gaetano meditava sobre conceitos abstratos, sem aplicação em seu cotidiano. Por exemplo, o martírio como nutrição. Nos apontamentos que fez sobre o assunto, a cruz cristã foi guarnecida com uma echarpe. O marujo ousou pensar sobre o cosmos ininterrupto de retribuição ética, embora não entendesse uma única frase do que lera, sequer a ideia central do pensamento. Considerava o singular, o plural, as relações com a própria existência, ele na periferia das conjecturas. Qual referência fazia sentido, quem o representava? Uma cruz peculiar: a deusa da justiça, traço vertical para o corpo. Outro, a cortar o primeiro, desenhado com boa inclinação. Do lado direito e acima, a balança. Do lado esquerdo, uma espada apontada para baixo. Eis o símbolo para os mergulhos íntimos de José, quando eram mais apropriados os pensamentos sem som. A cruz de Tau sempre chamou o pirata a apiedar-se. A cruz vermelha irradiava as questões abertas de onde, para que, para onde. O vermelho fazia de José um pouco melhor do que presumia ser. O comandante perguntava sempre mais, mesmo que as perguntas soassem por que, por que, por que. Por que sofro, a recorrente. Para o comandante, perguntar por que a lua acende inspirava canções. Naquele período de sua jornada, ainda não se falava em lei de causa e efeito, nem era o caso de José almejar contemplação e sossego. Marujo tem muito de espiritual, porém, passa a maior parte do tempo a cismar. José trabalhava muito, e com que gosto. Esquecia, dessa maneira, a infância mórbida e a adolescência sem virtude. Conheceu muitos ladrões, sentia que um dia todos se emendariam. Supersticioso, José Gaetano meteu na popa da Sor a carranca mais horrenda que encontrou, dentes enormes a desafiar, um peixe ogro. Mais tarde, achou uma sereia azul e a fincou, perto do leme. A quinquilharia era um grito para a vida. Cada novo relacionamento, de qualquer categoria, obrigava-o a exames de consciência. Há tempos parara de se odiar. Quem tiver paciência, lerá que muitas das provas às quais José se submeteu foram entregues em branco. Ele se punha em guarda, repetia a lição e em geral avançava sobre os acontecimentos com carga total, exigente e enérgico, voz forte, de comando, olhar penetrante. Era tudo para ontem. Cruz florenciana para estes episódios. Afável sem ser dissimulado, peculiar para ser amistoso. Preferia a companhia de um de cada vez. Os bandos o confundiam. Neste caso, cruz de Caravaca. Desafiar autoridade parecia-lhe o grande caminho da libertação. Autoridade masculina, ele desprezava. Feminina, temia. A sua, desacreditava. Sempre que  algo exigia firmeza, vinha-lhe uma reprimenda da mãe. Para contar tal historia, usou não uma cruz, mas a estrela de Davi. 


Eles assentavam morada em vilarejo novo, uma quinta. Parecia que finalmente seriam felizes. Habituavam-se às gentes do lugar. A mãe tinha fama de se dar bem com todos, conciliava. Todos diziam que ela era dona de uma gargalhada sonora. José Gaetano nunca escutara o som, não lembrava dela sequer a sorrir, menos para ele. Deixou-lhe a impressão de não o amar. Talvez amasse, e muito. José Gaetano, quando o mar era cinza, pensava na mãe e pedia perdão. Quando negro, queria ir ter com ela. Dois rostos dela pairavam nas brumas: um exasperado, outro piedoso. O mar azul, este não tinha rosto para José. A mãe, um dia, vaticinou que, se ele continuasse a se portar mal como vinha insistindo, não faria amigos. Uma pena, José não entendeu por que estava sendo punido, os olhos da mãe o mortificavam. Era como se ele a maltratasse muito, desapontasse. Era a única amiga que ele quereria ter. E não a alcançava. Ela, em sua autoridade, não lhe retirou afeto, estava genuinamente preocupada com um possível gênio despótico, com a limitação para assunção que observava no filho. Ou talvez a mãe tivesse se assustado com a raiva da criança. Para ele, ferimento mortal, maldição. José Gaetano não distinguia mais as fisionomias dos compartes com os quais arrumara encrenca naquela ocasião. Sabia que saíra do malfeito humilhado, culpado por algo indevido, talvez por ser o mais velho no grupo. O menino se lembrava somente de cigarras aprisionadas sob uma peneira de feijão, sob tortura. Amava as cigarras, passarinhos, animais em geral. José não era justiceiro. Tampouco vítima. Era mais uma criança, não a cruel criança. Talvez sim, a desesperada criança. Um monstrinho de oito pernas. Assinou a anotação do dia com um lírio roxo. As febres altíssimas e cíclicas vergastavam. O insulamento sob as mesas dava alento. A vergonha de fazer coisas que amarguravam a genitora uivava. Talvez, a partir daquele dia, o das cigarras sob a peneira, da briga com os outros meninos, ao tentar impor seu ponto de vista, algo assim, José Gaetano tomou como verdadeiro o anátema imposto pela senhora dos seus ais. Mesmo ferido, seguiria a jornada sem ninguém. Não sabia fazer amigos, não se esforçaria para aprender. Melhor assim. Vieram os conselheiros, um de cada vez. Muitos deles, zombeteiros ferozes. Outros, anjos.


Às vezes, ao olhar a noite do convés, o marujo lembrava-se de um ou outro embate mais intrincado que travara. Sonhava a vinda daquele ente tão querido que ele idealizava,  consigliere dei consiglieri. Os portos, as aldeias, as ilhas eram cobertores para sua imaginação. Um dia, daqueles rincões, haveria de surgir o ás. 


Madame, cansada de lembranças confusas, de cruzes, de escrever coisas parecidas à espera de resultados novos, deixou cair o lápis. Um pouco de si se misturava ao homem que lhe dividia as páginas. Tanto tempo. Um cheiro de estalagem, pungente. Um acidente pessoal, o que ela não previu. A voz de Madame tornou-se um fio. Começou a bombear ar e conseguiu gritar, em alto e bom som. Berrou durante vários minutos, mesmo quando Gaspare a colocou na cadeira e a levou para o pátio. Madame silenciou quando sentiu os primeiros pingos mornos. Era verão, lembrou chuva pontual. O enfermeiro percebeu que lhe faria bem o aguaceiro generoso. Maria veio atender a senhora quando o sol reapareceu. Deitou-a sobre uma toalha, despiu seu corpo lavado, como se faz com um bebê, e deixou que secasse. A dama, enrubescida, tomou a posição fetal e chupou o polegar.  Depois, ao ser conduzida de volta à enfermaria, Madame quis recomeçar a gritar. Ao olhar as camas sossegadas e sentir o cheiro da sopa que algumas colegas tomavam, resolveu resignar-se. Javier veio lhe dar alimento, o que a apaziguou. A beleza acalmava dores. Antes de dormir, Madame ainda teceu algum comentário em seu caderno. Desenhou uma rosa.

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