Hospital Casaredo 7

 

 



“faze que no céu possamos, sem véu, te contemplar um  dia”. Canção de louvor       

 

Um trecho novo na história da senhora deu-se a conhecer. Madame fingiu dormir, quando o homem dos olhos amendoados se aproximou e tomou do caderno para ler. A Roseira possuía um corredor malcheiroso, desses em que as frituras se misturam a odores humanos, amoníaco, cânfora, enxofre. Nada com que tu não te acostumes em uma noite, ó marujo. Foi o que lhe disse a estalajadeira na tarde em que José Gaetano deu ares de graça. E vais para um aposento com colchão de penas, lençóis limpos e tina. Acredito que te acomodas bem e depois vou lá, fazer-te um esfregaço às costas. O momento íntimo pegara José Gaetano imprevidente duas vezes. Carente de tudo, ele propusera à Rosália juntar os trapinhos na primeira vez. Rosália, a sorrir, dissera que sim e que não, tinha que ver se aguentava esperar outra volta dele das Arábias. O marujo já estudava pôr a Sor no Atlântico e então tudo seria inconstante, mais demorado. 


A Rosa era a mãe imaginada. Bela, prendada, agridoce, apimentada no cozer, bem fornida de peitos. A voz mais angélica que José Gaetano ouvira, a cantar o Jardineiro e a Roseira[1] quando ele adentrou à estalagem. Rosália gostou daquele homem menino quase tolo, tosco,  ao mesmo tempo profundo nas falas, nos gestos, um homem do mar, ora pois. Na segunda vez, José Gaetano fez um filho na Rosa que, contaram a ele, a moça abortou espontaneamente no terceiro mês. E então José Gaetano deu por encerrado aquele idílio mãe infante, foi para o Caribe e na próxima vez em que esteve em Lisboa, hospedou-se  numa casa na altura do Rosário, só cobertas, sem carinho. 


Hoje, José entrava de novo na Roseira, pura nostalgia. A estalagem exibia o letreiro Mansarda do Silvério. Dove sei la Rosa, perguntou o comandante. Há muito que não vens, ó pa. Rosália partiu deste mundo tem dois anos. Deu à luz o Cristino e se foi. Cristino? É, e o Crisinho foi também, da peste. Anestesiado, o marujo pegou a chave conhecida e se recolheu, sem dizer nada. Nessa noite, José Gaetano ficou bastante tempo parado no corredor, diante da porta que era da sua mãe, a segunda que perdera na vida. Escambou contato com alguma sombra, que lhe desse o paradeiro da amante furtiva e do menino, sem sucesso.  Depois de chorar pequeno e pouco, sossegou. Já não eram tempos de mães, mas de uma sereia extraordinária, que o fizesse ao mesmo tempo ver estrelas e o breu do mar. José Gaetano aferrolhou a porta do quarto, mantendo a chave na fechadura. Lavou-se como pode na tina encardida e foi para cama, desmamado. Sonhou com o porão de uma barca, ele a tentar se aquecer do frio cortante e um ninho de piolhos a fazer condomínio na cabeça. A Rosa vinha, acolhia ao colo, passava o pente fino, cantarolava que dá rosas tantas, tantas.


Maria, a enfermeira chefe, tinha conhecimentos de taquigrafia, pode secretariar as reuniões dos atendentes com o doutor. Wong Lam, imerso no teor da leitura, perguntou se ela sabia cantar alguma cantiga sobre rosas. Joana adiantou-se e descreveu a técnica que a colega aplicava com os pacientes, como era admirável em seu jeito de tratar os desvalidos, feito mãe com seus bebês. Joana cantava também, porém o efeito era diferente. Naquela manhã de abril, o doutor limitou-se a escutar os fatos sobre as jornadas de turno. A maioria dos enfermeiros louvou o que o outro fazia, com destaque para os nenos de Maria. Foi unânime confessarem que já quiseram ser, também eles, acalantados pela colega. Maria não teceu comentários, concentrada nas anotações.


Ao final da ronda, quadro geral estável, Wong Lam fez uma mesura aos enfermeiros, inclinou o tronco, em perfeito alinhamento com os dedos dos pés, sem dobrar os joelhos, mãos postas sobre o peito. Tal gesto reforçou o padrão de respeito e estima que vigorava entre todos. Nova história tinha início na Assistência. Novos ares, outros cuidados, quem sabe emancipação e progresso. Só não permitiriam, sob hipótese alguma, a retirada daquela gente sem nome para o esquecimento e a morte. 


Wong Lam aproximou-se de Madame mais uma vez. Tomou-lhe as mãos entre as suas, segurou-as por algum tempo. A senhora o olhou demoradamente, como se fixasse aquela imagem inédita, como se sorvesse as vibrações que vinham daquele ser diferenciado e estranhamente familiar. Uma das mãos dela ficou por cima e ela pode enlaçar o pulso do doutor, daquele jeito que significava aliança, entendimento, cooperação. Antes de soltar a mão, Wong Lam devolveu-lhe o caderno e agradeceu a ela pela leitura afetuosa que encontrou. A senhora fechou os olhos e abraçou-se ao caderno, como se este fora uma boneca.


Flor de Lotus com preenchimento sólido

Abril terminava, outra ronda. Wong Lam, benfazejo, pregou uma folha de papel no quadro de avisos, contendo diretrizes para os próximos dias, que exigiam atenção e vigilância redobrada. Falou com a equipe brevemente, enquanto caminhava e ouvia as descrições dos prontuários. Vamos partir de um pressuposto, propôs o doutor. Há alma. Sitiada no corpo físico. E é nela que devemos tocar, em qualquer condição, em qualquer idade cronológica. Onde está a sabedoria desses idosos? Não sabemos. Como se deterioram de forma assombrosa os seus cérebros, como fruta estragada na árvore? Muitas possibilidades, incluindo preguiça, insensatez, pensamentos ruins, tolices, vícios. Esse é o destino dos humanos, acabar assim? Acabar, palavra limitante, melhor não usar, em um grupo que quer melhorar os outros. Precisamos resgatar a parte do humano não tangível, a sua essência, para então auxiliar na sua libertação. Muitos aqui são irrecuperáveis, o que não justifica joga-los na gruta; eles viveram como puderam. Querem morrer melhorados, acreditem. Todos aqui tem alma, é fundamental que nos agarremos a isso. Não é com xaropes ou Topiramato que se trata alma. Os atendentes aquiesceram. Tudo o que estiver ao nosso alcance faremos, para que estes enfermos se encontrem. Não somos deuses, tampouco donos da verdade, menos adivinhos. Somos servidores. Novamente os atendentes acenaram com as cabeças, cautelosos. O alivio que proporcionamos não pode reforçar comportamentos perniciosos, entendem? Há injustiça, porém não injustiçados. Nós trabalharemos por nós primeiro. O postulado soou, neste momento, inefável. Não, não imaginem que sairemos a punir comportamentos daninhos, não somos juízes. Vamos observar, anotar, criar pontes, dissolver pântanos, ampliar as interpretações. Deixar nascer o loto nas drenagens. Transformar com paciência. Seremos mães enérgicas e ponderadas, de nós mesmos. Mães e não infantes, compreendem? Todos assentiram, inclinando a fronte. 


Gaspare foi dar conforto a Madame, era sua função naquele turno. Depois dos cuidados de higiene, de alimenta-la com certo custo, levou-a ao espaço interno da Assistência. Uma rosa amarela florescera, pujante. A senhora assentou caderno e lápis como pode e continuou a contar. Na próxima ocasião em que chegou notícia do Donis, o imediato Libó assoviou uma cantiga de marinheiro[2]. Mensiê Doninho me disse que se eu assoviasse direito, V.S. compreenderia a mensagem e me daria vinte réis. José Gaetano sorriu e lhe deu as moedas, entre satisfeito e entristecido. O Donis era assim com ele. Pouca expressão acalmava as lonjuras, que se iam tornando cada vez mais espaçadas. A jornada dava de volta pequenos mimos, em retribuição a tantas guampadas desferidas por José a si. Ultimamente, ele se comportava como touro. Bufava, estocava o assoalho, olhos avermelhados e cheios de uma raiva que provocaria rebeliões. Este sentimento reverberava na tripulação, em geral hostil, desatenta. 


As ruas da Cidade do Porto cantavam, perfumes de primavera. O corsário caminhava taciturno, taurino, a melodia eu não sou daqui a soar em seu íntimo, magoada. Em uma travessa a beira mar, avançava para fora da jardineira de um sobrado delicada rosa amarela. José Gaetano teve intenção de colhe-la, deita-la às ondas, para saudar a Rosa, para Cristino, para Alois. Antigo fantasma risonho, que o convidava vez ou outra a atirar-se e seguir mar adentro, circundou seus ouvidos, estouvado. José ignorou-o, sentiu que a rosa ficaria melhor ali na sacada, a sorrir aos passantes até a hora de murchar. Espantou o graçolo, como se toca um inseto. O infeliz, com voz esganiçada, ainda cantava longe, eu não sou daquiiiiii eu não tenho amoooooorrrrrr.


A Sor tinha um carregamento de seda chinesa desembarcando no cais. A tripulação atual, vinte e três homens, era uma estampa de assustar navios piratas, mesquinha, cheia de convicção, cega, surda, indolente, covarde e quando convocada a conversação, muda como virgem esquelética. Isso era motivo para duelos solitários entre o comandante e sua inventividade. Contrafeito nas falas, José as proferia sem pensar, feito navalha. Nessas horas, o comando ia água abaixo. Em geral, movia deportações.  No afã de controlar seus impulsos, José armazenava frustrações ao invés de as esquecer, até que explodiam e então não sobrava pedra sobre pedra, gente saia chamuscada e José perdia a razão, o posto, o crédito. A Inês morta, o marujo macambuzio, lá vinha auto flagelação. Patético, o homem empunhava o sabre e partia para cima de cortinas, cordas, casco, vento, o que estivesse a sua frente. Na cabine da Sor havia vários rasgões, aquele lugar que já não era grande coisa. À noite da mensagem assoviada, José deixou metade do sabre mergulhado na mesa, a coronha a pender-lhe do pulso aberto. Pena, a realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos[3], disse o poeta.


ser maior    


As aflições, consequência de comportamento equivocado, aturdem,  disse Wong Lam, após a saudação distintiva com que presenteava aos enfermeiros. Tal fenômeno, o da angústia, só acontece com aqueles que sentem vergonha do que fizeram. Às vezes é tão traumática a situação que os pacientes a escondem sob camadas do cérebro, para nunca mais achar. Mais certo é que congelem várias agonias, de vários modos. Paralisa-se a musculatura, interrompem-se sinapses, morrem neurônios. A coisa não resolvida estanca, presa em determinados circuitos elétricos. Pensem em água que deveria correr e é barrada, por obliquidades do organismo. Nasce, nas represas, erva daninha e mofo. Eles bebem água que deveria fluir, alimentar células sãs. Poucos dementes são capazes de suportar a dor do arrependimento. Vão, vocês, ao fundo de seus corações. Estudem. Se são capazes de compungir-se. Tal mergulho gera empatia, faz sentir piedade benigna. Ainda precisamos falar, depois, dos enfermos que desejam justiça e fazem disso a própria sina. Não podemos dar luz, mas atiçador. Técnicas de fazer fogo também podemos ensinar, a fazer pavios, luminárias, perceber as correntes alternadas, contínuas. Apagar labaredas. Incêndios. Madame poderia ter entrado em combustão na madrugada. O que fizeram? Frio, morno, frio, morno, esfrega, frio, morno. Temperatura normal. Relaxamento orgástico. Velhice? Hum, hum, hum. Organismo sensível, instinto primário. Um passo adiante do instinto. O que a alma quer a partir de tal comportamento? Quase sempre outra coisa, diferente dos apelos fisiológicos. Prazer, poder, é pouco. Façam anotações, pensem. Com carinho maternal, sem julgar precipitadamente. Sem choque, sem violência.

Ao final da instrução, o doutor propôs praticarem Lian Gong[4] na manhã seguinte, uma hora antes da troca de turno. Mesmo sendo disciplina árdua para o ritmo de trabalho do corpo de enfermeiros, houve adesão total. Wong Lam ainda propôs, caso Madame estivesse desperta, leva-la à praia, no momento dos exercícios. Traria um pequeno tapete de borracha para forrar o chão onde a sentassem. Outras três mulheres, as senhoras Dois, Três e Quatro, que podiam se manter em pé, iriam também, guiadas pelos atendentes. Para a senhora Três, haveria o reforço de Matilde.


Os exercícios diários, os estudos, tudo colaborou com o moral dos atendentes. A equipe sentiu que se lhes melhorava o desempenho e desanuviava a mente. No final daquela manhã, estavam tão estimulados, que dançaram em volta dos leitos. Alguns pacientes, inertes em seus mundos, voltaram os olhos para o movimento. Mais cedo do que o esperado, dançariam no mesmo círculo, sorridentes, com alguma lucidez. De onde veio aquela pedra, que riscou a testa de Gaspare e foi se encrustar no concreto bruto, fundo o suficiente para quase traspassar a parede?

Flor de Lotus com preenchimento sólido

 

 



[1] Canto tradicional português

[2] Eu não sou daqui Marinheiro só eu não tenho amor Marinheiro só eu sou da Bahia Marinheiro só de São Salvador Marinheiro só

[3] Livro do Desassossego, Fernando Pessoa

[4] Exercícios de fortalecimento harmonioso do corpo; permitem que o indivíduo se mova e respeite suas condições físicas.

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