Hospital Casaredo 5





5 - Sobre a perda do livre pensar


Madame contou que José precisava de respostas e aprendeu, muito depois, que as respostas não vêm sem trabalho. Tampouco as validações aleatórias servem para algo. O marujo vivia à espera de condecorações, tinha vaga ideia de agir como irresponsável. Amparava-se por um sentimento de autoindulgência. Escambar estas coisas era mortificante. Ideias suicidas, ainda não dera com elas, porém volta e meia o rondavam. Entregou-se ao espaço idílico, aos seus devaneios, ilhéus de proteção. O seu capitão-mor era muito belo e isso era tudo. José Gaetano, que se gabava de nada possuir, ocupava o coração com pequenos regalos imaginados, só tinha olhos para eles. 


Gaspare virou a página. O relato a seguir era breve reprimenda de Madame a si mesma. A capacidade de fazer perguntas carece sedimentação. Não é louvável intimidar-se com as refutações quase obrigatórias a todas as hipóteses. Onde se encontra uma mulher nesses momentos de esclarecimento? Na cozinha? Sobre uma maca? 


Quem sabe, perdido em seu tempo, José Gaetano se comunicasse por telepatia, resta saber com quem. Mais certo é que afundasse, afundasse, afundasse. Que se retirasse, em definitivo, da realidade. Que será de mim? A pergunta palpitava. Não, não havia rádio amador à época do corsário. Não havia ondas curtas, o Código Morse ainda era utilizado com restrições. E, interessante, havia todo silêncio do mundo. O contato com as estrelas, as runas, os palitos do I Ching amansavam a luta íntima desse visionário galego genovês, que falava uma mistura ininteligível de dialetos. O tarô de Marselha, José Gaetano o conheceria mais tarde. 


A lembrança caprichosa do comandante ecoava no coração de Madame, na calada da noite. Onde navegaria agora o amigo rio? E no que seria útil encontra-lo? Pelo menos, Madame tinha a quem recordar. Carecido de novos dados para sua pesquisa, Gaspare não dispunha de método eficaz para qualificação e análise, caminhava por intuições. A academia e os homens das letras o humilhariam e esta não era sua preocupação. A tese quereria considerar as formas de expressão na demência senil, o quanto tinham de beleza. Gaspare não sabia como dar sustentação ao mote.  Os cadernos de Madame eram apenas um começo. As perguntas? As respostas? O moço sabia que andava a improvisar. Veio-lhe uma canção antiga, interpretada por um cantor de voz abaritonada, chamada Senhora do Livramento[1]. Gravou-a ao final da fita que usaria pela manhã para o tratamento da senhora, a primeira peça vocal que arriscou no repertório.

 

“Mas, não... Se a mão de um poeta

Vos cultiva agora, ó rosas,

Mais vivas, mais jubilosas,

Floresceis”. Machado de Assis


Na página amassada, sob a cama, vários desenhos de caveiras, com várias expressões zangadas e uma possível resposta. Era a letra da canção de um brasileiro,  eu não sei que será de mim eu não sei e nada me importa saber eu só sei que havia um mar à vista ali você passou assim por mim e eu me perdi.


E a história segue pelas ondas, salgada de saudade. Não tardou muito e outro bilhete chegou, ainda a falar sobre rios misturados que chegam ao mar. Os versos provocaram certa agitação. José agarrou-se ao pretenso sentimento que lhe ia, como se agarraria à Julieta, caso precisasse ser içado por ela das águas bravias. O bilhete estava relacionado a um breve encontro de cais, com esbarrões e apertos de mão. José Gaetano sentira que o Donis talvez fosse lhe contar um segredo, partilhar alguma dor. Arquivou a energia do momento, contumaz. Como quisera ser confidente, ser qualquer coisa para aquele belo homem. Gaspare anotou em sua prancheta estudar os mitos, a origem dos sentimentos de apreço. Diferença entre os sentires das mulheres e dos homens. 


Dessa vez, a entrega do envelope ocorreu em uma taberna na Alfama, perto o suficiente do Beco dos Cortumes. José Gaetano retornara a Lisboa com uma carga de pedras preciosas. Viagem turbulenta. A Sor fora surpreendida por uma caravela corsária na Sicília. Os assaltantes abordaram a nau de forma particularmente pacífica e apenas alguns subiram a bordo. Havia um surto de enterite na Mairusca; confiscaram da Sor dois tonéis de água apenas, o suficiente para se chegar ao próximo porto. Febris e enfraquecidos, sem interesse em olhar o que ia por baixo das lonas no compartimento contíguo, os piratas partiram. Por sorte, não deixaram resíduo da enfermidade para trás.


A Sor aportou sem danos, festejada por um grupo de mouros, que encheria um pouco mais as burras de José Gaetano. Como paga, pedras. Lápis lazúli, jade e esmeraldas, as primeiras do tamanho da palma de mão de mulher. Cansado, merecedor de um banho, José Gaetano fora à ao canto preferido da capital, onde encontrou o par de seios de que precisava para repousar a cabeça fervilhante. Na taberna ao lado da hospedaria, José topou com João Pereira Corte Real, que lhe esfregou nas fuças o envelope, a caçoar o colega.

 

De arrasto e areia conclamo teus fios, tua memória

 

No pátio interno do sanatório, toda vez que Madame era colocada em certo ângulo, que lhe permitisse divisar a flor, ela escorregava da cadeira e se arrastava até a vegetação. Tinha as nádegas expostas, mas este era o menos bizarro dos eventos. Javier não a impediu do contato com a areia, apenas verificou se havia insetos ou crustáceos e a deixou em paz. Madame, os olhos úmidos, acariciou a planta sem tocar nela. Sorriu. Um ou outro balbucio se escutava, ininteligível. Se Gaspare ali estivesse, saberia que ela engrolava a canção que ele gravara.  Para o atendente espanhol, o contato com o solo era um sedativo importante, fio terra para tensões. Deixou a paciente assim exposta; logo viria outro funcionário, a ergueria sem que ela convulsionasse.


Javier, sevilhano muito belo, percebeu, desde o primeiro encontro, que sua figura trazia Madame das sombras, para um espaço um tanto desconfortável, recordações com as quais, era perceptível, ela não pudera lidar. O enfermeiro levava a sensação em consideração, para calibrar o atendimento. Punha-se no campo de visão da senhora sempre que possível. Esperava que ela chamasse, quem sabe voltasse ao presente. Javier sentia muita piedade dos humanos que se confundem nos abismos interiores. Tinha sede de liberdade, queria que todos fossem livres. Em seus poucos meses como interno no sanatório, ainda não aprendera a sentir o sofrimento alheio sem doer. Não aprendera, igualmente, que as pessoas precisam de tempo, e que esquecer pode representar saúde.


Ao circular pelos corredores, o belo atendente escutava os suspiros das mulheres mais sãs e também dos homens. Para Javier, a reação era sofrimento. Alguns galanteios lhe eram endereçados, não importava a larga aliança que o rapaz trazia na mão esquerda, até piorava as coisas. A esposa dera à luz um menino, aumentaram as responsabilidades, não havia espaço para melindres. A jornada lhe ensinou a ser amável com todos, sem se sentir lisonjeado. Javier mantinha-se firme aos compromissos, afeito à sua vocação. Os ideais do cuidado cintilavam nele. Era um exemplo para quem o quisesse seguir, um naturalista. Só lhe faltava em quem confiar naquele asilo de loucos.


Os nenos de maternar, raitos de sol 


Quem sabe o que vai à cabeça de alguém. Eis o livre pensar. Uma das facetas do transtorno mental é abrir mão, parcial ou totalmente, do poder de escolha. Aquele que crê o cérebro um campo indevassável, ou sementeira estiolada, engana-se. As adaptações ocorrem a todo instante. Também as tromboses magnéticas, feito tempestades solares. Perde-se o perímetro humano dessa forma, flor que resseca sob o calor. Pousa um meteorito, entranha-se no corpo amigdaloide. Quem sabe quantos idiomas o órgão proferirá depois do acidente. 


Madame era uma casa para Afrodite ou abrigo para Hefesto, um jogo intrincado, brilhante nas encruzilhadas. Assim Maria refletia, enquanto lavava a paciente na banheira. A água fria auxiliava a circulação, promovia sensações táteis, provocava a volta ao presente. O caso de Madame não se resolveria a banhos de gelo, esfregaços na areia, zumbidos nos ouvidos. Maria pouco atentava para os rabiscos que via a senhora fazer em seu inseparável caderno. Enquanto alguns pacientes alisavam bonecos, Madame se fiava em uma brochura. Tudo certo, desde que não convulsionasse ou sangrasse ou mijasse, vomitasse, defecasse, agredisse ou levasse o lápis ao olho, ao ouvido, boca, a uma artéria. Hoje, Madame trazia areia pelos orifícios todos, o que a fez chorar quando Maria inspecionou. Ao concluir a higiene, a enfermeira ficou satisfeita. Aprendera, em seus longos anos de atividade, a ter mãos firmes, expressão facial neutra e ouvidos moucos. Para Maria o que veio, depois de estar a paciente vestida, ocorria pela terceira vez: foco em seu rosto, expressão efêmera. Madame estendeu a mão com vagar e envolveu o punho da enfermeira, sem força. Ficou ali poucos segundos e soltou. Maria entendeu, era um gesto de gratidão. O procedimento seguinte era usado com todos os assistidos. Antes de transferi-los para a cadeira ou leito, Maria os detinha no colo por cinco minutos, embalava e dizia coisas boas, às vezes cantava cantigas folclóricas portuguesas. Ao final desse tempo, dava-lhes três tapinhas suaves nas costas, próximos ao coração, como a se despedir e a dizer que a coisa acabava ali. A estratégia resultava uma noite de bons sonhos. No entanto, às vezes aconteciam desbloqueios e emergiam as perturbações. Maria sentia que as duas situações eram úteis ao tratamento. Preveniu Joana, de plantão na madrugada. Forraram o colchão com um lençol produzido a sacos de leite, mais um tecido de algodão por cima, para facilitar as manobras dos colegas pela manhã. Cobriram o corpo de Madame com uma manta leve. Talvez a senhora atirasse tudo longe dali a pouco, inclusive o colchão. Pelas três da madrugada, a senhora desceu do leito e foi sentar-se na comadre. Encontraram-na tempos depois, delirante.


Flor de Lotus com preenchimento sólido



[1] Composição de  Alfredo Duarte Marceneiro / José Luís Gordo

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