Hospital Casaredo 13



Para todas as sextas-feiras

“A mulher que tens, tão histérica,
tão histórica, desanima.
Mas, ó José, o que fazes?
Passeias no quarteirão
o teu passeio maneiro
e olhas assim e pensas,
o modo de olhar tão pálido”. Adélia Prado

O doutor Wong Lam se pôs junto ao leito de Madame quando a enfermeira chefe saía. Maria, silenciosa, foi cuidar dos demais afazeres. Atrás dele veio Adele. Tocou-lhe respeitosa o jaleco. Preciso falar. No corredor, a moça insone contou. Estive a caminhar na orla nessa manhã. Encontrei, há cerca de cinco quilômetros daqui, um casarão para arrendar ou vender. É de frente para trezentos metros de praia particular. Próximo ao farol. Privilegiada vista, longe o suficiente da quebra-mar. Dá para ver um espaço arborizado atrás. 

O grupo de enfermeiros já havia considerado esta possibilidade. Transferir a Assistência para uma casa, uma quinta. Não temos pressa, senhorita Roderjan, respondeu Wong Lam. Vou averiguar as chances e conversamos mais amanhã. Fez a mesura à moça e aquele gesto era um selo. O doutor auscultou Madame e as demais pacientes. Gaspare o ajudou, fado leve. Ficou aliviado por perceber que a senhora estava desperta, atenta. Madame até esboçou um sorriso para o enfermeiro, agarrou-se ao caderno que o doutor lhe estendeu e fechou os olhos. 

As circunstâncias vividas no dia anterior jaziam preservadas dos demais pavilhões do sanatório. Atendente algum dera com a língua nos dentes, a expressão é mesmo esta. Ao contrário, ainda mais se cotizaram para proteger a ala. Não tiraram os pacientes dos leitos. Os procedimentos de rotina foram executados com cada idoso deitado ou sentado ou a caminhar no espaço confinado. As janelas, todas abertas, deixavam ver um sol intenso, sem nuvens. As portas foram fechadas a chave ou a travas improvisadas.

“O reino do céu é semelhante a um homem como você, José. Adélia Prado

Cada enfermeiro, na sua folga, tinha visitado o farol. Matilde demorou-se em ele, tentada a entrar na arrebentação. Seus braços e rosto estavam feridos, temeu causar mais danos a si em contato com o sal. A enfermeira necessitava firmeza. A fala de Maria a cortara ao meio. Cuidado, Matilde. Um dia a contenção te chamará. Não veja os idosos como infratores. Uma boa percepção dos transtornos do mundo ampliava o dilema da enfermeira. Sabia do que se tratava a fascinação. Sabia que todas as criaturas eram, mais ou menos, pressionadas por forças, oriundas do organismo, do entorno. Mais ou menos transtornadas por seus fantasmas. Havia gente mais comprometida que os pacientes daquela ala, a caminhar livre pelas ruas, a fazer amor com seus pares, a beijar os filhos na testa. Alguma mudança climática ou de outro nível estava por vir. A lua e a estranha espada que Matilde vira cortar o céu durante a noite pressagiavam um evento. Qual, ela o ignorava e temia. Uma imagem bela, um delírio, um meteoro. Assim ocorrera consigo, não ao coração, aos centros sexuais. Para uma mente instável como a de Matilde, tomar cuidado era o mínimo que podia fazer. 

Dias depois daquela batalha de ondas e blasfêmias, Madame voltou a escrever. Estava no pátio interno, novas rosinhas abriram, havia calma. Matilde estava com ela. Nunca tinha lido os relatos da senhora. Madame estendeu a mão para tocar o cabelo da enfermeira, alvoroçado. Acariciou um cacho entre os dedos e o soltou logo.

Ouve o barulho do rio, meu filho

Deixa esse som te embalar

As folhas que caem no rio, meu filho

Terminam nas águas do mar”. Tribalistas

José Gaetano sonhava comprar a Sor, e seria o máximo de extravagância a que se permitiria. Não viriam, as moedas, dos saraus. Os pelos do seu pescoço eriçaram, lá vinham represálias psicológicas ou qualquer anedota infamante que os marujos guardam para ocasiões de alfinetar-se. A culpa, um flagelo. O medo de perder a confiança dos parceiros musicais estrumou os miasmas, tempero fino para desandar qualquer massa de pão. Se os humanos soubessem da força mental que detêm, pensariam somente boas construções. Reconheceriam e reverteriam os modelos de pensamentos fixos, afinariam, qual orquestra. Vamos tratar de manter os pés sobre as tamancas, disse o marujo de si para si, que isso de saraus familiares é trabalho para libertos. Fiz o que havia para fazer, murmurou ele ao leme. Expus-me na récita, ainda éramos impúberes, porém o som foi todo cortês, todo fado, todo lírico, pelo menos no intento. Sigamos adiante com nossas vidas paralelas. Calemos nossas manhas, comandante. 

José se declarara à coletividade, sem envergonhar-se por ser isto ou aquilo. As canções disseram, não ele.  Repetiu, para a carranca da sereia, tal e tal canção, foi para cantarmos ao guardado n’alguma alma. José Gaetano apressou-se em corrigir a nova rota mercantil, não desejava rever a Ilha do Sal. Ainda ferido nos brios, tentava serenar seu coração, preferiria esquecer o que vivera. Talvez compreensivos, os parceiros de palco lhe dedicaram uma canção, mais uma oportunidade para curar-se, óleo de lírio. O sarau foi o que tinha de ser, melhor que José aprendesse a lição.

Matilde achava as histórias românticas uma perda de tempo, uma coisa sem sal, sortilégios sem pé ou cabeça, que não agregavam valor à convivência. Ficava desolada por saber de tantos extravios provocados por elas. Reativa, jamais se envolvera em uma, casara-se por conta da quinta onde fora morar. Não pudera ter filhos, e isso afastou-lhe o companheiro. Juntou seus trapinhos, fez um curso de enfermagem e veio dar àquele sanatório. Viu e ouviu coisas ali que matariam de medo. Manteve-se inexpugnável, fez o que havia para fazer. Até que conheceu Javier. Entrou em espirais. E então entendeu Madame e teve pena pela primeira vez. Só de olhar as demais mulheres, sabia que a razão de estarem ali era por encantarem-se, em geral com o que não poderiam ter. Uma folha amarelada desprendeu-se do caderno, quando Matilde trocava a cama de Madame. A letra era diferente dos garranchos da senhora, cunhada à maneira clássica.


O meu coração se apertou

Meu coração se espremeu

Meu coração doeu

Quando ouvi as palavras

Sou minha voz eu sou

Sou meu cantar eu sou

Sou uma força imensa 

Que pulsa dentro do meu peito

Ah, cantar, cantar, cantar

Cantar

É o que eu amo fazer

É o que eu sei fazer

É o que eu quero fazer

Não sei viver sem cantar. Não quero mais falar. Que pensem, digam e falem,

Coisas mil

Eu vou chorar

Iara rai ie ra iera...

Sua voz encontrou um ninho em mim

Sua voz me faz um carinho assim

Sua voz me traz de volta

Sua voz me leva, me leva

Não deixe de cantar

Não pare de amar

E sinta esse abraço, esse afeto, esse colo, esse peito

Que te ama

Que te gosta assim

Com esse jeitin’

Ai, ai, amar faz bem

Ai, um pouco dói

Um pouco me leva

Ai, uma dor no meu peito

Nem sei, é só uma dor

Ai, ela é sempre um jeito de me fazer sentir, de me fazer sentir.

Quando Wong Lam terminou de ler os versos, deu um passo adiante, voltou, deu um passo atrás. Voltou. Não era momento, sequer para considerações. Eram comentários sobre formas de encantar-se, expressar-se. Ousou interpretar o texto como o estabelecimento de limites afetivos. Um eu tu que se mantivesse reconhecível. Impossível traçar algum paralelo de relacionamento ocidental com a cultura de seu povo. Eram sensações, da voz narrativa, de José, do parceiro musical de José. Quem sabe, malgrado de uma apresentação pública, onde eu tu foram protagonistas. Não se podia atribuir valor ou sintoma às descrições. Sequer saber se foram bem recebidos, os músicos, pela plateia. Gaetano e Donis lado a lado, em prática musical. Onde a senhora se encaixava na história? Por que aquele texto estava de posse dela? 

 

Sempre que escutava um paciente, Wong Lam desejaria reunir todos os atores da anamnese. Materializa-los. Saber da versão do outro. Para Madame, reler a mensagem da folha avulsa produziu febre alta, provocou-lhe o gatilho, o tratamento das ondas. A senhora entrou no vórtice, pulou da ponte. Era ela, a dar guarida ao pensamento de outro, a arriscar seu próprio pensar, antes de atravessar o Aqueronte e penetrar o reino dos romances terríveis. O doutor quis lembrar-se de alguma fábula cantonesa sobre atração não correspondida, sobre excitabilidade fora de controle. De imediato, nada veio. Somente mais tarde veio a lenda de Liang e Zhu, os amantes borboleta, embora não se encaixasse à perfeição. 

 

Matilde, parada ao lado do doutor, derreteu sutilmente a barreira de gelo que a mantinha no controle do próprio psiquismo. Enterneceu-se com o carinho que ele manifestava pelas condições dos pacientes, a forma como procurava soluções, maior conforto para todos. Inspirado, inteligente, profissional. Um artista em sua especialidade. Para ela, contudo, o novelo que se apresentava diante de seus olhos era por demais embaraçado, feito seu cabelo. Ela tratava a obsessão a vassouradas, a baldes d’água. Quando perguntada sobre o que representava envelhecer, ou amar, Matilde tergiversava, não possuía argumentos ou sentimentos a respeito. Agia para conter. Gostava do termo francês ‘barrage’.

 

O caderno de Madame oferecia muitos caminhos. Os temas abordados, os votos, o juízo, o sentido das tarefas, infelizmente não poderiam ajuda-la objetivamente. Apenas como processos catárticos. Como acalantos. Como se manter sobre ponte pênsil e permanecer lúcido na jornada utilíssima? Se alguém soubesse, ensinaria ao outro. Com um pouco mais de observação, o doutor  utilizaria aquela poética em conferência, ou aula magna. Para uns, relato de puerilidades, para ele, indícios, um caso clássico, profundo, individual. 

 

Por enquanto, o médico repetia em voz alta as palavras transtorno, liberdade, com vários acentos, intensidades, como um pintor em busca do melhor enquadramento. Outros termos, como alteração, contratempo, contrariedade, prejuízo (a outrem e a si). Sanatório e fim da liberdade. Acrescentou novos verbetes ao jogo de palavras e logo passou a pronuncia-los em cantonês, depois mandarim, depois outros dialetos do continente de onde provinha. Enquanto declamava, o doutor Wong Lam pressionou, com os dedos, certas áreas da orelha esquerda de Madame. Enquanto trabalhava, abriu a memória para um filme chinês, Lanternas Vermelhas[1]. As diferenças culturais forneciam pistas para o caso em tela. A esposa que enlouqueceu, a esposa que cantava, a primeira esposa. Atenta ao procedimento novo, Matilde, desconfiada e rebelde, memorizava a sequencia de apertões, puxões. Para ela, remeteu a ato erótico. Arrepiou-se. Sonhou com o gesto em sua folga.


A acupuntura auricular resultou, para Madame, em serenidade e mente clara durante vários dias. Mesmo sabedor da descrença da enfermeira, Wong Lam concedeu a Matilde a tarefa de manipular a orelha da paciente por alguns segundos, em especial o ponto que estabilizava o sistema simpático. Mostrou onde, como e quanto pressionar. A enfermeira, intrigada, realizou o teste. Madame choramingou, porém aceitou a medicação. A técnica seria repetida algumas vezes na semana. O fluxo da escrita beneficiou-se com o tratamento, feito drenagem energética. 


Os comentários que Madame teceu, durante os dias que seguiram, ainda eram alusão às severas criticas recebidas pelo grupo musical do qual José participava, sua performance em um sarau. Quasímodo e Uiara, foi a simbolização utilizada para representar José e Donis. Alguém da plateia compusera, em tempo real, um retrato dos cantantes. José amargurou-se ao ver a tela, e não deveria. Tão diferentes em estampa os homens do mar. Ao cantar, contudo, e o faziam de olhos cerrados, de alma, o possível monstro que o comandante sentia por dentro era mito das correntes nórdicas, encantatória força. Aegir. Ao cantar, José esqueceu-se de Alois Donis, de Santo Olivairas, escutou apenas, o som que produziam. As luzes, que nunca deixam de comparecer ao fazer musical, temperaram o momento, emprestaram polidez às interpretações. Os partícipes dançaram, riram, celebraram beleza. José, dono da trilha sonora, não o era da história. O bacalhau que ele provou naquela noite não teve gosto. O vinho lhe agastou. Se José tratasse seu psiquismo, entenderia o quanto estava se fazendo de coitado, para não dizer mais. 


Wong Lam, ao ler a passagem, sorriu. Consultou sua pequena biblioteca a respeito de símbolos, para entender a combinação entre o mito brasileiro e o deus nórdico. Pesquisou também sobre a natureza dos delírios e pesadelos de castração, os pontos de contato entre tais conceitos. A narrativa de Madame oferecia outros detalhes, alguns bem espirituosos, como o parágrafo sobre um manto de estrelas que recitava cartas suplicantes, épicas, obsessivas. Entre a contabilidade do quilo da batata, das fronhas alvejadas, o feijão pouco na lata, uma mulher anotou esboços de romance barato. Melhor isso que nada, assim dizia alguém, a suspirar na janela, eis a visão da senhora. É como pão velho para roer, quando se mora na rua, continuava. Inveja, ciúme, desejo de vingança, pouca energia para efetuar qualquer ação. O problema estava em se estagnarem tais sentimentos no próprio organismo, na mente. O desespero, que vertia odor, poderia destruir, lenta e dolorosamente, ou de rompante. 


O doutor sentiu, por aqueles dias, necessidade de oferecer ao grupo de enfermeiros literatura técnica, uma natural urgência de progresso. A que horas o grupo estudaria, Wong Lam nem imaginava. Lembrou-se, em especial, de uma capa de livro onde mãos e antebraços se estendiam por entre as grades das celas[2]. O conceito de impermanência das coisas, que fazia parte das reflexões do doutor, proporcionou-lhe sossego. 

Madame dormia quando ele lhe puxou sutilmente o lobo esquerdo em despedida; foi olhar a senhora dois,  que se encontrava agitada e rígida. Nada havia, na jornada, que durasse mais tempo que o necessário. Wong Lam ainda tinha alguns minutos antes de ir para a outra ala. Leu um pouco mais do caderno. 


José Gaetano expos, no diário de bordo, seu quadro clínico. Agarrou-se a equívocos, como hera em pinheiral. Cruzou insone a madrugada, dividido entre estar piloto ou bardo. Será que teria gostado de amar? De conviver no amor? O que sabia ele do amor? Teria gostado de ser músico? A tripulação renovada, a comercializar tecidos na presente rota, respeitou a introspecção de seu comandante e manteve distância. Aquela maneira de ser permitia-lhes indisciplina moderada. O homem do mar orava sem texto e isso era bom para todos.


Onde está ela, Amor, a nossa casa,

O bem que neste mundo mais invejo?

O brando ninho aonde o nosso beijo

Será mais puro e doce que uma asa? Florbela Espanca.

 

 

José Gaetano, em uma sexta-feira, experimentou entregar-se, submisso, ao tempo do senhor das vidas. Orgulhoso inveterado, pôs-se a digerir suas lições, enquanto em mar aberto. O marujo computou suas febres, o quanto eram atávicas. De alguma maneira, José procurou pela própria face. Ainda não era de todo maníaco. No limite, poder-se-ia dizer. A morte, com seu tic tac consolador, viria requerer seu corpo para alimento dos peixes, José o sabia. A alma seguiria, injunção do Universo, lúcida ou delirante, dependia dele. Saltaria os dínamos das galáxias, em prováveis fusões com asteroides, satélites. O momento, o mar todo diante de si, estava ali, bem, tudo era puro bem. O período regulamentar do fascínio se esgotara. Doravante, era assumir, haveria surto atrás de surto. Ou entregar-se. Por alguma razão, lembrou-se da Ismália de Alphonsus, também da Rapunzel, dos Grimm. Elas na torre, ele no mar.

 



[1] Filme dirigido por Yimou Zhang, 1991

[2] O sacerdócio psiquiátrico, Daniel Figueira

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