Hospital Casaredo 12

 


Por conta de um ensaio musical, um surto


Alev surrupiou cinco camisas-de-força das alas abastadas do sanatório. Madame havia despertado, vomitara sangue, voltara aos delírios. Atacara, mordera. Grunhira como fera. Ferira Matilde com um tabefe. Quisera correr, caíra. Apagara. Enquanto isso, vinte mulheres entraram em diferentes estágios de convulsão. Caos generalizado. Nesses momentos, Joana e Matilde se transformavam, uma em princesa do Daomé, a outra na andaluza que era. 

Adele surpreendeu a todos. Era algo superior a coragem. Ofereceu-se, mais uma vez, para tomar conta de Madame e das outras durante a noite, nas covas que lhes fizeram na areia. Os enfermeiros explicaram que poderia ser um período muito triste, com gritos, blasfêmias inimagináveis, excrementos. Que a maré subiria, não a ponto de soterrar, mas provocaria mais dor e agonia. Ainda assim, tomada de estranho transe, a jovem ficou com os enfermeiros durante as pancadas das ondas, que durou meia hora. Adele ajudou a cavar os buracos e sentou-se entre Madame e a senhora dois. Levantava-se a turnos, para olhar todas.

A noite chegou, abafada, eletrificada. A ordem era aconteça o que acontecer, não toque nas pacientes.  A moça ouviu até o amanhecer os rugidos ferozes, um desfile de falas perversas que abalariam o juízo humano mais consciente. Parecia a voz de uma cidade invadida por catástrofe. Cada um dos sete atendentes veio ter com elas naquela madrugada rude, a ver como andava o tratamento. Adele passou todo tempo a cantarolar canções portuguesas, em especial as que falavam sobre rosas. Ó rosa branca, delicada e pura; de rosa ao peito na roda. No teu poema[1]. Pela manhã, um fio de voz apenas lhe sobrava.

O doutor Wong Lam chegou quando a ala toda dormia, à base de láudano e clorofórmio. As mulheres do mar já recolhidas, lavadas e secas. Gaspare estava retraído no chão, do lado de fora da enfermaria, a cabeça entre os joelhos. As enfermeiras circulavam, mediam a pressão, consultavam batimentos, verificavam movimentos respiratórios. Ninguém dormiu naquele episódio, tampouco denotava cansaço. Wong Lam reparou no rosto ferido de Matilde, no alheamento de Adele. Na lavanderia, ouviu o furor dos esfregaços. O refeitório estava às escuras e o doutor gostaria de um café. Foi passar um para todos. Havia ingredientes para won ton[2]. Improvisou.

Um silêncio pesado no ar, mesmo com os atendentes todos ocupados. Não era possível omitir os fatos. Maria encarregou-se de por Wong Lam a par da situação. Foram juntos ver os pacientes homens, estranhamente tranquilos naquele momento. O doutor lamentou não estar com a equipe durante a ocorrência. A serenidade fora conquistada a duras penas, contou Maria. O médico sabia, não teria feito muito mais.  

Adele foi atendida pelo doutor. Ela poderia ser transferida para uma clinica especializada em desintoxicação. A moça pediu para ficar. Sentia-se protegida naquele ambiente, tinha atenção e respeito pela primeira vez em muito tempo. Quis, inclusive, ficar no mesmo cômodo de Madame, para ser ela a socorrer quando a senhora despertasse. O psiquiatra apostou naquele empenho, com os olhos adiante. A despeito de toda excitação, a moça passou bem, auxiliada apenas por um chá de erva cidreira. 

Cada enfermeiro foi ter com Wong Lam. O mergulho ou tratamento das ondas  deu o tom à manhã nova. Na enfermaria Madame, mesmo que a respirar, tinha os reflexos débeis. Preâmbulo para catatonia. Maria contrariou as orientações do doutor, de deixar a mulher em paz. Puxou para perto do leito uma cadeira e pegou a mão da enferma, como se fora um pássaro caído do ninho. Aconchegou aqueles ossos a mostra, um a um. Cantou perto do ouvido direito  A Far (o) um dia irei, madre, se vos prouguer, rogar que verria meu amigo, que mi bem quer, e direi-lh’eu entom a coita do meu coraçom. Muito per desej’eu que vesse meu amigo que m’estas penas deu e que falasse comigo, e direi-lh’eu entom a coita do meu coraçõm. Se s’el nembrar quiser como fiquei namorada, e se cedo veer e o vir eu, bem talhada, e direi-lh’eu entom a coita do meu coraçõm[3].

O caderno de Madame, encontrado a um canto, foi recolhido pelo doutor. A página em que ele caíra, um pouco molhada, contava sobre encontros pouco amistosos. Uma noite, a do ensaio geral para o sarau, um suor gelado nos cumprimentos, pó certo para as bocas dos cantantes, para engolir de um susto. Na cara de José,  expressão de pavor ou ódio gratuito. Ninguém é de ninguém e a música é de todos, assim o tocador de santur rezava. Haveria aqueles humanos brutos, a dizer que batalha inútil esta, sem acréscimo para a coletividade. Se a coletividade começa em um encontro a dois, a qualidade de tal química impacta, como que explosão, o humor coletivo. Um sentimento de posse, melhor dizendo cobiça, pairava na sala, como pimenta preta que dorme em caixote de madeira por muito tempo. Quando se convive com alguém, é preciso conhecer-lhe as ramificações, as amizades. Acabara de entrar no recinto um desses amigos.

 

ver um rio equivale a mergulhar numa grande corrente de mitos e lembranças, forte o bastante para nos levar ao primeiro elemento aquático de nossa existência intrauterina”. Simon Schama, poeta galego-português.

 

Um ensaio musical, o tempo de engorda do feto. Em geral, trata-se de um belo momento. O músico estudou, separadamente, a sua parte. Refina, pelo esforço, a sintonia ao empunhar o instrumento e tocam juntos, sem a interferência de pensamentos, palavras. Há quem diga tratar-se de jogo de xadrez, entretanto é ir além. Romper com regras legendárias é por fim à partida, de maneira desleal. As emoções são, todas, traduzidas em som. Alegria vira brilho metálico, calor no sopro, o grave da membrana, a agilidade com os dedos. Tristeza é asa-de-telha, som recolhido, aveludado. Raiva, tropel, cabelos ao vento. Medo, a pausa. As inteligências e os bancos de memória são placenta, campo harmônico. Acontece, às vezes, de haver confronto entre os pares, vaidades que se imiscuem na cena e nessas horas a fantasmaria pessoal se farta de impedância. Não se gestam grupos musicais sem que haja afinidade e é difícil ajustar as limitações de uns e outros, carece tempo, prática, cumplicidade, ou então aborto, nem sempre espontâneo. A Música expõe o discurso erradio, não se pode disfarçar. Importante: não se permitem pessoas estranhas ao ensaio sério. Menos em um grupo recém alicerçado, cujos laços são imperceptíveis. 

 

A razão para aquele homem estar na sala de ensaio não se elucidou. O certo é que José se sentiu esvaziado só de o avistar, partiu-se-lhe o coração e a vontade. Um milharal, atacado por corvos. O que se pode afirmar, sem carregar a narrativa de pesar, é que o sujeito era desses arautos que trazia, sem o saber, alerta importante. A hora e o local é que inviabilizaram sua missão. Que seja. De toda sorte, o gajo ajudou a José Gaetano crescer na dor, verdadeiro lírio d’água. O sujeito falou a verdade crua, nada a ver com o fazer musical, apontou direto ao sentimento doentio, que contaminava as ações do comandante, aquela paixão torturante que escapava pelos poros. José, sozinho, não teria ferramentas para reagir com honradez. Uma aparição delinquente o temerário, em capa preta, assim posou o invasor, a tumultuar o terreno sagrado. O Mefisto deveria ter sido levado em conta, poupar-se-ia tempo, energia, cortar-se-ia o mal pela raiz. Bateram de frente, sem um único olhar ou verbete, José e a sombra. Cruz de Caravaca.

 

A presunção é como parma estragado e José andava cego dela. Naquela noite, o marujo deu também com o próprio túmulo. Quando amealhara, na jornada, algo muito querido? Algo para chamar de seu? Do jeito que, soberbo, aguardava? A consciência sinalizou estás tomando rumo incerto uma vez mais, comandante, analisa se é isso mesmo o que esperas do enlace. A vida quer mais de ti. Tu não és aquele pirralho rechonchudo e sem mãe, pachorrento e chorão. Toma tenência. Música, profissão, tudo ata e desata. Lembra-te de Amalec Bar Aquis[4], de como agiu mal quando lhe tomaram os bens. O coração está para um lado, o pensar para outro. E a coletividade perde um bom momento de beleza. Estas constatações podem desarmar os bravos mais bravos, caso não definam bem suas metas. Não apagues o farol. Ou a profecia da tua mãe se cumpriu. Senhora Sant’ana, ao redor do mundo. 

 

Entrar areia era mote bem apropriado. Estragou-se a apresentação musical. O tabaco-de-caco turvou o recinto. Acabou-se o que era doce. José teve pena e seu canto soou amargo. O pensamento, a gente o salva na cultura. O sentimento, a gente o salva nas cantigas. A voz sofreu, mormente o coração. O local de querela, na noite seguinte, era diante de audientes aparentemente inocentes. O farol retomou seu bailado. Faltava azeite às peças. Cruz de alça.

Maria era forte o suficiente para acolher Madame nos braços. Ninou-a por cinco minutos, a murmurar a mesma melodia com que lhe afagara a mão e, ao final do tempo regulamentar, deu as três pancadinhas tradicionais nas costas e devolveu o fardo à cama. A senhora moveu-se devagar, fez uma trouxa do lençol que a cobria e a envolveu entre os braços, um bebê. Ficou assim com o pano, em posição fetal. Voltara à jornada, resolvera participar outra vez da franquia, farol atento.



[1] A canção da rosa – Antônio Pinto Basto e J.de Vasconcelos e Sá; Rosa Branca – José de Jesus Guimarães e Resende Dias; Do teu poema – José Luis Tinoco

[2] Massa fina de farinha de arroz e ovos.

[3]  Xohán de Requeixo – A far’um dia irei. Nesta (...) cantiga, a donzela dispõe-se a ir de novo à ermida de Santa Maria de Faro, se a mãe deixar, esperando aí encontrar o seu amigo, e falar-lhe da mágoa que sofre longe dele. E esperando também que ele se lembre de como a deixou apaixonada e venha ao seu encontro.

 

 

[4] Caminhos de Jesus – A Confiança em Deus

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