Hospital Casaredo 11


 

Confronto  


Foi como rastilho de pólvora. Deram pela falta de Madame no meio da tarde. Não fazia cinco minutos, Joana a pusera na cadeira defronte uma janela. Sempre que um paciente sumia, o destino era invariável: furtado para algum experimento perverso. Para onde a levaram? Nenhum enfermeiro poderia deixar seu posto naquele horário, era padrão o desencadear de episódios concomitantes. Com o calor que fazia, havia ainda mais probabilidade para desarmonia. Quatro, dos sete atendentes, na ala. Os demais, cumprindo ordens em outros setores. Adele, uma jovem que chegara à Assistência há algumas semanas, vítima de coma alcoólico e abuso de barbitúricos, ofereceu-se para procurar a senhora. O desespero era tal que a equipe a deixou expor-se pelos corredores. Uma decisão de consequências imprevisíveis. A moça se concentrou por alguns instantes, como se abrisse um campo lúcido diante de si. Saiu em linha reta, em direção à ala onde se aplicavam eletrochoques. Joana chorou. Madame não pudera conduzir a cadeira pela escada. Estava de pé, parada. Vacilava, a olhar os janelões.  Não havia vivalma que testemunhasse aqueles dois trapos humanos à deriva no pátio. Adele usou de todas as simpatias que conhecia, a fez sentar-se e a senhora obedeceu. O caminho de volta foi cumprido a passos rápidos. 


“No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar”. Alphonsus de Guimarães. 


Então o surto veio. Madame parecia sufocar, debatia-se. Adele, sem pensar, sentou-se-lhe ao colo e acolheu a senhora, firme. Reproduziu, como pode, a técnica de Maria. Cantou-lhe ao ouvido vendia flores, mas os seus amores, jamais os vendeu[1]. Ficaram assim por alguns minutos, Madame e ela. A calma voltou, ninguém no corredor. Adele ia oferecer os três tapinhas nas costas, quando foi surpreendida. Uma confusão de braços, que a agarraram pelo pescoço. Um beijo intenso, profundo. Foi isso que Madame lhe deu. Quase esgoelou Adele, feriu seu lábio, língua, sangrou a gengiva. Quando a agressividade arrefeceu, a senhora desmaiou. Parecia até que morrera. Adele agiu ainda mais rápido. Fechou as portas de comunicação entre os corredores, conforme os atravessava. Ao chegar à enfermaria com a cadeira, desabou e só não bateu a cabeça porque Joana pode ampara-la. Nunca haviam abordado Adele com tanta força, nem quando fora abusada em certo cais.   

Gaspare soluçou por mais de quinze minutos, a cabeça entre as mãos. O caos exigia sua presença, sentia-se vencido, contudo. Javier, sentado a seu lado, esperava. O colega precisava de ajuda, tanto quanto os pacientes.  Recolheram-se ao sanitário, para não causar ainda mais agravo.  Há alguns meses, crises dessa monta, não as havia na Assistência. Lá fora, Maria controlou ao máximo os danos. Algumas senhoras, sintonizadas com o ambiente, entraram em rota de colisão, gritavam alarmadas, apontavam vultos, vozes. Adele foi muito útil durante toda manobra de contenção. Apenas clorofórmio no armarinho de remédios naquela tarde. Era como derrubar touros.

 

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro. 

Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais. Adélia Prado

 

 Vamos leva-las ao farol, propôs Javier. Deixar que as ondas lhes fustiguem. Não é uma ducha, são ondas, pesadas, mas ondas. Puxam, levam a dor. Vamos deixa-las passar a noite na praia, para encontrar o céu, para domar o mar. Gaspare olhou o colega, atônito. Compreendeu. O tratamento era hostil. Sem remédios, intuíram que serviria. Deixaram Maria de sobreaviso. Precisariam dela pela manhã, com uma banheira morna e suas técnicas de ninar. Atenderiam cinco senhoras em estado grave.

 

 

[1]  Julia florista - Joaquim Pimentel e Lionel Villar

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