Hospital Casaredo 10


Orgulho e preconceito

 

“Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio”. Drummond

 

A sigla F314, Madame escreveu a um canto da página. Escreveu ainda transtorno afetivo bipolar, transtorno de personalidade dependente, bordeline, transtorno de personalidade antissocial. A cruz portuguesa, desenhou-a ao lado. O caderno ficou relegado, sob o leito, por muitos dias. Cada vez que a vassoura passava, ou se fazia menção em junta-lo, Madame reagia, histérica. Às vezes a encontravam sob a cama, balançando o corpo para frente e para trás, ao lado do caderno. Era difícil tira-la dali. Madame acabava saindo por si, precisava da comadre. Então tinha febre, estertorava, jogava cobertas, colchão, camisola, gritava. Escapou da contenção por piedade. Matilde a teria posto no ‘refúgio’. Madame voltava ao leito, repetia os episódios todos. Ao menos em algum momento ficou em silêncio, seus modos deixaram de alarmar as demais pacientes. Matilde arrefeceu. Por ela, a contenção daria jeito. Wong Lam quis saber detalhes do novo comportamento. Gaspare lhe contou sobre os novos registros. Aproveitou para falar das próprias dores. 

 

O doutor contou, baseado na situação, a lenda do Akai ito. Um homem andava pelas montanhas, ia visitar sua noiva. Um ancião se apresentou como o deus Xia Lao Yue. Contou que tinha o poder de ligar, por meio de uma corda vermelha invisível, almas gêmeas. Avisou ao pretenso noivo que a moça a quem ia encontrar não era sua completude. Havia um bebê. Era àquela pessoa que a corda o ligava. O rapaz não acreditou, sentiu raiva. Usou fogo, encomendou um incêndio criminoso para se livrar desta predição. Casou-se com a noiva, foi infeliz. Não teve filhos. Enviuvou. Encontrou outra mulher. Uma órfã, salva de um incêndio pela mãe, que a embrulhou em um saco molhado. Wong Lam nada mais disse. 

 

A língua de um lugar é pensamento organizado, mesmo aquele proferido por um estrangeiro. Assim iniciou as orientações da terça-feira o doutor Wong Lam. O grupo estava diante do mar, após praticar Lian Gong. Creio que está dando certo cada um dos senhores concentrar-se nos detalhes de sua predileção para tratar as pessoas. Perseverem com observações. Achem maneiras de registrar os mapas que evoluem. O envelhecimento humano não é infortúnio. Sejam sinceros, diretos. A simbologia que usarem demonstra conexão com as almas, com desejo de curar. Ai entendemos como melhorar estratégias, como recuar, caso seja necessário. Alguns humanos viram adubo, grande maioria. Pensem sobre monturos, o loto que cresce nas gretas. Ai descobrimos que o fio vermelho une muitas coisas, não somente de dois em dois. As combinações são infinitas. O doutor saudou-os e encerrou o encontro.  Um enfrentamento importante depois do café o esperava: a diretoria insistiria mais uma vez em livrar-se dos pacientes da Assistência.

Madame participara do exercício na praia, aparentemente distraída. Com o dedo mínimo da mão direita sobre o colo, seguira os gestos terapêuticos. Javier ficou perto, deixou-se observar por ela. A senhora tinha um olho na técnica, outro nele. Por alguma razão além das palavras, Javier sabia que a senhora reconhecia a presença dele e tinha-lhe grande respeito. Não era apenas a lembrança de alguém. Era admiração. Javier fez um sinal aos demais. Ficaria com ela mais um pouco a beira mar. Sentou-se na areia, ao lado da senhora. Logo o lápis, que fora preso a um fio vermelho na espiral do caderno, passou a fluir. A mão contornava as ondas. Um pouco depois, Madame passou a anotar, furiosa.

 

Estavam na Roseira Santo Olivairas, o Donis e José Gaetano, este em vestes pesadas, escuras, um disfarce. O sarau em vias de acontecer. Não haveria remuneração para o trabalho e isso era o de menos. Nenhuma necessidade nomeada de reconhecimento, sequer de estar naquele encontro. Cruz de Caravaca. A estreia do Donis a cantar ao lado do marujo já acontecera. José Gaetano, na sombra, sonhava fios vermelhos atados a tornozelos. Estava ciente das falhas de execução musical que viriam, o trabalho diletante, esfiapado. Mesmo assim, confabularam a respeito de projetos, patrocínios. Em um dos ensaios, a frase foi enfaticamente sublinhada: não havia quaisquer compromissos naquela relação. Se José fez ouvidos moucos – e não o fez -, era dolo seu.  A língua de um lugar é alma materializada. Muitas vezes emaranhada. A José Gaetano, sua voz e o santur não bastavam, ele se esforçava, afinal, em fazer amigos. As letras das canções anulavam mágicas. As melodias falhavam em seu emprego terapêutico. Poder-se-ia dizer que era uma batalha egóica, os velhos esbarrões alfandegários. Como alguém pode aceitar que veio passar a jornada em soledade? Imagens estilhaçadas de uma juventude que há muito dera lugar a outras maldições. De onde tamanha desilusão, inconformação? A Sor e a Julieta esperavam no cais, prontas para seguir em frente.

 

Javier estava perto de Madame, o suficiente para ser tocado. A mão fria e magra pousou em seu ombro. A paciente olhava o mar e lágrimas escorriam, fartas. Sem movimentos bruscos, o enfermeiro tocou-lhe a mão, depois a segurou por breve tempo. Soltou-a como quem se despede, à maneira de Maria, três tapinhas no dorso. Então ergueu-se, virou a cadeira e começou a move-la com vagar pela praia, cantarolando em basco, algo como haver mais coisas entre o céu e a terra dos que as mulheres esperam. As janelas do sanatório podiam ser vistas à direita, o sol à esquerda. As ondas batiam macias, longe, na enseada. A nordeste, algumas nuvens se formavam, talvez chovesse à noite. Não havia lugar melhor para se estar, cuidado melhor, jeito melhor de morrer, refletiu Madame. Que parasse de chorar. Tudo se arranjaria. Tudo ficaria bem, pois tudo é bem.

 

“Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce”. Neruda


A ideia fixa se deu a escrever mais um pouco. Madame, de volta ao leito, fora preparada por Alev paro o repouso noturno. Um momento e só, desses que passam assim que a travessa do bacalhau se esvazia. Tomou do lápis e contou que permanecer em silêncio concentrado era outra forma de disfarçar a elação. Era o único escudo em que José confiava, ou então desembainhar a espada. Desde sempre, ele soube que não sofreava suas emoções. Atrapalhava-se e era soterrado por elas. Tinha a ver com provar-se? Do que era capaz, afinal? Socializar? Exibir-se? Superar-se? Não havia fio vermelho que desse conta das ambições. O que quereria José Gaetano com Alois? Em que estava, exatamente, a tropeçar? O período de enlevo, diversão, passou. Os encontros na hospedaria para tocar, só os dois, José Gaetano procurava superar. Fim de namoro, musical que fosse. Causara-lhe tamanha satisfação aquele arremedo de conúbio, que abrir mão do som representava luto fechado. A sensação de perda era insustentável.  Não se permitia sequer lembrar do capitão-mor. 

 

O ambiente em que se encontraram, na noite do sarau, era suficiente. Alois e seu sorriso. Conhecidos, irmãos, tios, sobrinhos. Para José Gaetano, o público anônimo de uma soirées. Não havia espaço para fantasias. Era um recital, a audiência permanecia em silêncio, respeitosa. Só quem já pisou em palco de fado sabe a tensão que se cria nesses espaços. Tempos mais tarde, José Gaetano entendeu a importância da improvisação musical. O tempo vale o quanto soa.

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