Hospital Casaredo: Prefácio

óleo, Carlos Alberto Santos




Prefácio 

 

“Já neste tempo o lúcido Planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta he estava o Deus
Nocturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram”. 

Os Lusíadas. Canto II

 

Terçanabal, Promontório de Sagres. Acantilado majestoso, muralhas, canhões, silêncios e horizonte marinho, até onde os olhos alcancem. Um loto, engenho dos empreiteiros, tempo de construtores anónimos, anotados em diários de monarcas. Eis o que aguarda atrás da rotunda, para ilustrar o prefácio destes cadernos de anotações da senhora. 

 

Madame desenhou um ponto após a última frase, com esmero. Sorriu, lápis na mão, a brochura apoiada na saia de gaze encardida. As frases, rabiscadas no papel meio engordurado sorriam também, tantas vezes reescritas que quase não se salvava uma. A menos que alguém se interessasse por elas.

 

A construção da escola, contou Madame, a de Sagres, inspirava refúgio, alimento, visão privilegiada para os senhores do mar, para viajores convidados, estrangeiros em missão de paz, também os que tem fome de batalhas, borrascas, mareações. Abrigava marinheiros assombrados por monstros da Lemúria e da Atlântida, pela desilusão do escambo, pelas memórias perdidas, sujeitos carentes de um leito e roupas limpas. Cabeças de vento e livros contábeis, a mercê de investidas às quais os médicos não tem acesso. Hasteavam bandeiras os aratus laureados, de todos os quadrantes. 

A enfermaria onde dormia Madame era suficientemente clara e cheirava a chorume. A janela, alta, ao lado da cama, deixava ver céu e mais céu. O som dos pensamentos baralhados espraiou-se, céu afora. Amanhecia. Camões argumentaria menina, eu já disse os mares, de outro modo. Há quanto tempo a mulher mofava naquele sanatório? Olhou suas vizinhas de dormir. Uma delas gemia, pulsos amarrados para não arranhar o próprio rosto. Este já sofrera autoenucleação. O amarramento, antes de apaziguar, afligia os atendentes. A paciente fora deitada diretamente no aço, sem colchão ou qualquer outro aparato acolhedor.

Desbravadores, desejosos de entender as normas do bem navegar, ia descrevendo a senhora, os marujos cantam juntos, sentados sobre caixotes, os dados rolam e a botija de bebida passa de mão em mão. Como se tais homens não soubessem, logo ali, onde nasce o sol,  haverá montanhas aquosas para beijar, da crista ao salto e nova crista. Quantas vidas? Quantos Cabos São Vicente? Quase sempre amarram nós inimagináveis estes homens baleares. Ah, e desfilam lindíssimos velames, maneja-se o manche, as redes, arpões, moedas, sabres e guitarras. E se canta bem. E se usa casaca e insígneas e botões. Consideram-se livres, donos das águas, faca entredentes. 

Madame conchegou-se ao travesseiro úmido, para dispor da perspectiva. Um pouco de paciência que as evidências vem, no compasso das fumaradas de um charuto de primeiras notas. Como seria bom, ter um agora, também uma botija de rum. As providências para situar a prosa avançam, escavam-se enigmas de tradução nas frases atropeladas, barrocas. Tenham fé, há esperança.

Trata-se de aventureiros sensatos, Madame sorriu, apesar de todo revés do cenário. Eles sabem navegar. Dominam mais ou menos o manche. Alguns tem família de muitos filhos, os meninos a olhar mar aberto desde o peito, senão desde o ventre materno. As meninas ficam na orla, a cerzir as meias, a esperar. A pátria, vizinha do Atlântico e cortada por alentados rios, conclama este padrão. Pode-se defender suas terras a olho nu.

As paredes erigidas do promontório, a conformar o sal e os gorjeios da marinha, sugerem uma infinidade de cálculos e trajetos possíveis em um mundo tomado ao estilo de um prato. Milênios a conviver com a Fossa das Marianas. Há, nesta tentativa de narrar fatos, um encontro obstinado entre vilões. Outro sorriso. Tal palavra, vilão, põe sentido, é de ofertar alguma surpresa, que aqui se vai contar história chã. Falos robustos deslisam sobre as águas, o assunto é o mar do deslumbramento. Sob as águas, os cabelos da Medusa, a ligar ali com acolá a areia.

Madame largou o lápis. Alisou o lençol e o barrado da blusa,  observou que lhe faltavam três botões e ficava à mostra o seio direito, murcho. Teve piedade de algo e chorou. Eram cinco horas. Seria Aldebarã no céu? Então, achou um jeito de amarrar a gola puida e não viu mais o peito. Teve vontade urgente de urinar e escorreu do leito. De gatinhas, moveu-se até uma comadre que ficava perto da porta, não sem antes esmagar com a mão uma barata. Depois de aliviar-se, teve de esperar até que alguém viesse coloca-la na cama outra vez. Quando Gaspare apareceu, trouxe junto uma cadeira-de-rodas meio torta, sem um dos braços. Era hora de banhar e tomar sol.

Flor de Lotus com preenchimento sólido       

 

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