Hospital Casaredo 4

 



4 - Terapias alternativas


“Na manhã seguinte, dia 18 de novembro, já refeito das fadigas da véspera, subi à plataforma no momento em que o imediato pronunciava a sua frase quotidiana. Veio-me então a ideia de que ele devia estar informando sobre o estado do mar e que as suas palavras significariam:  “Nada à vista!” Vinte mil léguas submarinas.

A vida motiva entrar por corredores, pistas, sacrários, floreiras, sumidouros, aquedutos, abismos, desertos. A alma inventa um mar. A página fora destacada do caderno brochura, jazia sob a cama de Madame. Parecia um trecho de sarcasmo. O abismo inventa um mar, recitava ela, e o marujo seguia em adulações ao seu amigo Donis. Para José Gaetano, alguém ser cortês com ele causava pasmo, uma concessão da qual ele não se sentia merecedor. Então, ao receber cartinha daquele homem imponente, que José interpretou como quis, lhe cresceu no peito uma fogueira generosa, posta em versos assim escrevinhados no rompante, sem olhar métrica, escanção ou rima ou implicações futuras. Tudo, para retribuir a gentileza, em nome do fogo da poesia, assim José acreditava.


Gaspare suspirou ao ler a folha de papel, abandonada naquele chão que nunca estava limpo. O fato é que alguém amorável, ao lado dele, no dormitório tumultuado, estava repleto de pontos mortos, traumas, cicatrizes mal curadas. Isto era um desperdício. Loucura é livre-arbítrio? São recursos toscos, utilizados pelo organismo para resfriar e conter as próprias caldeiras? É descerrar velas da própria fragata? Será que alguém possuí, mesmo, o direito de desistir da jornada? Era isso que o enfermeiro via, renúncia? Resistência? Ou as memórias precisavam ser descartadas, de qualquer maneira, e fim? Ah, poderia ser raiva, derramada pelos papéis, para que não virassem ressentimento. 


Sabendo que os pensamentos não atrairiam companhia naquela sua folga, Gaspare despiu o jaleco, a propósito, sujo por uma golfada. Pôs um lençol sobre a senhora que dormia. A cama, dobrável, compunha um z sob outra mulher inerte. Cabeceira alta e mais uma dobra na altura dos joelhos. O corpo ficava moído, fora a melhor posição encontrada para gerir a circulação sanguínea da paciente. Madame ‘escapara’ mais uma vez de um surto. Escapara para onde? Para que lugar sombrio dentro de si? Um lugar de orgulho, o enfermeiro pensou. Prognóstico ruim. Gaspare, por algum motivo, imaginou lesmas do jardim, a invadir um porão. Precisaria meditar a respeito. Deixou o caderno ao alcance da mão, embora Madame só voltasse a dar atenção a ele dias depois. Se a paciente entrasse em catatonia, vegetaria por muito tempo. Não era um caso que despertasse a atenção de qualquer peregrino daquela casa. Mais um número em desgraça, relegado ao tempo, a piedade, ao anonimato e a sumir com a morte. A morte, no sanatório, era querida e desejada como ser supremo, levava para nunca mais, apagava dos autos os ingratos. Tais ingratos, contudo, garantiam tempo ocupado e algum soldo. Era curiosa a forma de ajuda instituída naquele ambiente. Gaspare nunca soube de eutanásia praticada ali, mas que havia, havia. Suicídio induzido, mais comum. Camundongos humanos. A ala dos idosos dementes era a mais triste.


Nos últimos tempos, reunira-se na Assistência um grupo insólito de atendentes, em substituição às freiras que geriam o setor, transferidas a um mosteiro distante. O grupo trabalhava por vontade própria. Era vantajoso para eles, elevava o padrão de seus estudos, melhorava em alguns centavos os rendimentos e, no mais das vezes, apenas dobrava seus turnos. Para alguns enfermeiros, vocação. Ali se juntaram sete deles, tocados por profunda humanidade e senso moral. Trabalhavam sem supervisão, ou melhor, elegeram uma chefe, que os conduzia com nenos. Ela lhes compunha escalas e distribuía tarefas, de acordo com as aptidões. Respeito pela velhice, todos comungavam deste padrão. Um tempo bonito, conquanto tamanho desamparo.


“Deserto de águas sem fim.

Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim”? António Botto

 

Já em seu cubículo, asseado, a lutar para não fraquejar perante a dor alheia, Gaspare desenhou uma caravela portuguesa. Imaginou o trajeto da expedição. Um parágrafo do texto voltava-lhe, a todo instante: O mar acondiciona a vida, cria as poças à beira da praia, arranja tudo para que os seres se manifestem. Todas as ondas, o mesmo sal. Deixemos estes corsários a cantar. Sempre se espera oferecer uma sala de visitas aconchegante como abertura para os relatos. Lareira acesa, bons aromas, música ambiente e bebida quente. Um par romântico, beijos e lençóis, janela para o mar. Depois, conflito. A referência a um instrumento musical, o santur, plantou uma ideia para terapia na alma de Gaspare. Antes de dormir, ele desejou que Madame adiasse ao máximo uma próxima crise. 


Novas páginas apareceram, rasgadas sob o leito. Gaspare tratou de as emendar. Uma delas descrevia uma nave, vinte e cinco toneladas entre madeira e cordames. A Sor. Capacidade para cinquenta tripulantes e passageiros, mais carregamento de quinze toneladas. Vinte e um metros de comprimento, três metros e meio de altura, dez metros de mastro, inspirada nos projetos náuticos italianos. Sor, contração do nome da Ponte, no Alentejo. Foi batizada com um litro de ginjinha. Os cálculos apresentados devem ser corrigidos em função das tonelagens, visto que, no tempo em que se erigiu tal maravilha da navegação, a medição era feita pelo número de tonéis que o barco podia carregar em relação a cada homem a bordo. Construída às margens do Tejo por mestres barqueiros experientes, incógnitos, diz-se que sem plantas ou maquetes, a Sor pertencia ao Conde D. Himeneo de la Fambula e foi arrendada a José Gaetano, para que este fortalecesse relações mercantis na Rota das Especiarias, via Arg-e Bam, Calicute e Mediterrâneo. Secretamente, o conde dava de presente um barquito ao seu pupilo. As moedas que provinham dos escambos, o nobre dava sempre jeito de as devolver, em forma de víveres e outros mimos.


Quando o corsário fez a primeira expedição em comando, contava vinte e seis anos. Recebera na ocasião, de El Rey em mantos, o título de fidalgo, além de alguns contos de réis por bravura em tormenta. O feito lhe custou enfraquecimento da perna esquerda devido a uma torção, além de compromissos com almotaçaria. Não que José Gaetano se sentisse importante por se ter mantido firme ao leme com as ondas lhe dobrando o lombo. Se El Rey entendeu que trazer o barco a salvo, não sendo o corsário possuidor de comanda era motivo para titulo de nobreza, quem iria refugar. Que viessem as insígnias,  as câimbras, as taxas e as alfândegas. 


Antes disso, José Gaetano trabalhara em todos os subpostos que as naves oferecem. Desde os doze anos, como será detalhado mais adiante. No começo, o corsário não era afeito ao mar. Engulhava, tinha preguiça ao contato com muito sol, irritava-lhe o sal grudado à pele, mais quando tomava umas bastonadas. A roupa sempre úmida, a escassez de alimento e, em especial, o excesso de contingente em espaço tão pequeno, além do medo que lhe picava, das baratas e do escorbuto. O fedor, com isso se acostumara. A mãe, falecida muito cedo, era fixação para o grumete. Como não tivera, depois dela e nem com ela o aprendizado do respeito por si, José Gaetano seguiu a jornada a acreditar que qualquer aceno nesse sentido, o de alguém lhe distinguir, por segundos que fosse, era o fim do mundo. Um acontecimento!


Há os que torcem por bons prognósticos. Há aqueles que já o predisseram, José Gaetano, inviável. As tempestades no mar debelaram aspectos importantes do comportamento deste senhor. O marujo podia transitar em público, mesmo em pleno delírio. Sonhador, o homem depositou nas grandes vagas seus impulsos, suas fúrias de curto sentido, no geral dirigidas a si. Ao experimentar o prazer da tormenta a meio, da tormenta concluída, José Gaetano aprendeu a suportar suas elações, mas nem sempre. Gaspare interrompeu a leitura para anotar em sua prancheta o conceito dependência emocional e escreveu ao lado verificar. Continuou a ler. 


O pôr-do-sol brindava José, dia após dia, com um mel utilíssimo à voz e ao que a pena lhe deixava escrever. A propósito, foi Simón del Pilar, um mercador espanhol, quem instruiu o corsário nas letras e cultivou nele o afeto pelos livros. Pajem na ocasião, José andava pela Santa Catarina a gritar ordens de forma tão melodiosa que encheu os ouvidos do Pilar e também ao seu coração carente de um filho. O senhor del Pilar sofreou José Gaetano como se treina um cão, com petisco e beliscão. João Afonso d’Aveiro, chefe da Primeira Lusa, um ano depois, ao ver o grumete às voltas com o santur, deu de ensinar-lhe os fundamentos da música, aos quais houve adesão, apesar das mãozinhas atarracadas. A voz daquele menino era um estouro, ria o senhor João Afonso. Com essas atividades, José Gaetano  expulsou a ideia de meter-se sob as ondas e sumir.  De sopranino, fez-se barítono. Demorou muito até que se atrevesse ao estado diletante de cancionista, poeta, escritor, ou algo do gênero. 


À tarde, no pátio interno, Gaspare fez a experiência pela primeira vez. Pôs um fone de ouvido muito leve em contato com a pele da senhora. Esperou. Madame se manteve quieta. Para evitar acidentes, o enfermeiro reteve consigo o gravador e acionou o botão. Eram melodias executadas por santur. Os olhos de Madame se fecharam e escutaram. Dez minutos depois, Gaspare deslizou o fone até o pescoço dela. Madame não demonstrou reação, porém não dormia. Entrara em transe.


“Azeite extravirgem, em excesso,

E tomate, para um certo tom carmim.

Pronto, é comer e ao céu ter acesso”. JLSantos

 

Chegara outra carta ao estilo das outras naquela tarde fria de agosto, quando os termômetros anunciavam o outono. Assim o cabeçario, em mais uma folha solta sobre o lençol de Madame. Um outro chefe de fragata, extraviada esta da esquadra do Donis, conseguira aportar no mar de Omã e a missiva, endereçada a José Gaetano, ficara sobre uma mesa de cabine. Foi surpresa para o senhor Salastra topar com o corsário. Ah, tenho informes do Donis para ti. De onde vens quis saber José Gaetano. Fomos tomados por uma tormenta e nos perdemos. Eu pus-me no rumo da Ursa Maior e vim dar cá, pois que a Cecy adivinha a costa.  Vai-me um prejuízo substancioso desta vez, tínhamos um bom carregamento previsto na Costa da Guiné. Quero ver se cá faço algum escambo que seja, para não retornar a Lisboa de mãos postas. José Gaetano puxou o envelope do tampo onde equilibravam dois canecos, de modo casual. Por dentro, lhe ia um tropel de búfalos. Mais duas ou três amenidades e afastou-se. Dois rios. Escapara com vida de mais uma surra das ondas aquele gaiato do Donis? Que encanto era este, ó Poseidon? 


Gaspare, pensativo, suspeitava. Houvera olhares, toques, encontros presenciais, conversas, além das cantorias. Algum componente sexual sempre há em encontros humanos. Tensão não significa consumação. A expectativa do intercurso, contudo, inconsciente que seja, é algo para se levar em conta. Uma vida de suspense. Este fato, uma paixão, envolveu Madame de alguma maneira? Triângulo amoroso? Tratava-se, o conteúdo de seus três cadernos, de memorial? Ou era apenas fábula, farsa? As hipóteses ofereciam proposições de pesquisa e deram, de alguma forma, alento à vida reclusa do enfermeiro. Ele buscava afinar técnicas alternativas para tratamento de caduquice, para que ele mesmo não acabasse insano. Houvera partilha magnética intensa entre os homens da narrativa. Se mulher envolvida, atenção. Até o momento, o encontro não significou encanto correspondido e aqui assentava-se a cisão. O outro queria o um, mas o um poderia querer a um terceiro, ou nada, somente cantar e ir embora. Difícil e simples equação, razão de existirem Helenas, Medeias e Marias e Medusas.


Dois rios. Era isso o que o bilhete talhara. À beira do cais, os pés de José Gaetano aninhavam gotas de sol. Uma confusão de condutas ia peito adentro, timbres ora ásperos, ora a fímbria de uma asa. A Senhora do Desterro ouvia, da outra margem, alguma murmuração. Ansiosa experiência, e este é o sintoma. Vontade de ter alguém, que mal há nisso? É a música que nasce, jangada de poesia? Ao pé da página, jaziam os versos, as mesmas duas letras como rubrica. A resposta do corsário, sem síntese ou sentido seguiu, também pelas mãos do Salastra. Se chegaria ao destino, José Gaetano não podia prever. Se o folgazão do Salastra violaria o envelope, menos. Não importava, eram códigos, nem José os compreendia. Sossegou, era mensagem ruidista, resultaria silêncio. Gaspare fechou o caderno e juntou seus papéis na pasta. A página que estivera sob o leito, onde se lia dois rios, ainda estava úmida das lágrimas da senhora. O enfermeiro refletiu sobre o estado de coisas das outras duas mulheres que observava. Ele as lavava, alimentava, levava-as para o sol. O mutismo delas, olhar vazio. A fúria da mulher mais alta, a força com que atacava quando tinha os delírios. A terceira, sempre descomposta, por mais que se a amarrasse. Quando Gaspare foi admitido à equipe, ela já havia extirpado o próprio olho, logo após a partida das freiras. Ninguém comentava o assunto. Alguns enfermeiros choraram no corredor após socorre-la, era tudo o que sabia. Os versos que lhe vieram como lembrança não eram exatos. Gaspare apreciava a escritora Silvia Plath, sentia suas as expressões dela. ‘Fendidas em negro, feito besouros, frágeis como cerâmica antiga que um sopro faria em pedaços, as velhas se arrastam para o sol das rochas. Ou se escoram contra o muro. As pedras guardam algum calor’.


Surpreendente o trecho, escrito naquela noite gelada de janeiro. Quanto Madame sabia de sua condição? Consultara algum profissional? Estudara? Ela perguntava como se cria uma síndrome, tu sabes? Uma ao menos, das constantes na CID, F23, F23.0, F23.1 e a aumentar o número de sintomas. Inventam-se mazelas das coisas banais, supõem. Algo que nasce a partir do primeiro olhar da mãe. Ou antes, e para isso é preciso desafiar a ciência, a crença. Gaspare continuou a ler, comovido. Toda mãe quer, quando quer, o nascimento de um herói bravo, destemido, que domasse o mar. O comandante não era partidário de sobrecarregar as mães pelo insucesso de seus rebentos. José Gaetano estava encurralado, a dor era mais forte que ele. Aterrorizou-se por se afeiçoar ao Donis, depender dele, esperar resposta positiva para um sentimento inexplicável. E, nesse tópico, um delicado argumento caberia, José queria desculpar-se. O texto seguia. Já cantara um poeta do Brasil: os cabelos, bichos ferozes, são soltos à noite e o que sobra, para sentir, é o cheiro da blusa deixada ao berço. Dai nasce uma síndrome ou a compreensão de sua causa. Procurava a mãe e encontrou o pai, alguém lhe disse. A instabilidade emocional de José, dor recorrente, era provocação suficiente, razão para suportar o abandono a que se julgava objeto. Para alienação, um trapiche. Havia coisas para saber que José custaria a somar.


Outras folhas soltas, tentativas de reflexão, descrição de estados de ânimo, estratégias, armadilhas, frustrações. Em alguns momentos, uma frase ia se completar três paginas à frente. Muitas histórias acontecem dessa forma, como se principiassem a meio, terminassem no pródromo. Madame narrou conversas entre o comandante e passageiros da nave. Um dos diálogos mencionava um tal Galilei, a quem José Gaetano admirava, o que divulgara escritos sobre experimentos com um objeto chamado telescópio. O homem do mar sorvera as ideias do Mensageiro das Estrelas como quem renasce das cinzas. Fascinou-se. Com uma luneta, José aprendeu sobre a distorção de imagens focalizadas. O telescópio, por sua vez, era composto por espelhos que melhoravam a capacidade da retina em definir os objetos, sem provocar ilusões de ótica. 


Gaspare ainda não sabia se se tratava de metáforas, soluções encontradas para explicar a dor, confusão mental. Madame, em outro trecho dizia que José era inocente da vida em terra firme. Ficava, horas a fio, diante da escotilha, a observar o céu. O problema era olhar sem ver, ver sem olhar. Era sabido que o marujo não tinha chão. O familismo e a cidade não atraiam suas atenções. Para sua ilha íntima, não encontraria companheiro. O que Madame quereria contar, afinal? Escutara, supostamente, alguma conversa entre o comandante e outro personagem? Em lugar específico? Interpretara a seu modo tais conversas, às vezes com detalhes? O que faria a teoria do heliocentrismo naquele ponto da narrativa? Era a descrição de um surto? Um procedimento? Era daquelas situações em que conhecimento e aprendizagem não se intercambiam? Duas perguntas apareciam em letra trêmula, riscadas em diagonal na página. Por que eu desejo? O que será de mim? Por alguma razão, Gaspare imaginou Madame cansada, a dormitar em pé atrás de um balcão, enfarada, no aguardo do final de um ensaio musical, para então fechar a porta e ir dormir, aquecer os pés. Gaspare pensou, ainda, sobre o caso dos cálculos e diagramas. José Gaetano possuía limitações para matemáticas e geometrias. Errou o valor, ao entregar o saquinho de moedas à recepcionista da hospedaria. O homem sorriu, pôs as que faltavam sobre a madeira, um tanto corado, e explicou que ficava contente quando, entre os passageiros de sua fragata, encontrava um matemático, que o auxiliava a melhorar seus traquejos nesta área de saber. O enfermeiro tentou compor a cena com seus personagens. Uma pousada, taberna, ou um acerto de contas no cais. 


Não, Madame não era alienada. Fronteiriça, o enfermeiro ousou, anotou em sua planilha. Com a experiência que tinha com os pacientes daquele setor de assistência sabia que, caso entregasse os diários de Madame aos médicos, como um grande achado, perderia o estudo e, pior, nada seria feito por ela. A narrativa à qual se fiava era incerta, poderia haver até compilação de outros romances, outras memórias. Pior, dados colhidos por uma lata amarrada a um fio, um copo encostado à porta. Resolveu esperar um pouco mais para escrever a introdução de seu artigo, agradecido pela paciente andar bastante calma naqueles dias. Madame aceitava sua dose diária de melodias de santur e respondia da mesma forma, transata, doce. Os imperativos da velhice ainda não figuravam, sequer como hipótese, nas anotações do enfermeiro. A impressão era a de lidar com uma moça perturbada. Não sabia quantos anos teria a senhora. Nada sabia sobre ela na verdade, ou sobre as outras. Gaspare queria, mesmo, romance. 


No dia posterior às aplicações da técnica sonora, Madame escreveu parágrafos inteiros mais ou menos coerentes. Gaspare intensificou o tratamento com o fone de ouvido. Diversificou o repertório musical. Adotou-o para mais pacientes. Aproveitou o frio que fazia e envolveu a cabeça e o corpo de cada um com uma manta. Dessa forma, medicava por mais tempo, com mais músicas, os pacientes envoltos em casulos secos. Alguns dormiam, aquecidos e embalados. Pena, Gaspare só possuía um aparelho e fone. Maria, observadora, deu-lhe mais um. Quando era sua vez, Madame escutava desperta. 


Sofrimento atrai sofredores, que vem se banquetear de dor. Gaspare pensou nessa premissa por alguma razão. Leu outra vez cada prontuário, enquanto fazia seu trabalho de caminhar entre os leitos, o caderno de Madame na mão. 


Flor de Lotus com preenchimento sólido

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