Hospital Casaredo 3


Christien Riese-Lasse



Sor é a alcunha d’ela. José Gaetano, condutor da embarcação. Homem cunhado muito depois de 1443. Enfermeiro Gaspare, eu te apresento o sujeito, fazemos gosto. Bons dias, bons ventos o tragam. Disponhas, senhor de espada na cinta. Para recuar, seguir ou estacar durante décadas, por sobre os mares de ninguém. Eis o comandante José Gaetano, assim nomeado. Ele aparece em cena com um seu pé sobre a murada, em Terçanabal como se sabe, a mão esquerda apoiada em um canhão, dos muitos que circundam a Escola de Sagres. Espia o farol azeitado. Quase vinte séculos de memória. 

O lápis há de parir um homem, vindo de mulher certamente. Se parisse mulher, sentiria muita vergonha. Um sobrevivente, que convive com afins de meias letras na história do mar. Também com outros, letrados, missionários. Mambembes. Corsários. Boticários e Cirinos. Mercadores. Imigrantes. Exilados. Refugiados. Degredados. Sujeitos com ideações suicidas, inconsequentes, assassinos. Dementes. Vingadores e limax arboreus. Escritores, poetas diletantes. Com patente, escorbuto, baba e lues. Tantos. Com estes homens o marujo existe, resiste e sonha. Logo ele vai reger a nau. Para as mulheres, é preciso cais.

José Gaetano observava o mapa dos céus, que evanescia na aurora. Seu diário de bordo jazia no assoalho da cabine. Se o quisesse, teria de acordar. Estava exausto, perto de lúcido e alheio. Cheirava a escombros de incêndio. Madame parou a frase a meio. Percebeu que estava no chão, nua, arrancara a camisola e não sabia como. Experimentava o traseiro no piso frio e sujo, os aparatos dela atirados longe. A página do caderno guardava impressões constelares, rotas e sonhos embassados. 

O motivo de o senhor José estar no promontório é um desencontro, voltou a senhora a escrever horas depois, já composta.Impreciso intercurso de romanças corteses, gracejo de cavalaria, história do menino que espera pousar em a grande água da sanidade.  O homem ainda não compreende certos livramentos. Quanto mais nos encontramos, mais cresce a saudade...[1] O bilhete, redigido pelo Donis a José Gaetano em agosto da reaproximação, renderia um purificatório. Escrita perigosa, mais que o mar.

Gaspare, sem intenção de invadir a privacidade de Madame, tinha-a em completo abandono diante de si. O enfermeiro conhecia cada ruga e mancha daquele corpo, cada batimento cardíaco a mais, a menos, cada respiro de dor, ansiedade. Já passavam três meses, desde a interdição, caso isso ajude a compreender a situação em tela. Tal palavra, interdição, demanda questões legais. A senhora chegara à porta da Assistência sozinha, seminua, tivera forças para acionar a aldrava do portão e ficara apoiada nela. Eis o que foi sua chegada. A soledade de Madame era tanta, que vale apelar para intuição. Gaspare vivera estados de perda, entendia de coração partido. Foi ele quem primeiro a socorreu. Talvez fosse este o caso de Madame: encantara-se por alguém que não podia ser. Quebrara, vagara, dera àquele sítio depois de muito largar. Ou fugira. Ou a jogaram de casa. Ou ela abdicara de tudo.

Madame contou que estiveram distantes um do outro por muitos anos, José Gaetano e Alois Donis. Uma expedição os redimiu um instante de suas histórias paralelas. Transportavam carvão do Mar das Antilhas para Lisboa. Trocas de conversas e farpas, de uma nau para outra a meio do mar, tudo açulou o coração do corsário. Apaixonou-se uma vez mais.

Há que se estabelecer três pressupostos para o caso de José: o primeiro, ferida antiga mal cicatrizada, rompida por estresses passionais. O segundo, brasa viril. Tensão sexual, se alguém assim preferir. Os homens são lunáticos, licenciosos, wagnerianos ou comuns. Sujeito singular o José Gaetano. Doce, raso e grosseiro como um tonel. Um sentimento consistente, real, ia com ele - era isso que se queria -, o terceiro pressuposto. Uma chama, que não se detinha. Assim também o foi para Prometeu, a quem José cultuava. 

O tempo passava, cãs pintavam a cabeleira do marujo. O outro, fascinante, quanto mais a atmosfera aclamava. Caminhavam, dois humanos, no mesmo plano de carreira. Mais do que lógico que seguissem esquadras distintas, um via Mediterrâneo, o outro a lançar-se na Rota das Índias, pelo Atlântico. Se fosse dado escolher, não se veriam mais, do pouco que se viram nos primeiros anos. Entretanto, as estrelas se movem. Provações de fogo, expiações, resgate, reparações, novas catástrofes pessoais. A jornada humana tem estas curvas, aos milhões. Estavam ali José Gaetano e Alois Donis, o primeiro mais atoleimado do que nunca, a tocar canções na saleta de uma hospedaria.

José Gaetano, dado a aferros, mágoas, tristezas crônicas, debatia-se com a legitimidade de suas sensações. Anelos, vilões os detém, o entorno assim predispõe. Dogmas, tabus, crenças, raça, a escala social, a cultura, gênero, a diferença cronológica, tudo vai pesar na balança do bucaneiro, para tornar mais ou menos amorável a narrativa. Quem sabe, se quisesse compor uma ópera.

Gaspare, imantado pelas leituras, acompanhava os relatos de Madame, por interesse profissional, dizia. Acreditava em existências anteriores. Não era difícil imaginar a si cercado por ancestrais, fantasmas bons uns, nem tanto outros. Para ele, o Donis e o tal José Gaetano eram comparsas de muitas jornadas. Podem ter sido, antes, cônjuges, amantes,  ainda não se encaixava a trama. O que uniu os dois homens foi a propensão para cantar em dueto, Madame contou. Ela, uma das pontas de um triângulo? Apenas observadora ínvida? Ao ler o sinônimo rebuscado, ao invés da mais conhecida palavra para sentimento corrente, Gaspare riu e se pôs  a meditar. Era acertado o nome que escolhera para se referir à paciente. Madame.

Um instante prazeroso o cantar, para dissolver ressentimentos, revigorar. Um encontro tóxico? Vai-se saber. Para enamorar-se, bastava uma canção de amigo, Gaspare que o diga. Quem imaginaria, uma canção provocar tamanho estrago. Ambos cunhavam beleza a vozes, Alois e José, lamuriava-se Madame. Se era condição para encanto? Era. Troca energética sutil. Foram enleados por repertório musical inusitado, nostálgico, ultrapassado, alguém criticou certa feita. Enamorou-se o José. Doeu. Bebeu mais da fonte do que era permitido. O vinho verde é genuinamente português, disse o Donis. José Gaetano soube disso muito depois, quando percebeu que a ferida não cicatrizava.

Gaspare aproveitava as folgas para dedicar-se ao caso Madame. O enfermeiro residia no sanatório. Voluntariou-se o quanto era permitido para estar com a senhora. Aquela forma de comunicação, por escrito, era atraente para ele. Porém, o moço não deveria iludir-se. Todo material de pesquisa carece comprovações. Mais ou menos sem dar à vista, o atendente foi compondo uma anamnese. Gaspare tinha esperanças de, ao menos, retardar a degenerescência da senhora com algum método experimental. Elencou mais dois casos no dormitório, para manter-se fora de qualquer chance de repreensão. Registrou a pesquisa junto à direção do sanatório, sob o título Três andarilhos bateram à porta da Assistência: envelhecimento, dependência e soluções alternativas. Não que alguém daquele lugar fosse perder tempo com um atendente e três desvairados.

 



[1] Verso de A.D.

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