Hospital Casaredo 2



Cotidiano na Assistência


Por estar e não estar, Madame  não falava. A inconstante comunicação se dava por frases desconexas, anotadas na brochura. Gaspare era o único enfermeiro a quem a mulher deixava lhe desse os socorros possíveis sem se desfazer em espasmos. A banheira, que já fora utilizada em outras ocasiões para imersão em gelo, era evitada por Gaspare. Ele preferia sentar a senhora em um banco e lava-la com panos mergulhados em solução de alfazema, com o auxílio de uma caneca. Assim mantinha a senhora, ao menos, tangível. Naquela manhã, o atendente caprichara na quantidade de aroma. Madame adormeceu, enquanto recebia as esfregações. Limpa, não rechaçou a camisola, dessas que se amarra às costas. Gaspare dispôs a senhora sobre um lençol na cadeira, pode pentear-lhe os cabelos ralos sem que ela se alterasse e então foram os dois para um pátio interno, de onde se podia ver o mar.

O caderno novamente sobre o colo. Lápis a escrever no ar, o sol das oito horas a aquecer-lhe os ossos. Os dedos dos pés nus a buscar o contato com o chão, um babador roto para aparar eventuais respingos. Madame aceitou quatro colheradas de mingau com gosto de nada. Os olhos foscos miravam as ondas distantes e, em dado momento, se detiveram nas faces de Gaspare. A senhora lhe sorriu, um cumprimento quente, afetuoso, que deixaria o enfermeiro satisfeito por vários dias. 

Madame instilava vida a um personagem em seus escritos. Ainda não se decidira, se falava de si ou de outro, dava no mesmo. Deixava-o seguir, agir, sentir. Pôs, na voz do homem, confusas confissões. Já parou para pensar no construtor da primeira embarcação do porte de uma nau, projetada cerca do 1300 d.C ou ainda antes? Artefato que reune em torno de quarenta gentes a bordo, e isto é número fictício. Caravela, Galeão, em ordem de aumento dos tonéis. Dos tempos em que Portugal detinha a supremacia náutica? Já testemunhou este móvel gigante, desafiador da gravidade, da densidade, de tantas leis da física que seria justo estudar a vida toda para compreender seus fundamentos? A quem pertence o poder pecuniário sobre tal brinquedo? Quem é o dono do primeiro navio? O que é tal ambição, a de navegar? Quem define a precisão do navegar? Assim aproximo meu olhar do teu, Gaspare, a buscar, nestas imagens, o sentido de estar neste sanatório. São histórias de relações humanas. Encontros, encantos. Descantos. A história de humanos sozinhos, em estando juntos. Incomunicáveis, comunicantes. A minha história na tua, na deles. Quando foi que me perdi? Que te perdi? Que te quis? Que não me quis? Já ouviste falar em mulheres ao mar, mulheres do mar? Princesas e rainhas ao mar? Mulheres do povo em fragatas, a mover os remos? Mulheres em galés? Postas nas barcas a força, para casar-se com estranhos nas novas terras? Já ouviste dizer que mulher a bordo traz má sorte? À beira da praia, lá estão elas, a esperar. Em meio às ondas, são sirenas. Amarradas a rochedos, pode ser que se as encontre, andrômedas. Feito espuma, e então são afrodites. Damas da noite? Anjos? Carrancas? Áncoras? 

Sanatório Marítimo do Norte, freguesia de Valadares, concelho de Vila Nova de Gaia, distrito do Porto, Portugal. Foi a última frase que Madame escreveu naquela manhã. E nada mais fez, a não ser olhar o mar, sorrir e beber água. No mais, dependia da bondade do enfermeiro.

 

“Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo:- «Boa viagem!»; logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento”. Os Lusíadas. Canto IV

 

À noite, Madame teve febre alta uma vez mais. Dois colegas ajudaram, para que Gaspare pudesse trocar os lençois ensopados de suor. Não havia diagnóstico preciso para aquelas febres intermitentes. Os exames de rotina não revelavam microrganismos ou perturbações celulares que pudessem dar vazão a tantas convulsões. Não se podia afirmar fossem epileptoides, ou invasões por herpes zoster. Não eram utilizados fármacos com a senhora, além do láudano. Como tratamento, somente raros banhos gelados. Pessoa outra já teria falecido, ao menos sofrido uma embolia. Quem assistia aos episódios, sentia tratar-se de resistência ferrenha, uma vontade imperiosa de saldar dívidas, para então morrer em paz, ou mesmo deixar a passagem pela Terra registrada de alguma forma. Ou alguma espera, de algo que não viria e impulsionara a mulher a bater, em certa tarde, a aldrava da Assistência. As convulsões vinham regadas a choro silencioso, que ia rareando com as semanas. Um luto? Lá vinha, mais uma vez, o tal sonho com o povo da aldeia a ir embora e a neve a encobrir seu corpo vivo, largado para trás. Várias vezes essa narrativa aparecia escrita, com mais ou menos detalhes. 

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