O sonho de Portugal 10

 




O leitores destes contos devem esperar que finalmente se defina o episódio do homem, do vestido e seus botões. Em um banheiro do Aeroporto da Portela, a mulher da pós graduação se sentara no reservado, o salto do sapato vermelho descolado. A bagagem fora despachada havia pouco. No quadro de partidas, o maior número de voos já visto. Atrasados uns, cancelados outros, o dela inclusive. Na bolsa de crochê, dez euros. Na vitrine, um chinelo de senhora, deselegante, cerca de vinte e três euros. Andar descalça, manquitola, já o fizera até este lugar onde permanecia a pensar. As hipóteses de sua pesquisa sobre o fado foram derribadas pela mesa de qualificação. Disseram-lhe, sumariamente, que ela nada sabia sobre a canção urbana, sobre museus, sobre cantar, sobre razões e questionaram, igualmente, sua motivação afetiva. Em outras palavras, a mandaram de volta ao seu nicho, às suas cançonetas de ninar, à graduação. Vencida sem deprimir-se, a mulher visitara Évora, distrito que ainda não conhecia e ali gastou seus últimos dinheiros com pouso e alimento, a dissertação rasurada a lhe pesar ao colo. Desejou, pela primeira vez, um filho. Demorou-se, diante de um conjunto de colunas romanas em ruínas. O antigo e o mais antigo, despretensioso, a lhe pedir complacência, talvez uma passagem de volta ao Brasil. Via diante de si, naquele monumento aos ossos, o que sobrara do próprio coração.  Pretendia chegar à Sevilha no dia vinte e cinco de novembro, para conhecer o Tablao Flamenco Las Setas. Tomou a decisão errada de ir pelo ar. Chamou, pela alma, Geraldo sem Pavor, que lhe desse inspiração para seguir com a empreitada dos cantares do mundo, sempre respeitosas e superficiais as suas convicções. Na laringe, O cair da tarde se espremia, esganiçado. Ah, não pode mais meu coração. Os versos que viriam depois, a pesquisadora não os esperava. A voz soou diante da porta larga, no arco da igreja. O sol veio tímido naquela tarde, entoava o guitarrista, não despiu seu pijama, desceu descalço do berço e foi abrir a janela de cada casa. Com cuidado de artífice, olhou o interior das retinas, meditou cada conteúdo ali narrado. Esperança, era o que queria ler. Contentou-se, enternecido com a chegada da gratidão. Apesar do jeito cismarento do sol, valia a pena, era mais uma noite, mais um presente. Imbuídas de sincera coragem, as íris luziram o claro da lua. Duas belas lágrimas limparam o horizonte. A chuva viria, breve. Por graça divina, um bom vento das pedras sacudiu as flores do vestido, arejou as ideias. Ar úmido, desses que atiçam o mofo e maus odores, miasmas. A mulher aguardou. O homem ainda dedilhou longo período, que trazia vários fados à memória. Era como se soubesse ler as gavetas daquele vestido velho, onde faltavam dois botões. 

 

 

 

 

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