0 sonho de Portugal 8


 


Almoçou no Gambrinus, ambos a comemorar os mesmos anos de história, setenta e cinco. Pediu um bacalhau a Eça de Queiroz e uma garrafa da Beira Interior, o Quinta dos Termos. Bebeu água em igual medida, não fosse embriagar-se antes de tomar a condução. Pedido perfeito, refeição agradável, degustada com vagar. Ao lado do prato manteve, aberta uma página, o Trem Noturno para Lisboa. Não leu. Ao sentir-se satisfeito, assim em ambiente de topo, fechou com cuidado a página e devolveu o livro à maleta. Antes, conferiu as camisas dobradas, sem demonstrar maior interesse. O passaporte ia no bolso do sobretudo, certificou-se, antes mesmo de vestir a boina. Deixou o valor do prato, da garrafa, do couvert, em pequena bandeja de prata sobre a mesa. Cumprimentou o maitre, que o servira como a um lord e saiu. Quem sabe se ainda teria tempo para escrever à redação do Michelin, agradecer. O sujeito estava longe de ser personalidade nacional, porém causava boa impressão, figura respeitável. Quantas vezes saíra da Ópera no Coliseu e fora jantar no Gambrinus. Naquela época, a Mariinha fazia-lhe par. Nostalgia, de doer. Ela era camareira no Teatro D. Maria II e sabia portar-se bem. Bons tempos, bons amores. Já vestido para enfrentar a tarde fria e solar, o homem mantinha o porte firme, os passos ritmados de quem se apressa. A Rua das Portas de Santo Antão brilhava, o perfume do óleo de peroba a captar todas as saudades. Mais uns passos e eis o Rossio. Há meses o sujeito não vinha a Lisboa. Tudo parecia novo, de tão antigo. O chofer do auto aceitou levar o homem a Funchal. Recebeu um envelope com o valor da corrida e a anotação do destino. Também a quem chamar à porta, quando chegassem. O chofer, curioso com tamanho cuidado, tentou entabular conversação. O freguês fez que se aninhava para dormir. Sem fechar totalmente os olhos, auxiliado pela boina, o sujeito foi-se despedindo. Disse adeus ao Tejo, ao porto e à Torre. Então recostou-se. Ao estacionar o auto na Rua Conde Carvalhal, o chofer se deu conta. Seu auto transportara um homem morto. 

 

 

 

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