o sonho de Portugal 3


Aveiro

 

Nascer em sobrado rosa de três janelões, com mirante, no Aveiro, era a intenção. O tempo urgiu, rugiu, a mãe improvisou. O barco e os pneus esverdeados foram as primeiras coisas que o bebê viu, posto que a parturição se deu diante da feira, nos degraus do Mariinhas. Quiçá previdente, a mãe fora buscar piscadelas e murilos, para servir ao mais ou menos companheiro no desjejum. Tinha vontade de o prender a uma união estável. Deixou-o a dormir, que o gajo era lanterneiro, trabalhara por toda noite. O bebê, urgente em estar no mundo e gozar os cheiros da maresia, empurrou as paredes do útero sem dó e saiu, a se rir, ou chorar, dá sempre no mesmo. Deste momento em diante, avisou que quem reinava era ela. Em dez dias, deu dez ataques que quase lhe custaram os respiros, lanceou o ar com gritos cavernosos e, para fulminar a mãe, escorraçou o trabalhador noturno para sempre. Foi assim que se ampararam uma a outra por mais um tempo. A menina, desfolhação voraz. Até a vez em que o mamilo sangrou. Louca de dor e enfado, sem pensar, a mãe deixou o fadinho cair... este não foi longe, rolou por sobre os joelhos. A criança berrou por duas horas, infernizou a vizinhança, a rua ensolarada. As mulheres afluíram, a ver o tamanho do estrago. A porta do grácil sobrado foi abusada. A menina tinha sangue no biquinho, a mãe estremunhava no encosto do cadeirão. A dama mais antiga deu um jeito na situação. Pôs a criança no colo de outra, que foi ver leite de cabra no dispensário. Puxou a mãe do surto, sacudiu até que o vômito viesse. Dali em diante, um clima animoso se instaurou entre filha e mãe. Não havia de comer que fizesse o gozo de uma, janela que consolasse a outra. Anos deveriam passar. Então veio o episódio do homem, do vestido e seus botões, mas esta já é outra história. 

 

 

 

 

 

 

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