Ciranda das flores 8







Para todos os que pensaram nisso, e não só uma vez.

 

A moça, uns vinte e cinco anos, vinha empurrando a bicicleta. Vencera perto de cem quilômetros, da praia de onde saiu, subida crescente, em duas horas e meia. A manhã esteve ensolarada, o caminho tranquilo. Roupa de ciclista, acessórios, mochila às costas. Um calibre 22 dentro. Por várias vezes ela se arriscara no mesmo movimento, em êxtase. Uma voz dentro, ao berros. Vira no filme, a bela atriz loura de cabelos curtos cacheados. Logo que iniciou a escalada do viaduto recém nascido, perdeu a corrente. Jogou fora a garrafa de água, pela metade. Despertou, finalmente, de seu delírio de voadora. Havia uma passarela do lado direito onde passava, meio espremido, um pedestre e bicicleta. Com os cabelos ao vento, capacete no pulso, seguiu beirando a mureta. Pelas dez horas da manhã o trânsito amainava, por isso também optou ombrear com os autos. Chegou ao pico sozinha. Três opções se apresentavam naquela quarta-feira de nuvens, o sol pelas costas e uma brisa de último dia de inverno. A primeira seguir, por processo de resistência. Caminhar até a bicicletaria do perímetro, arrumar a corrente e tocar, para onde não sabia. A segunda, tomar o centro da pista e escutar o buzinaço que provocaria, até enlouquecer. Ziguezaguear, para causar maior sensação. A policia viria, faria a contenção, acharia a arma, as drogas. Fim. Para concluir voltar, pegar a passarela, abandonar a mochila, a bicicleta e, ao ganhar o pico novamente, inclinar o corpo para a direita. Calculara por alto e sabia que podia quebrar muitos ossos apenas. Ao menos um leito, maca, som de ambulância. A vista de cima do viaduto, o cartão tão conhecido de sua cidade natal fez a moça parar de respirar. Foi só um instante. Se mantivesse a direita, logo veria a passagem e entraria em local arborizado. A voz dentro a arrastou para o portão. Pôs o cadeado na bicicleta na entrada e caminhou ainda um tempo até achar o banheiro. O espelho lhe deu aquela impressão tresloucada que a fazia acelerar. Molhou a nuca, lavou o rosto, enfiou a cabeça sob a torneira e deixou que a água escorresse por algum tempo. Torceu seus cabelos e deixou que a água molhasse suas costas. Havia um balde sob a pia. A moça o encheu e jogou-o sobre a cabeça. Repetiu a dose por três vezes. Tiritando, conseguiu assim aplacar sentimentos confusos, baixar a pressão e aquietar o cérebro. Os músculos começaram a doer. Não era possível simplesmente descartar na lixeira o pacote com uns bons papelotes, um tijolo de algumas gramas, a arma. Mergulhou a carga dentro do balde. Cobriu até a borda. Os papelotes desmancharam. O tijolo virou uma papa. Foi dando descarga aos poucos. Mandou tudo pelo encanamento. Retirou a única bala do revólver. Coloco-a dentro de um estojo. Deixou o banheiro bem molhado, o balde no mesmo lugar. O céu estava azul agora. A moça se estendeu no gramado. Os raios batiam em cheio sobre o ventre, as pernas. Logo ela se sentou. Encostado a um canto um carrinho de lixo, vassoura e pá. A terra perto da árvore estava mais fofa e ela produziu uma cova pequena, de uns quarenta centímetros de profundidade. Quando enterrou a arma, pode oculta-la, prendendo-a entre as raízes. Mesmo que um cão escavasse, não haveria perigo de a encontrar. Pisou o buraco até aplainar, cobriu com muitas folhas. Seca e um pouco mais lúcida, ficou um tempo sentada ao lado do metafórico tumulo. Visualizou o próprio corpo sob a terra. Com a cabeça entre as mãos sujas, tinha nada na mente. Como se tivesse diluído seu conteúdo no balde. Atrás dela, sentiu a cerca viva. Uma curiosa flor roxa e lilás, de estames amarelos. Nunca tinha visto. Só quando deu com os frutos, ainda pequeninos e verdes, lembrou-se, maracujá. Sentiu sede e fome. Sentiu paz. Pediu à arvore que mantivesse oculta aquela relíquia, que não permitisse a qualquer mão tocar nela, sob qualquer pretexto. Colocou o carrinho no mesmo lugar.

 

 

 

 

 

 

 

 

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