Ciranda das flores 7

 

 



Domo.  A mulher parada, a obscuridade da sala de sua residência. Dia nublado, seco e frio, ares de geladeira recém aberta. Para ser exato na descrição, a luz natural alcançava somente metade do loft devido à posição da janela, combinada ao armário que dividia dois ambientes. Deixar a porta da frente aberta, mesmo que parcialmente, implicava na invasão do trânsito ao domicílio. Era como ressaca. Banda de Latas. Matraqueiros. Tal porta garantia um tanto da luz que faltava. Poderia ser ainda mais escuro e úmido o espaço, caso o armário ocupasse parede inteira. A mulher ruminava desde o dia anterior uma partilha não realizada. Ao menos ela entendia que seria cortês, respeitosa tal partilha. Sentia-se mal, ouvira os planos através do muro, enquanto estendia suas roupas recém lavadas. Sentia-se alcoviteira e atraiçoada. Os vizinhos iriam erguer um muro de três metros no pequeno solário de que dispunham. Tal ação afetaria a luz de pelo menos três famílias em igual situação parede a parede. Ninguém perguntara nada, consultara. Foram chegando, projetando, instalando, erigindo, fechando. 


Rufo. Desde que se mudara para a Vila Flora, a mulher amuava com odores. Dióxido, fumaças e outros cheiros de cidade. Aos domingos em especial, era comum estar alerta para fechar a casa perto da hora do almoço. Agora, mais uma fonte de fumaça gordurosa. A luz seria cerceada por um fogão a lenha. Na alegria de um ingresso, alguns detalhes como calhas, janelas, corredores, canos d’água, churrasqueiras, muros por exemplo, escapam à vistoria. Seis anos haviam transcorrido de sua última mudança. Adaptara as dificuldades com eficiência, sentia-se tranquila ali, acolhida de certa maneira. Havia barulho? Fumaça? Penumbra que atrapalhava o sono? Resignou-se. Seu comportamento introspectivo era bem atendido naquele espaço meio sombra meio luz meio pestilento às vezes. Há que se registrar: tempo regulamentar esgotando. Leve desassossego. Na jornada, a mulher trocava de morada a cada nove anos em média, por razões financeiras. Habituara-se. Ia chegando o tempo, ansiava. Entretanto, agora ela determinara um ponto em seus movimentos de ir e vir. Tivera livre-arbítrio. Fraquejar, retroceder, fora de cogitação no momento. Depois de alguns meses cuidadosos, muitas contas e ponderações,  a mulher decidira-se por fixar residência na Vila. Ao contrário de tempos autossuficientes pediu ajuda, orientação, até companhia. Alugou o imóvel por nove anos e dois meses, em se calculando o valor atual que despendia, sem reajustes. Pagou adiantado por todo período. Não havia, a priori, razão para levantar âncora, como fizera sempre em situações análogas. Usara até então a máxima os incomodados que se mudem para si. 

 

Chaminé. Meses antes, as perguntas que a mulher mais ouvia na consciência eram FugirPara ondePor quePara que? Enfrentava um início de inverno pessoal. Limitações alquebravam-lhe a vontade. Antes, agia como soldado de infantaria aos dezenove anos, estourando de ideal, crente; doar sua existência em batalhas inglórias constituía mérito. De luta em luta, dentes rilhados, saltava de sinistro em sinistro, inimigo oculto ou explícito, sem consórcios. Lutava entrincheirada. Ia com peito desnudo, a força dos braços e furgonetas que lhe carregavam os trens. Não se diria orgulho, agressão, mas um resto de dignidade de tempos mui distantes. Assim sentia. No presente, a velocidade rareava, o impulso era domável. Talvez houvesse nisso algo favorável, não se metia em rusgas, tantas vezes degradantes.

 

Domo respiro. As histórias de Valter, Itamar, Leticia descabiam sobre a bancada. Há um mês não dava conta de ler, bordar. Punha o tempo no exercício da escrita. Produzira cerca de quinze capítulos curtos, menos de sessenta páginas. Pela primeira vez desde que se dedicava a historiar, pouco se metia entre os personagens, eles ganhavam vida pelos seus dedos, independentes, justas. Andavam com seus pés. 

 

A mulher dava lastro a um projeto que só possuía medula. Sem lobo frontal ou cérebro motor. Era como notar à luz de pavio estreitado, em meio a um jardim de flor balão. Nos períodos em que lidava, a cada trecho, a Gaia era toda luz. O solário da residência, o próprio, o dos vizinhos, ficava em plano secundário. Seu trabalho, sustento, presteza, zelo estava na narrativa. O sonho de acomodar-se em casa no campo, no cipoal, no mar, em um quadragésimo andar face oeste. Tais opções iriam parar nas narrativas. Por hora, ficava na Vila, na fuligem da Vila. 

 

E então, a distração dos odores da luz. Dessa não se pode fugir. Ela invade, preenche, é miasma deletério e um tanto regenerador. Se a escrita seria abalada pelo cochilo? Confiava, esperaria. Mais gente chegara à Vila. Cidade que sorri mas tem fama de banguela. A mulher queria estar em paz, na Vila, em suas páginas e gentes.

 

Chaminé chapeuzinho. Parada novamente diante da sala escura, após ter ficado um tempo com os olhos na murada fictícia dos vizinhos, suspirou. Ainda haveria luz em sua parte do solário, caso o muro subisse. Mais que na sala. Quem sabe se as fumaças bateriam no muro novo e desviariam, iriam visitar outras freguesias. Ai delas. Voltou seu olhar para outro lado. Um abrigo sobre o tanque, a máquina de lavar antiga, um armarinho caduco, muito pó, rosas de deserto, babosas. Ficou a imaginar se não se levantava o telhadinho improvisado um pouco mais. Se se trocavam as Eternit escuras por outras, que filtrassem luz. Ao pesquisar em seu computador (que sim, tinha um) diferentes modelos, encontrou o domo, palavra de pompa. Estava atrás de um que girava com a força do vento e lembrava mesquita. Um chapeuzinho, quem sabe, um rufo. Algo que servisse para sugar fumaças, cheiros e os pensamentos ruins. Onde ficaria tal chaminé no espaço reduzido? Poderia ser visto do chão? Serviria para cismas? Para respiro aliviado? Para entusiasmo criador? 

 

A mulher voltou-se para o muro ainda não construído e chorou. Um pedaço de céu ela perderia de ver. Como seriam, doravante, as tardes de sol de verão? Seriam ainda nove? Suspirou novamente e entrou. Quanto de relevante na história, quanto aprendizado. Fazia frio na parte clara e na parte escura da sala, igual. A mulher se deu conta: era a mente, materializada, gelada. Carecida de reforma, de telha translúcida. De companhia. A mente. Por enquanto, ficava suspenso o projeto jardim com vasinhos de flor balão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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