Antonio e Germana


Para Antonio de Lisboa,  Germana de Pibrac e Teresinha Zagabria


Naquele dia, uma reunião de fim-fim acontecia. Escolheram para o evento galhos ressequidos, junto ao muro da quinta. Para dar números exatos, seis casais da família Fringillidae. Era domingo de namoro, meio-dia. Um dos machos recitava pausadamente os rezos, num La exato, encantador. Os demais escutavam, sem emitir som. Uma coroa de babosa se abria a um canto, parecia aldrava de portal. O vento a soprar, manso, convidava ao repasto, ao consolo, o silêncio provedor da mata. Antônio caminhava só. Acercou-se de uma pedra às vezes de banco, de modo que o sol não lhe batia em cheio. Era tão espírito o espaço, que Antônio logo sintonizou seu menino, com quem gostava de trocar evidências. Dessa vez, o pequenino tocou seu hábito surrado e ofereceu uma banana, uma para o amigo, uma para a família de pássaros que agradeceu, ordeira. Depois da oferenda, o garotinho pediu colo com olhos muito molhados, tinha sono. Tantas espécies aladas faziam coro em outros recantos do bosque. Parecia arroz de festa. Antônio observava tudo, enquanto embalava a criança no regaço. Foi quando o monge a viu. Ela guardava distância. Segurava um longo cajado com uma mão. Um vestido escuro a cobria, um avental diante dele, recolhido junto à cintura, como a deter alguma colheita miúda. A outra mão, oculta em um bolso lateral. Um pouco atrás da moça vinha outra mulher, destoando da paz da tarde recém nascida. A senhora brandia uma vara de marmelo no ar e resfolegava, já cansada de gritar e blasfemar. Ao alcançar a jovem, despejou sobre ela fúria de milênios. Um encolhimento natural se verificou no corpo agredido. A jovem suportou as vergastadas sem murmurar, vinte ao todo, brandidas com gosto. A voz da outra, já quebrada pela rouquidão, pedia conta de pães roubados. Ainda não satisfeita do impulso perverso, puxou o avental da moça, sem modos. Dele emergiu tamanha revoada de aves, todas com ramalhetes de flor no bico. Os botões caiam em feixes no ambiente, dádiva de voo. Por alguns segundos, um silêncio profundo e perfumado se fez. Um silêncio dentro. Um silêncio através. Antônio, com o menino adormecido ao colo ergueu-se muito devagar, piedoso e vigilante. A senhora, horrorizada com a cena, com o cheiro, com o sangue, a placidez e o testemunho, pôs-se novamente a correr em direção à casa, a puxar os cabelos. O monge veio se chegando e a moça pediu que parasse. Ele a dez passos, o menino adormecido nos braços. Estou enferma ela disse. Antônio percebeu os nódulos no pescoço, a pele acinzentada. Os olhos da moça eram o próprio rio, que se abria quando o mundo passava. A tarde recortou a mata em sombras sutis. O argumento se transformara em lírios. Antônio pegou um, outro, mais outro. Sorriu. A partir daquele dia, a voz da moça seria ouvida, como a dele. O fim-fim macho terminou seu rezo e a família partiu.

 

 

 

 

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