Ciranda das flores 4








Um batalhão de siris corria ao sol da manhã, acabado de despontar. A maré baixa  deixara, à cambada,  nos afazeres de cuidar dos bebês e os enterrar na areia, cerca de um milhão. O som das castanholinhas contracantava com os palmeirais, cabeleiras de chuva noturna. Um bom pedaço da serra formava a baia, o que dava ao lugar um encanto de paraíso perdido, bom para caranguejos e um tanto de outros personagens. 

 

Dia fresco, puro. A praia era toda pares de pinças laranja. Não muito longe desse cenário anunciativo, uma choça de cal e sapé murmurava melodia litorânea, dedilhada em fole úmido de maresia, afinação 435. O piazito nu, talvez cinco anos de idade, empunhava com garbo a concertina. Tocar nascera com ele. Em um canto da sala de areia, uma viola de cocho descansava, no aguardo do pai, que tinha ido catar siri-mole para o repasto. A cançoneta dorminhoca falava de mãe e irmão no vilarejo, em missão de cura. Aquele momento era do menino e sua música. Os primeiros acordes do instrumento surgiram não tinha nem uma hora. Tranquilo no seu pensar mais velho que o mundo, o piazito imaginava que o pai ficaria contente. 

 

Mais um pouco e o músico foi para suas outras tarefas: buscar um pouco de vinagreira roxa e peixinho-da-horta. Para esse assunto ele carregava, homenzinho caniço, uma sacola de couro de cobra que o pai lhe fizera. Em um bom dia ia célere, pisava na ponta de um pé (tinha uma perninha mais curta). Logo a sacola se enchia também com algum coco derribado, cambuci e acerolas. Para pegar água doce o serviço era maior, mas o pai também achara um modo, uma carriola com a bilha engatada, uma caneca na ponta. Dava para fazer os dois serviços na mesma viagem. Certinho pai e filho voltarem juntos das missões, algum causo a contar, algum caramujo bonito, algum fumo de rolo e palha que o pai trocava por produtos de pesca com os companheiros. O pai não possuía canoa, então barganhava peixe também com música, em lual enternecedor que, vez por outra, celebrava algum casamento, ou só para espantar os fantasmas do mar. Depois que o piazito punha a carriola ao lado do fogareiro, ia catar gravetos. O pai já cortara alguma lenha; assim se cozia e acendia um lampião. Talvez hoje o pai trouxesse um pouco de leite de cabrita e doce de banana. Talvez um naco de pão.

 

Eles não moravam naquele casebre. Passavam ali o tempo necessário para o irmão mais novo se recuperar de suas crises esquisitas, que o piazito não entendia. Quando o irmão caia com os febrões, o pai já catava o piazito, às vezes dormindo. Tinha sempre o necessário em uma sacola para passar uns tempos, mesmo que fossem de chuva. Ficar longe da mãe doía muito no começo. O pai cantava para ele, modas tristes, falando de lonjura, solidão. Era tão bela a voz do pai, como um passarão canoro no meio da mata atlântica. O coração do piazito se acalmava e ele esperava o dia de voltar ao vilarejo, duas léguas dali, a cavalo. 

 

Essa era a coisa interessante da excursão: iam e vinham montados, pai e filho, em um alazão de nome Alexandre. O pai contava que Alexandre tinha galopado com o Imperador, quando este visitara o porto e as cercanias. O Imperador deixara na região boa impressão, apesar dos rumores medonhos sobre as pelejas com Solano Lopes. O piazito ainda não assimilava bem a dor e o doer dos outros. Sabia dos seus doloridos rasgões nos joelhos, cotovelos, testa e, na quarta-feira, do espinho que lhe zangara o calcanhar. Naquela manhã tinha sido particularmente difícil fazer a trilha para as hortaliças. O unguento que o pai passara não tinha diminuído o ferimento. Parecia até que tinha ficado maior. 

 

O pai tardava e o piazito, amuadinho, deitou no jirau. Sonho de menino de cinco anos é tão gigante quanto as guanabaras. Ele viu dragão, ouviu trovão, engoliu água em redemoinho, foi espetado pelo tridente de Poseidon, fez coro com as iaras, uivou para a lua, voou com morcego, entrou em uma biblioteca com livros bem antigos, que ninguém lia, visitou um camarote de teatro, viu um furo de bala de revólver em um piano, dormiu tranquilo nas costas de Alexandre, foi ninado pela mãe, prendeu sabiá na arapuca para o irmão, apertou a mão de D. Pedro e nem desconfiava que era ainda o primeiro. Quando despertou, havia cruzeiro e a noite estava preta. 

 

O piazito sabia onde achar o fósforo. O pai só permitia que o riscasse se fosse uma emergência. Aquela era uma, o menino sabia. Certamente uma entidade protetora guiou a mãozinha e o fogo iluminou a choça. Claridade suave, apaziguadora. O piazito sentou perto do fogareiro e ficou se balançando devagar, murmurando um rezo que a mãe ensinara, para os dias de temporal. Comeu duas frutas bem devagar. A concertina estava muda. 

 

Foi então que o piazito escutou cinco estampidos. Secos. Depois, nem grilo, nem bicho algum. No meio da madrugada o menino arriou, depois de chorar e chamar o pai bem baixinho. O fogo ia se apagando devagar. A areia era fofa, acolheu. 

 

Mais uma manhã. Mais uma maré. O piazito sorriu para o pai, que lhe passava a mão pelos cabelos, cara de alivio. O menino estava no colo, ficara bebê outra vez. O pai foi contando a historia de três homens que correram no meio da cambada. Criaram um pandemônio, assustaram toda praia, deram tiro nas árvores, em uma saia pendurada no varal, em Benedito, o amigo querido do fumo de rolo. Em dois siris. Quando veio o tiro no piano o menino se deu conta. Será que ele, o piazito da concertina, também ia ter, doravante, os febrões do irmão? O pai estreitou o colo, falou quase cantando. 

 

 

 Para Igor Ribeiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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