ciranda das flores 3

tela de Pedro Weingartner

Avenida de conjunto habitacional. Artéria de ligação entre rodovias, atravessada pela ferrovia. Assim os dia passavam, cheiro de pneu contra asfalto, terminal de ônibus, restaurante de estrada, tecido suado, sutil lembrança de lixeiras. Comigo-ninguém-pode – o nome já diz, planta muito venenosa, rica em oxalato de cálcio.

 

A cantora, entre tantos temores, acalentava o de perder-se em fascínio olfativo. Ela farejava o ar. Distinguia em especial os domingos, em que a fumaça das carnes chamuscadas vinha, ali pelas dez e meia. Fechar as três janelas e duas portas parecia antídoto. Depois, abrir o caminho gordurento, até a tarde levar o alvitre embora. A cantora sonhava jasmineiros e outras exuberâncias. Na época de fazer ninhos, a disputa entre rolinhas e sabiás. A cantora conversara com os pássaros, era inquilina, não seria licito sublocar. Há coisa de sete estações, as primeiras aves se impuseram, territoriais. Assim o seu odor coletivo, seu gorjeio soturno. O fiu firiu fiu fiu fiu de primavera deu lugar ao curuu, curuu. No último verão, uma das rolinhas quedou por enfermidade, o auto estacionado, as formigas coveiras, o cheiro denunciou. O lixeiro levou. Tal evento irrompeu, de memória, os saltos espetaculares do gato amigo, o conta gotas, o parente a penitenciar emotividades. O amargor da carqueja, eis a calentura para as velhas dores. A calha entupida, a pequena cascata diante da janela da cozinha, o breve riacho do solário. O coração seguia a cantar os sentidos, funcionais. 

 

Das supostas importunações do conjunto habitacional, a que marcava era o trem. Não definível o cronograma.  Dez vezes em média, em vinte e quatro horas, quatro minutos de permanência, mais para noroeste. Também houve começo para este apelo acústico, sentir as vibrações entre rolamento e bitola. O que vestiu a vizinhança foi mesmo o apito,  sai-da-frente-manivela-chique-chique-e-ela-e-ela-aiai-aiai-aiai-aiai-shhhhhhhh-deus-ai-nossa-ai-senhora-ai-shhhhhhh. Nada de espanto para as madrugadas, todas despertas. Creio que a cantora dormia com um barulho desses, mas pensava que não. Ocupar-se em definir o tom do chorado parecia obsoleto. Talvez um Re do registro médio, sobreposta a terça menor, às vezes quarta justa, depende o vento. 

 

O bordão grave da passagem dos contêineres evadia-se para outro lado, engolido pelo número cada vez maior de furgonetas a acelerar logo após a lombada. Feito conquistado por uma líder moradora, para os colégios municipal e estadual. Petição louvável,  frenar a fúria automotiva, impiedosa com crianças-mães-carrinhos-de-bebê, verdadeira humanização. Benditas escutas dos moradores de esquina.

 

Baixa presença de cotidianos familiares na avenida de conjunto habitacional. As moradias, dispostas como que em viela amável, poderiam sugerir variações interessantes, tanto de cheiro quanto paisagem sonora. Intriga, quem sabe. A arte da alcovitaria era patente de extinção na jornada da cantora. Porém, os berros de uma única infanta, repetidos, mais do meio da manhã até após o almoço. Esse o carro chefe das inquietações. A cantora se condoeu, serão cólicas, febres... Depois, aprendeu a movimentação estridente. Outra alma temente. Era preferível o uivo do cão, em dueto com o trem. O cão se fora, o silêncio o dizia. As jamantas diante da janela da sala, carregadas de autos batidos. Palmas vez por outra, a instar atenção, escuta, colo, sabonete, água potável, arroz e feijão, olhos, roça e tez. As campainhas, retiradas. Alarmes substitutivos, disparavam amiúde. A cantora possuía um, não fora preciso usar até então. Era acomodar os sentidos contra as demências. Assim os dias passavam, azedinhas candy-cane.

 

Todas as histórias podem ter sido as da cantora. Todos os libretos, cantados em muitos  idiomas. Pisara todos os grãos de areia de norte a sul do mundo. Teatro Amazonas, Teatro da Paz, Teatro São Pedro, Teatro del Lago. Fora homem, mulher, pastor, silk road, íbex ibérico, gitano, fênix. O cheiro vivido em um sem número de ambloses, os variados sons de deixar o corpo físico. Paridelas? Amantes? Rebentos? Caça, horta, jardim, senzala, favela, palácio? Vela, escadaria, cais? Gengibre colmeia? Cúrcuma? Trombeta dos anjos? Quantas enfermidades? Assassínios? Alegrias? Lágrimas? Devoção? Quanta prece? Qual a tessitura da voz? 

 

Naquele anúncio de conjunto habitacional a cantora ajuramentou morada. Poderia ter voado, sumido. Ficou, por hora, com o cheiro de domingo, seu conhecido.  

 

 

 Para Lygia Fagundes Telles

 

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