contos de buraco de fechadura 12



Roupas no varal. Daqui a pouco, concluir o serviço. Tiara gostava particularmente de fazer a lavagem delas. Peças simples, de usar em casa. Nos intervalos, a mulher entrava no conjugado e parava diante da tela. Escolhia  palavras de celebração para a menina prenhe desconhecida. Era tarefa mensal escrever pequenas mensagens de natal a um grupo de gestantes.

Depois do tempo regulamentar, seis meses de convívio, crianças nasciam, vinha outro grupo. Atendimento fraternal, laços estreitados, rompidos. Vida que segue, como roupas que secam no varal. Tiara acompanhava o movimento embelezado pelo vento sol. Imaginava a responsabilidade em se ter uma filha, guria bonita como a que seria festejada. A menina - a lavadeira a intuía através de foto -, receberia meia dúzia de afetos por escrito e uma cesta básica para duas semanas. Fácil, como o balanço dos lençóis. O conteúdo do cartão ficou pronto antes de os olhos perceberem nuvens bailarinas.

E se a menina linda houvera saído do meu ventre, sugasse os meus seios e revelasse ideias rústicas, sem padrão, matutava Tiara. Ou revolucionárias, indolentes, violentas. Se ela fosse  militante, ativista, missionária da floresta, médica sem fronteiras. Trissômica 21. Top model, atriz pornô, meretriz, dominasse a arte da palhaçaria, desafiasse as escarpas, optasse pelo monastério descalço, fosse carvoeira, colocadora de rejunte. Amélia Dyer. Analfabeta. Dependesse de suporte materno, da bondade de estranhos.

As circunstâncias em que vive, a guria linda não as programou. Eu, tampouco, suspirava a lavandeira escrevente. Tiara dispunha amores mofados de mãe, sentimentos feminis esgarçados, legítimos para os seus sessenta anos que se poderiam chamar virginais. Distâncias seguras entre palavra e gesto. 

A velha ia e vinha, da cozinha ao solário. Virava cada peça, para que secassem por igual. Solário. Velha. Tiara sorria para não chorar. Palavras tão pomposas em pátio singelo. O verão úmido dificulta os processos de secar. O sol tão quente, muito mais do que a pele lembrava; mesmo assim, exigia descrição correta. O céu, límpido feito farda imperial. Tiara enviou o texto para a cartonagem, satisfeita.

Começou a recolher e dobrar as primeiras peças de roupa. No vizinho, dois sobrados além do conjugado, um bebê tem um berro lancinante. A comunicação da criança só se dava por urros. Tiara escutava o desenvolvimento dessa voz há meses. Além de lavandeira e escrevente, a velha tinha musicalidades. A impressão acústica era a de uma cria com o pé no moedor. O som atravessava muradas, a avenida. Graças, o grito primal se verificava mais ao final das manhãs. Depois aquietava. Causava calafrios. Nada de falta, mágoa, cava, repulsa. Tampouco alívio. Era o fora de um mundo autocentrado. Fechadura. 

A semana de susto - a proprietária do imóvel que Tiara alugava veio avisar que talvez o vendesse -, revelou com clareza o que é escrever e ser autor. O que é uma lavandeira. O que é velhice. O solário permaneceu solário, mínimo retângulo brilhante das nove às dez e quarenta. A mensagem natalícia foi esquecida.

Pouco a perseguidora de lestes conhecia sobre a origem da escrita. Há tantos alfabetos. Tantas formas de expressão versada. Tantos sujeitos, verbos, letras maiúsculas e pontos. Ideias, quase sempre pobres,  desconexas. Lembrou-se de um livro que lera há pouco, o personagem dentro de uma biblioteca na Alemanha, diante de milhares de autores e somente um de seu país de origem, o livro escrito em idioma incompreensível.

Tiara, desafiada naquela manhã com toalhas, calçolas, sol e obrigações pueris externava maternidades, palavra e som. Deu de frente com o êxodo, a diáspora o exilio e seus desejos. Sua jornada nômade recomeçaria brevemente. Onde me encontram em toda história, perguntava-se. Tanque, tela branca, sabão e teclado, chave e fechadura.

A porta da frente é de latão, inteiriça. Possui puxador, não trinco. Lembra um estúdio de gravação, sem a pressão e o peso das portas de lá. Para fechar o cubículo, que não excede a trinta metros, é necessário usar sempre a chave. Desde os primeiros dias de aclimatação - fazia quatro anos que Tiara passava ali -, se deu conta do formato da fechadura. Diâmetro de cinco milímetros, que permitia olhar fora sem muita dificuldade. Olhar dentro a lavandeira ainda não experimentara. Na dúvida, mantinha a chave na fechadura todo o tempo. 

Tiara ainda não tinha elementos suficientes para avaliar sua situação. Também não se lembrava se a cria da guria linda já nascera. Ou se ela já saíra do grupo. A posição do sol logo deixaria o tal solário em sombras até a primavera. O cansaço do mundo a afetava. Uma estranha serenidade ocupava o vão da chave. 

 

 

 

 

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