contos de buraco de fechadura 9



foto do acervo de Sonia Conte



Naquele fim de mundo ainda se publicavam as notícias através de panfletos de uma página, divulgadas todo domingo. Venda ou troca na porta da casa de oração. As páginas rendiam alguma prosa inconsequente na mercearia do Abdulá, ali pelo meio da tarde. Se desse sorte, teria alguns tostões para a feira. Nicanor escolhia  com cuidado os temas, aqueles que realmente dariam sentido ao pequeno povoado. O lugar, tão cantado pelo José Mauro, vivia de monção. Tempo de rede, de sapo, de sono sinfônico. Para o panfleto daquela semana do Senhor a manchete: período de estiagem mais longo em noventa e um anos. Nicanor passou metade da manhã diante do tipógrafo, a enfileirar a chamada, caractere por caractere. Azeitou a máquina antes, que gravava manualmente. Conferiu o tinteiro. O papel da impressão. Havia trinta folhas. Separou metade. Na saleta, que servia de redação e dormitório, o periodista andou de lado a outro. No exercício, gastava quatro passos adiante, quatro passos atrás, muito mais de cem vezes. Em uma das voltas, parou diante do quadrado que era a janela. Dali se podia olhar o capão mirrado e alguma rês que resistia, ossuda. Nicanor fez o caminho outra vez, enxugou o suor da testa no antebraço. Sentou à beira da escrivaninha desconjuntada, uma das pernas calçada a tijolo.  Lalau, o cão amigo – apareceu a ladrar, durante uma das primeiras noites que sucederam sua chegada à vila, alerta de uma jiboia que entrou sem convite -, dormitava à sombra de um pequizeiro mais para desfolhado. A poeira cheirava a isca de lodaçal. As águas pretas vinham à mente de um Nicanor cismado, entristecido. Ir até o rio pareceu boa solução. Foi. Trilha de lírios, um aqui outro lá, entre as poças que restavam. Com ares de poeta o rapaz, que não contava trinta anos, sentou em um tronco de margem, boné protegendo a face do mormaço. Uma vara com linha pendurada, equilibrada em um veio, era lembrança de jatuarana.  Não havia pensamento que aquietasse. Pra que, Nicanor brigou, falar ao povo o que o olho de todos enxergava? E o nariz, a língua, a pele, a careca? O ouvido não reclamava há tempos o irritante som do pingo nas folhas de latão, tipo de calha mais usada na terra? De que adiantaria contar da fumaça persistente vinda dos pastos? Do estranho capuz do céu, penugem que escondia o azul mas não desenhava nuvem? Qual o mérito em atacar este o aquele mandatário, indicado pelos vileiros a polegar? Que outro assunto espalhar por aquele rincão esquecido no mapa? Nicanor deu que deu tratos às pestanas e, quase fim de expediente, lembrou de uma historia torta sobre dois caboclos metidos a estrangeiros, nem mascates eram, a aplicar o golpe das panelas francesas em povoado vizinho, dois dias em lombo de mula. 


 

 

Comentários

Postagens mais visitadas