contos de buraco de fechadura 8



Já parou para contemplar um dente-de-leão? Não confundir com serralha. A simplicidade das linhas, as suas etapas de enflorar? Aquele momento em que a planta é um mundo de guarda-chuvinhas transparentes, que voam com o sopro da respiração? Às vezes, entram pelas narinas e fazem espirrar. Depois, vem o estágio do amarelo, que excede em clarear a relva, feito brincasse de sol. Fui saber quantos dias vive um dente-de-leão e descobri o tesouro.

Eu diria a ele para tocar as flautas, a contrabaixo, como um pastor e seus cães, mas sei que o coração não está nem no deserto, nem no monte, menos no gramado. Só tenho visto os gatos em suas notícias partilhadas. Os cães, não sei se permanecem. Sem palavras, mesmo quando canto, é uma solução aprendida junto ao céu, um seu olho. Murmura-se amiúde e as vibrações, pianíssimos, acalantam, irradiam e minimizam a dor. Tenho uma relação amigável com o Sozinho. Há tempos lhe dei um nome, Rasquim. Converso longamente, talvez o dia todo. Só por isso, vejo-me afastado da Saudade, da Melancolia. Companheira tóxica, cuja amizade nutri por muitos anos e como não cantei ópera, precisei romper com ela. Não sei deste lugar que é dele, não sigo ao seu lado. Do meu posto, na minha fragata, aceno. Eu escuto seu respiro triste. Como não posso, neste momento ficar apenas sentado, perto, torço para que imagine um marujo de fragata que sou, a olhar o sol se por, na escuta.

Não me sinto paralisado. Ao mesmo tempo, há lugar algum para ir. Nem a imaginação quer me levar.  Do outro lado de lá pode haver mais ameaças. Construí castelos de areia, papel, vento, nada. Esta é a sensação. Sem palavras. O olho do céu as engoliu. Algo assim, dá vontade de calar. Não para omitir dados, fatos. Nem para alimentar nostalgia, prantear. O olho do céu informa o trem, que rola nos trilhos sem cessar. O gesto, o apito e meus pensamentos vão com ele. Soja de lá para cá. Soja, minérios, componentes eletrônicos, bichos congelados, bebidas, cigarros, quem sabe se homens e mulheres acorrentados. Os cães daqui uivam e latem a intervalos equidistantes. Os sabiás avisam: escutem, a primavera já vem, alegrem-se.  Crianças para doação de órgãos, experiências pervertidas. Estas coisas todas nos vagões. A foto de um ‘campo’ na Madeira volta a todo instante. Há mães que ainda dormem com os olhos na estrada. Pais que se embriagam no sofá e aguardam o jogo adiado. Com o coração eclipsado, duvido se sinto algo. Talvez um buraco no peito. O olho do céu. Recebi o impositivo de estar aqui e agora, sentado sobre um abcesso. Sinto frio e cheiros ruins vindos das paredes, das roupas, dos canos, da cidade, do corpo, um combo. Há que se emitir fótons, sutilezas, belos acalantos. Há mais gente que tem os pensamentos no olho do céu. Que se passa? A roda do carro amassou o dente-de-leão. Desceu do veículo um sujeito cujo objetivo é aplicar o conto das panelas francesas. Mas isso já é outra história.

 

 

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