Contos de buraco de fechadura 5



Ao entornar o líquido no copo, Bezerra não notou o mosquito pólvora que se debatia em descida furiosa. Parecia o Nilo afunilando em Kabarega Falls. Ao lado do companheiro, na mesa do botequim, distraída, Adalgiza rolava entre os dedos uma  fitinha de cetim rosa, olhar longe. Há tempos, o casal de amantes sonhara sair pelas estradas do interior, tendo como morada um furgão minimamente equipado, para não gastarem com pousadas. Adalgiza, diagnosticada esquizofrênica aos trinta anos, mansa como certas ovelhas, havia orientado seu processo no bordar, aprendera sozinha. Sabia apenas cinco pontos e com eles desenhava livremente em qualquer superfície que suportasse as espetadas da agulha de que dispunha. Bezerra, admirador daquela arte, especializara-se em emoldurar os tecidos da amante no passe-partout; o toque dele acentuava a beleza das paisagens, em geral cenas de estradeiros. Com o trabalho, vendido em feiras pelos vilarejos, os amantes garantiam uma vida simples, em geral de trocas. Não cabe, nesta narrativa, dar mais detalhes sobre o encontro deles. Fato é que, naquele fim de tarde, no meio do mundo, algo havia quebrado para Adalgiza. No capão em que se abaixou para urinar - ela tinha medo dos sanitários, achara o pedaço de fita. O sapatinho de lã, enfeitado com a tal fita, murmurou frases entrecortadas para ela. Contou que o bebê estava um pouco mais adiante, com frio e sede. Toda vez que Adalgiza tomava consciência de um surto, emudecia. O pezinho de lã estava apontando o caminho. A mulher intuiu que, se levasse apenas a fita, o amante entenderia. Assim, o apelo do artefato estava supostamente preservado. Entrou no bar, branca como as nuvens que se adensavam no céu baixo e sentou-se a tempo de ver o mosquito a cair no rio do copo. Antes que Bezerra sorvesse o líquido, a amante abriu a mão, a fita na palma e cobriu com ela os lábios do companheiro. A metáfora silenciosa era a conversa de ambos. Primeiro Bezerra olhou os olhos amendoados de Adalgiza, cor incerta. Ficar com aqueles olhos fora a coisa mais sábia que já fizera. Depois, olhou o copo, o bicho a se debater. Em seguida a fita. Ali demorou seu pensamento. Começava um chuvisqueiro tão calado quanto tudo naquele perímetro. Bezerra deixou o copo sobre a mesa. O mosquito, a essas horas, já fora para outra margem. Tocou com delicadeza o pulso da mulher que o olhava sem aflição. Foram caminhando lentamente ao capão, até que Bezerra viu o sapatinho. Adalgiza cantou, e era só em urgências que o fazia: dorme, meu bem, vamos nanar. Os amantes entraram no matagal. Pela primeira vez, Bezerra entendera a mensagem do jeito dele. Acreditou que a mulher o chamava a fazer um neném; eles, que se tocavam tão pouco. O corpinho nu tinha algumas manchas arroxeadas. Os bracinhos abraçavam a si, em tentativa de aconchego. Quando Bezerra se abaixou para o tocar, já os vermes iniciavam o saneamento. Adalgiza continuava a murmurar o acalanto, torcendo a fitinha entre os dedos. Um raio iluminou por alguns instantes o cenário. Logo depois, um trovão profundo, longo, pouco efusivo. Com as mãos, os amantes cavaram uma cova rasa. Junto ao vestido que usava, Adalgiza trazia uma sacola bordada, um sol e uma ovelha na estrada, céu azul escuro. Ela estendeu ao amante o tecido. A peça serviu lindamente de mortalha. Foi Adalgiza quem atirou o primeiro punhado de terra, bem em cima do sol.  

 

 

 

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