Contos de buraco de fechadura 2


O abrigo daquela manilha. Tuliano cabia nela com os joelhos bem dobrados, costas em arco rente ao cilindro. Ali ficaria, seco e guardado do mundo, por algum tempo. A vida lhe legara dezessete anos até então, todos esses a correr, desde que lembrava. Tuliano,  garoto de recados, de entrega. Telégrafo mais exato não havia. Pelo posto notável, notório, nobiliárquico, era estimado por todos. O galo mal iniciava a Ave Maria, lá estava Tuliano, a correr com o fogo, que acendia para a mãe lhe dar café, leite e um naco de pão. E dai para um cem número de correrias que preenchiam seu dia e lhe rendiam boas moedas. 

Naquela hora, a respiração era outra. A posição lhe favorecia confortar a si. Bem, bem, bem era o que murmurava, em idioma desconhecido. Já vira outros meninos resolverem o dilema. Casavam e pronto. Tuliano, contudo, correndo como vivia? Melhor era correr em frente, sem parar. Este foi seu primeiro impulso. A chuvarada que alagava o charco. O abrigo daquela manilha. Se precisasse passar a noite, era um bom estar com seus pensamentos. Os brocardos eram sensatos, lentos, matutados. Uma clareza bonita sempre o acompanhara. Não era peralta ou bulhento. Apenas corria, corria muito.

 

Atrás da capela ficava um vão, bem sabido pela região. Escuro, com cheiro de limo, sem banco ou corrimão, apenas a hera cobria a parede caiada. Nas correrias, corriam também as histórias das crianças, dos jovens, dos casais, dos velhos. Tuliano corria com o atrás da capela. Metade dos moradores da cidadela eram, no escuro, moldados. Mais miúdo, Tuliano imaginava pequenas figuras de argila, como os São Francisco que Onorico artesão esculpia, a nascer naquele canto escuro. Lindos, magrinhos, do tamanho de homens grandes. 

Correr fora brincar todo esse tempo da vida de Tuliano. Era raro algum menino acompanhar carreira com ele. Pedro, o que mais se achegava, o fazia mais para bulir, zombar. Não eram da camaradagem. As falas, em geral sem graça e chulas, davam detalhes das molecagens feitas no zimbó, corruptela do tal atrás da capela. Tuliano escutava e corria, corria mais. 

Todo vilarejo tem uma louca. Onde Tuliano morava, duas casas adiante da sua, havia Loanda. Quase não se via a jovem, era vergonha ter louco na família. De uns tempos pra cá, deu de Loanda aparecer na janela para olhar Tuliano desabalar. E o rapaz se voltava a tempo de vê-la acenar. Bonita não era, sofrida. Sonambúlica. Havia uma aura em Loanda, que a fazia fluir daquela moldura azul na qual ela posava. Tuliano corria. Loanda parada. Deu de Tuliano voltar para casa esbaforido e estar lá Loanda, parada. Ele se voltou, a tempo de vê-la acenar. Tomou a canja que a mãe lhe serviu. O sangue esquecera de reduzir o passo, disputava as batidas de seu coração. A mãe não estranhou seu olhar pregado na porta. E assim foi. Largou a colher quase a meio e saiu em disparada. Loanda caminhava um pouco adiante. Saltara da janela, que era rente à calçada. Tuliano lhe tomou a mão e saíram os dois, numa corrida que durou dois quilômetros. A lua plena fazia tapete. A lavanda florida deixava no ar um odor inesquecível. Quando acabaram e Tuliano se esticou no capim, um braço atrás da cabeça e outro apertando Loanda contra o peito, o céu contou que nada havia mais bonito que aquele encontro. Pela manhã, o ritmo foi outro. Fogo aceso com calma, café sorvido com sabor. Lá estava Loanda, na janela, esperando o moço passar. 

Três meses de ir e vir e janela e aceno, o ritmo sossegado, até a notícia correr antes de Tuliano. Só podia ter sido no zimbó, onde mais? O pai a tinha coberto de pancada. Dois ataques que quase a mataram, não fora a irmã acudir. O pai, diante do silêncio desvairado da filha, fez a trouxa e pôs Loanda no olho da rua. A ordem das clarissas acolheu por uns dias, mas mulher louca e emprenhada entre elas, não podia ser. Mais algum tempo dentro da manilha, virado um feto e Tuliano tomou a decisão. Esticou-se, deixou que a chuva lavasse e caminhou até a capela.

 

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